Archive for março 2022

Bicentenário da Imigração - 6

As emigrações em massa da Europa Central e do Norte, assumindo as proporções de autênticas diásporas, durante os séculos XVIII, XIX e a primeira metade do século XX, foram um outro momento objeto desses acontecimentos. Milhares, centenas de milhares, milhões de homens, mulheres e crianças cruzaram os oceanos em busca de uma utopia, em busca de novas querências, nas três Américas e nos demais continentes. Em qualquer um dos destinos, na América do Norte, na América Central e na América do Sul, no Brasil, na Rússia, na Namíbia ..., a mulher forte e corajosa, destemida e, contudo, consciente do seu papel  feminino de mãe, esposa e companheira fiel, acertou o passo no mesmo ritmo do homem, quando se tratava de enfrentar o desconhecido e fazer a sua parte. Não poucos artistas foram de uma rara felicidade ao fixar para a posteridade, em monumentos comemorativos, as figuras de tais mulheres. Uma destas representações encontra-se no porto de Puerto Montt, em homenagem aos imigrantes alemães que colonizaram o Sul do Chile. Na frente caminha o homen com machado na mão em atitude de desafio  à floresta desconhecida e, um pouco atrás, a mulher com o filho pequeno nos braços e   o outro um pouco maior ao lado. De cabeça erguida parece encorajar o homen: “Abre a primeira trilha, limpa a primeira clareira, construa o primeiro abrigo, que eu tenho consciência da parte que me cabe e darei conta dela no que der e vier”. 

As histórias e reflexões sobre as mulheres entre os imigrante e seus descendentes no sul do Brasil, valem também para as imigrantes italianas vindas do norte daquele país. As  populações daquelas regiões descendem basicamente dos Cimbros e Teutões, dos Ostrogodos, Visigodos, Alamanos, Longobardos e demais grupos germânicos que cruzaram ou contornaram os Alpes e se fixaram definitivamente naquela região. Valem também para os imigrantes poloneses, rumenos, lituanos, belgas holandeses, suecos, noruegueses, teuto-russos e outros. Não menos significativo vem a ser o monumento ao imigrante em Caxias do Sul. Localizado no quilômetro 150 da Br 116. Retrata um jovem casal, a mulher com a criança pequena no colo e o homem com a enxada no ombro direito e a mão esquerda sobre a testa, olham para a vastidão de terra na qual construiriam uma nova “querência” na “Mérica”, tema de uma das canções tão emblemáticas, cantada ainda hoje pelos descendentes dos imigrantes italianos em momentos em que recordam suas raízes e seus antepassados pioneiros imigrados da Itália.

Dos vinte contos dialetais escritos pelo Pe. Balduino Rambo, caracterizando a obra colonizadora dos alemães no Sul do Brasil, com seus personagens e atores, três  são dedicados  inteiramente  à mulher. Já os títulos são sugestivos: “Susana Bitterselig”, “Bárbara Pannekuche” e “Festa do Batizado”. O primeiro começa com uma caracterização fiel das circunstâncias em que a mulher imigrante foi obrigada  a viver. Susana a mulher forte do colono Cristóvão conta.

Meu pai comprou uma colônia de terra na Picada do Pote do Leite, na época  em que lá ainda era tudo mato. Nos primeiros anos morou numa casa que não era muito mais do que uma choupana. Naquela choupana miserável nascemos os cinco mais velhos. Não éramos  ricos, mas nunca faltou comida e todos tínhamos saúde. O mato em volta estava cheio de animais selvagens. Os bugios andavam sobre os galhos da grande figueira ao lado da estrebaria e, nos dias de chuva faziam música. Meu pai costumava dizer que era a companhia de músicos da Picada do Pote do Leite. De noite, quando escurecia, escutava-se com frequência o urro da onça no alto do morro. Nós crianças corríamos para dentro de casa e nos escondíamos debaixo das camas. Também o nosso cachorro perdia a coragem e nos acompanhava para dentro de casa. (Rambo, Balduino, 2.002, p. 67-68)

Não há dúvida de que o êxito das colonizações também no Sul do Brasil, se deve tanto às mulheres quanto aos homens. Sem o seu comprometimento para a vida e para a morte, a obra não teria deitado raízes, muito menos prosperado. Os homens e, mais ainda as mulheres, deram tudo de si num grau heroico, mas infelizmente niveladas pelo anonimato. Mesmo que se conheçam poucos nomes  de figuras exemplares de mulheres, foi no anonimato que as Marias, as Margaridas, as Susanas, as Bárbaras, as Gertrudes, as Matildes, as Elisabethes, as Irmgards, as Hildegards, as Ingrids, as Anas, numa parceria de total compromisso com os Pedros, os Jacós, os Alfredos, os Nicolaus, os Matias, os Felipes, os Cristovãos, entregaram-se, sem restrições e sem reticências, à missão que lhes fora confiada e a levaram a bom termo.   

Bicentenário da Imigração - 5

A mulher na sociedade germânica

Entre os povos germânicos pré-cristãos e no raiar do cristianismo, é notória a posição de destaque que as mulheres ocupavam em todas as situações. A mulher germânica, de forma alguma, deve ser vista como uma criatura do assim chamado “sexo frágil”, necessitando de constante proteção, nem tampouco como uma fatalidade biológica indispensável para a procriação e a satisfação do homem, ou como uma besta de  carga responsável pela criação dos filhos e a administração da casa. A mulher germânica costumava estar ao lado do seu homem para o que desse e viesse. Essa constatação  nada mais é do que uma consequência óbvia quando se analisam, por exemplo, as migrações dos povos entre os séculos quarto e nono. Não foram apenas  incursões de guerreiros e conquistadores no sentido corrente do termo mas, povos inteiros que se movimentavam, migravam e  terminavam por se fixar em terras longínquas. As vanguardas de combatentes abriam caminho e a eles seguiam de perto as mulheres e os filhos. Compartilhavam os riscos e privações, encorajavam os homens, orgulhavam-se dos seus feitos e do seu heroísmo quando tombavam nos combates. Costumavam carregar no cinto um pequeno punhal e dele se valiam quando a necessidade o exigia. Ocasiões houve em que as mulheres se envolviam diretamente nos combates. Relatos históricos dão conta de que esta era, na prática, a rotina das mulheres dos Cimbros e Teutões, em migração para além dos Alpes e na conquista do Norte da Itália. 

Figuras femininas germânicas como Hertwiga, companheira de Odoaker, mortalmente ferida em companhia do marido na batalha de Ravena no final do século V, tornaram-se exemplares na história desses povos. Entre elas, merece destaque, por exemplo, Veleda, a mais famosa vidente conhecida entre os germanos pré-cristãos. Do alto de uma torre na Vestfália, distribuía seus conselhos a integrantes  das tribos da região, inclusive aos romanos, que costumavam procurá-la. 

Tácito, ao ressaltar a posição de destaque de que a mulher gozava na antiga sociedade germânica, além de registrar a sua admiração pessoal por ela, perseguia também um objetivo pedagógico. As mulheres germânicas deveriam servir de exemplo para a sociedade romana  como um todo em decadência, mas principalmente para a mulher romana em particular. 

A cristianização dos povos germânicos em nada afetou o lugar tradicional da mulher. Sob certos aspectos até o sublimou. Houve uma preocupação muito grande da parte dos missionários em preservar tudo o que de positivo havia naquelas tradições em relação à mulher, ao seu papel e à imagem da sua personalidade forte e marcante. A Igreja deve, de fato, muito às mulheres germânicas, principalmente no período da cristianização dos povos a que pertenciam. Lendárias  tornaram-se as figuras da esposa de Ehlowig, uma princesa cristã borgúndia, que tem o seu nome indelevelmente  vinculada à conversão dos francos; a princesa bávara Theodolinde, que ajudou São Columbano a construir o mosteiro de Bobio; a participação da princesa da Turíngia, educada num convento francônio, foi decisiva na cristianização do próprio povo. A conversão dos anglo-saxões  por missionários enviados pelo papa Gregório, só pôde ser levada a bom termo com a interferência de Ethelbert, rei dos anglo-saxões, e uma princesa  cristã da casa real dos francos. O acima citado A. Stonner, não hesita em afirma.

Presenciamos também como essas mulheres  germânicas passaram por uma sublimação interna pessoal, fato que faz parte  daquilo que há de mais belo e acende uma luz em meio às perturbações daqueles tempos, não poucas vezes selvagens. (Stonner, 1934, p. 37)

Na companhia dos grandes missionários responsáveis pela cristianização da Europa Central e do  Norte, encontram-se invariavelmente personalidades femininas. Deram tudo de si  para que a obra prosperasse e, em não poucos casos, garantiram a continuidade da obra começada, quando os missionários partiam para novas frentes de envangelização ou vinham a faltar por outro motivo qualquer. Nesse sentido há notícia de uma mulher Viking de nome Friedeburg e de sua filha Kathle, que permaneceram fieis à fé cristã, mesmo após a expulsão do bispo Gautbert e dos missionários sob sua orientação e o povo voltou a venerar os deuses pagãos. Merecem ser citadas algumas personalidades femininas na vida e atividade cristianizadora de São Bonifácio, cognominado apóstolo da Alemanha. Entre elas destaca-se a anglo-saxônica Eangyth, que presidiu um mosteiro duplo para monges e monjas, uma realidade, para a nossa maneira atual de ver as coisas, um tanto estranha. Não é difícil de imaginar o que o cargo vinha a exigir da abadessa em termos de sabedoria na condução e energia em fazer valer a disciplina monástica, numa instituição que abrigava, por vezes, várias centenas de monges e monjas. Em sua correspondência com São Bonifácio fala da responsabilidade de manter, num bom patamar, tanto no regime disciplinar como na conduta monacal e, ainda, administrar  os desentendimentos internos, de modo especial entre os monges. 

No fim o autor acrescenta a observação de que essas mulheres, de forma alguma, foram  personalidades masculinizadas. A prova encontra-se novamente na correspondência da abadessa Eangyth com São Bonifácio e em outras correspondências de mulheres da época. Ele próprio definiu o significado da presença feminina da abadessa na sua vida,  ao chamá-la  “solatium peregrinationis meae” – “consolo da minha peregrinação”. 

Uma segunda figura feminina que acompanhou São Bonifácio e colaborou na fundação e condução do mosteiro de Fulda foi Lioba. Filha única de grande amigo do santo, deve ter sido uma mulher dotada de uma sabedoria enérgica e de uma autêntica  personalidade feminina. Este relacionamento fraterno, íntimo, comprometido entre personagens paradigmáticos do cristianismo da época, com figuras femininas igualmente exemplares, não foi, de maneira alguma, excepcional. Fazia parte  da natureza do próprio cristianismo e da sua consolidação no mundo bárbaro. Os exemplos poderiam ser multiplicados ao indefinido. Não é o objetivo do presente trabalho. Concluímos com a observação de Stonner em seu livro intitulado “Cristandade e Germanidade”.

O que na fundação da Igreja parecia uma perspectiva promissora, ao observarmos a colaboração com que Paulo contou na sua obra missionária, ressurgiu aqui, após longa estagnação, numa exuberância somente explicável pelo respeito que os germanos cultivavam pela mulher. Infelizmente, este florescimento não foi duradouro. Este grau de valorização das grandes mulheres durou apenas até o tempo dos Otões, Hartsvit de Gauderheim, tão grande como escritora quanto como poetisa, bem como Adelheid, Gerberga e, ainda, de Mechtild de Quedlingburg e a imperatriz Kunegunde, foram mulheres deste formato. (Stonner, 1934, p. 45-46)

Embora, conforme a avaliação de Stonner, as grandes mulheres, as mulheres que marcaram época e fizeram a história entre os povos germânicos da Antiguidade e da Idade Média, se tivessem  tornado uma raridade, elas estão presentes e, principalmente, foram decisivas mesmo no anonimato, em momentos dramáticos da história posterior. E um desses momentos foram sem dúvida os anos logo depois da Segunda Guerra Mundial. O Holocausto merece com justiça um destaque proporcional à sua importância a ele dedicado pelos historiadores. Mas, há um outro aspecto da guerra e, principalmente, suas conseguências pouco destacado. Alemanha fora sistemticamente arrasada pelos borbardeios aéreos e os combates terrestres. Cidades sem qualquer importância estratégica, como Dresden com suas galerias de arte, museus, pinacotecas e arquitetura admirada pelos historiadores, artistas e os visitantes comuns, foi reduzida em três dias a escombros por sucessivas ondas de centenas de bombardeiros. Pilhas de corpos de crianças, mulheres e idosos ocupavam ruas e praças. Dezenas de outras cidades não escaparam ao bombardeio diário dos aviões dos aliados. E, a vinvasão por terra a partir do oeste pelos ingleses, americanos e franceses e a partir do leste pelos russos, arrasaram o que escapara dos bombardeios. Em meio a esse caos generalizado o maior preço foi pago pela população civil. A população masculina de jovens, adultos incluindo homens de 50 ou mais anos, ou morrera nas frentes de combate, ou caíra prisioneira e confinada nos campos de prisioneiros e, na frente leste, incontáveis deles confinados nos campos de trabalhos forçados na Sibéria. 

Acontece que a história das guerras costuma ser contada e registrada pelo viés dos vencedores. A tragédia que a população da Alemanha vencida enfrentou durante o conflito e os anos que o seguiram, senão ignorada, passou à margem dos interesses dos historiadores que se ocuparam ou ocupam ainda com com aquele período. Poucos são os livros e outras formas de registro que lançam alguma luz sobre  o quotidiano dramático das mulhres, crianças e idosos atônios e desnorteados, que perambulavam às centenas de milhares, senão milhões, sem abrigo, sem alimento, sem assistência, procurando de alguma forma sobreviver e tentando vislumbrar algum sinal que alimentasse os restos de esperança de um possível futuro menos sombrio. Ja em fase de uma rápida e espantosa recuperação da Alemanha tive acesso a dois livros, um deles com o titulo “Der Tod Dresdens” (A morte de Dresden) e  segundo “Heldentum deutscher Frauen” (O heroísmo de mulheres alemãs). “A Morte de Dresden” descreve em detalhes o horror daqueles dias 13, 14 e 15 de fevereiro de 1945. Em sucessivas levas 1.300 bombardeiros despejaram 3.900 toneladas de bombas, muitas delas incendiárias sobre a cidade apelidada  de a “Florença do Elba”. A estimativa de mortos, na sua totalidade civis oscila entre 250.000 e 500.000. Como já alertamos mais acima, Dresden não foi uma cidade militarmente estratégica. Há-os que defenderam o bombardeio, mas 70 anos depois do episódio a opinião de historiadores, analistas e estrategistas  igualam essa destruição, somada a muitas outras cidades sem importância militar, ao holocausto e afirmam tratar-se de autênticos crimes de guerra. Ninguém foi responsabilizado porque, afinal coube aos vencedores permitir que esse verdadeiro genocídio fosse perpetrado. Com esse breve resumo sobre a tragédia de Dresden e dezenas de outras cidades, tive com objetivo a contextualização  da reação das mulheres alemãs principalmente em situações extremas. A resposta para essa cacterística fica explícita no também já citado livro “O Heroísmo de Mulheres alemãs”. (Heldentum Deutscher Frauen). Não é aqui o lugar para me ater exaustivamente às violências cometidas pelas tropas de ocupação nos dois fronts, em termos de  estupros, assassinatos, torturas e outras tantas agressões impostas pelos vencedores a mulheres de todas as idades.

Terminada a guerra os novos líderes da Alemanha subsidiados pelo “Plano Marshal” não perderam tempo para reconstruir o País. Foi neste cenário que que se fez presente a figura da “Trümmerfrau” – “A Mulher dos escombros”. Estima-se que só em Berlim 60.000 delas foram responsáveis pela remoção dos tijolos, madeiras e demais restos de construção que cobriam as ruas, avenidas, e praças. Com carrinhos de mão, carrocinhas improvisadas e com as mãos desprotegidas separavam os tijolos, os limpavam e empilhavam para serem reaproveitados na reconstrução. Amontoavam os entulhos inaproveitáveis em lugares estratégicos livrando os espaços para os profissionais programarem e executarem a espantosa obra da reconstrução das cidades pequenas e grandes arrasadas pela estupidez e a irracionalidade da guerra. Dezenas de milhares de viúvas, mães, noivas e moças solteiras que choravam os maridos, os filhos, os noivos e os irmãos, tombados nas frentes de combate, desaparecidos ou confinados em campos de prisioneiros e/ou de trabalhos forçados, reuniram-se como que num exército de assalto, que tornou, em grande parte, possível o duro remeço. As atuais gerações da Alemanha fariam bem em construir um monumento em homenagem às  suas avós e bisavós que sozinhas com as mãos esfoladas, os pés maltratados,  com o coração sangrando, mas indômitas como suas ancestrais formaram as brigadas das “Trümmerfrauen – das “Mulheres dos Escombros”. E, voltando à reflexão que motivou essa digressão observa-se, respeitadas as devidas circunstâncias, uma paralelismo nada forçado entre o perfil das “Mulheres dos escombros” de Berlim e outras cidades e suas contemporâneas, as “Mulheres da floresta virgem”, no Rio Grand do Sul, no Alto Uruguai, Oeste e leste de Santa Catarina, oeste do Paraná 



Bicentenário da Imigração - 4

Personalidades fortes

Personalidades dotadas de um físico robusto e sobretudo dotadas de um caráter sólido, retilíneo, coerente, acompanharam sempre os grandes lideres, os grandes chefes, os reis e imperadores, os comandantes nos campos de batalha, os príncipes na condução dos seus domínios, os bispos à testa das suas dioceses, os missionários na pregação do evangelho. Entre eles não havia lugar para fracos, para pusilânimes e, menos ainda, para medrosos e covardes. Tanto os povos germânicos conhecidos por Tácito, como seus herdeiros mais de dois mil anos depois, se renderam como se rendem ainda ao fascínio e à mística das personalidades fortes. É neste contexto que é preciso entender a afirmação de Anton Stonner, ao mostrar como, na cristianização da Europa Central e do Norte, a personalidade forte dos missionários foi decisiva. 

Avaliando-se (os missionários, religiosos e bispos) e empregando os mesmos conceitos da nossa terminologia atual, somos obrigados a dizer: os homens que protagonizaram a conversão ao cristianismo, conquistaram o reconhecimento por meio da sua coragem, do seu arrojo e da solidez do espírito. Tornaram-se guias espirituais devido às suas qualidades de liderança, como se conta do abade de Corbie: Era um homem que falava pouco, realizava muito e dominava a pessoas com os eu olhar de fogo. (Stonner, 1934, p. 20)

O “olhar de fogo” que impressionou tanto o cronista do abade de Corbie, reaparece em relatos cronologicamente muito próximos a nós, caracterizando missionários vindos da Europa para o Sul do Brasil. Num dos seus famosos contos em dialeto, o Pe. Balduino Rambo, conta como foi a primeira visita do padre Johannes Rick, originário do Tirol do norte na Áustria, aos colonos pioneiros na fronteira de colonização no oeste de Santa Catarina, na década de 1930. 

O padre chegou a cavalo. Era um homem enorme, de ombros largos, braços compridos, punhos imensos, cabelos negros e o rosto cheio de sulcos e rugas, como que esculpido num tronco de louro. Quando apertou as mãos dos pioneiros e os encarou com seus olhos castanhos, todos se convenceram: este é o padre certo para nós. Não é de “frescuras” e, com seus olhos, nos penetra a nós colonos, até os ossos”. (Rambo Balduino, 2002, Vol. I. p. 288)

No mesmo contexto o autor põe na boca de um líder do grupo de pioneiros, o espírito que os animava ao enfrentarem a mata virgem. Depois de contar as peripécias próprias dum começo como aquele: seca, praga de gafanhotos, peste suína, ataque de bandos de revolucionários, perseguição política etc., concluiu:

Olha, padre, e tudo isso não nos abateu a nós moradores emigrados da Picada do Pote do Leite. Somos como aquela canafístula no alto do morro. Nenhuma tormenta conseguiu abate-la. Floresce todos os verões e não se importa se sobre seus galhos andam os macacos e os coatís e sobre eles pousam os urubus.
 (Rambo Baluino, 2002,Vol. I, p. 294

Ilustrativo é também o depoimento de um antigo aluno do Ginásio Conceição, em São Leopoldo, no início do século XX, Aparício Torelli, o Barão de Itararé. Na despedida, após concluir os estudos, descreveu assim um dos seus mestres, o mesmo  jesuíta tirolês citado há pouco, descendente, portanto, dos alamanos que se fixaram na região dos Alpes, no século quarto e quinto da nossa era. 

Como último na portaria, topei com o Pe. Rick. Pousou suas mãos incrivelmente grandes sobre os meus ombros, cravou seus olhos castanhos puxando para o amarelo, nos meus, perguntou-me com uma voz que retumbava como o canto de guerra dos germanos: “Então, meu filho, o que pretendes ser?” Respondi, tremendo que pretendia estudar direito. “Tu e jurisprudência! Vai meu filho. De ti nunca sairá algo que preste!” Lembrando-me do total fracasso na matemática, anotei a terrível profecia. Desisti da jurisprudência e entrei no círculo dos literatos. Com que sucesso? Deixo que meus leitores decidam. (Rick, 2004, p.19)

Os depoimentos que acabamos de registrar soam, na verdade, como o eco dos antigos escritores que foram os grandes admiradores da natureza humana em seu estágio primigênio: um misto de rudeza e autenticidade, que marcavam os povos germânicos. César relatou.

Consta, conforme nos informam os nossos, o que nos relatam os gauleses e os comerciantes, quando destacam nos germanos a enorme estatura, a incrível valentia e destreza nas armas. Contam que, ao se encontrarem com eles, não foram capazes de suportar o seu olhar e os seus olhos penetrantes. Isto atemorizou de tal forma o exército como um todo que a coragem deu lugar a uma perplexidade generalizada. (cf. Tácito, p. 87)

E Sêneca em “De Ira”, 11.

Quem é mais corajoso do que os germanos? Quem mais agressivo no combate? Quem mais dado às armas? Neste clima, nascem e são educados. Nisto depositam todas as suas preocupações, enquanto não dão valor nenhum às outras coisas. Quem é mais forte e mais temperado para suportar tudo? Na maioria dos casos, não dispõem de vestimenta para o corpo, nenhuma proteção contra o clima eternamente frio. Ensinai-lhes a ponderação, ensinai-lhes a disciplinar seus corpos e seus corações valentes, que não conhecem prazeres, que não conhecem vida tranquila, e estaremos de volta por assim dizer, aos autênticos costumes romanos. (Sêneca, p. 87)

Na  tradição germânica, o matrimônio monogâmico e vitalício, formava a base da família e ela, por sua vez, representava o fundamento último do edifício social. O papel da mulher não pode ser ignorado. Numa sociedade em que o arrojo, a valentia, a força física e moral ocupava o primeiro lugar entre as virtudes de um homem, a parceria com uma mulher igualmente  ousada e destemida, conferia a qualquer empreendimento uma dinâmica e um ritmo todo peculiar pois, como observou Stonner,

Também nesta parceria, isto é, na construção da cultura, da etnicidade como um todo, homem e mulher atuavam juntos como camaradas. E neste sentido é significativo como se avaliam mutuamente, e qual a atitude externa e interna que cultivam um em relação ao outro. (Stonner, 1934, p. 37)

Bicentenário da Imigração - 3

Amor à natureza e ao torrão natal

Não há necessidade de encarecer que os povos da antiga Germânia, vivendo a sua história em contato  diuturno com a natureza, cultivassem com ela uma relação íntima e existencial. As decisões importantes e de interesse comum, costumavam ser  tomadas em assembleias da comunidade, da tribo ou da parentela, na sombra dos bosques, nas proximidades de fontes, de arroios ou sob a copa de carvalhos sagrados. Nesses ambientes, aconteciam também os cultos em que se veneravam as divindades personificadas em fenômenos ou entes naturais, como o sol, a lua, a mãe terra. A religião dos antigos germanos foi uma religião profundamente enraizada na natureza. Nela se venerava a terra, a água, o fogo, o sol, a lua, o dia, as estações do ano, a tempestade, a tormenta, a germinação, a fertilidade, o explodir da brotação e o fenecer da vegetação. Numa invocação anglo-saxônica, a terra é saudada como a mãe dos homens. “Glória a ti, mãe dos homens”. Tácito ao falar sobre as crenças germânicas, destacou que  a terra gerou originalmente o deus Tuisto, do qual descende Manus, o que significa homem, e este novamente gerou três filhos, que foram os ancestrais dos germanos. O culto ao sol, à lua e às estrelas foi imortalizado em imagens de ouro e, ainda hoje é lembrado, quando, no alemão, o domingo é o dia do sol –“Sontag”, a segunda-feira é o dia da lua -“Montag”, Donnerstag-dia do Trovão. Muitos outros exemplos poderiam ser enumerados.

Quando, dois mil anos mais tarde, os descendentes remotos desses povos se fixaram no sul do Brasil, trouxeram consigo, como herança preciosa, mais esta faceta dos seus ancestrais. Uma compacta floresta subtropical cobria as áreas destinadas pelo Império do Brasil, para serem povoadas  pelos imigrantes procedentes da Europa do Norte e Central. Comparadas com as florestas europeias, notava-se uma diferença flagrante. As espécies dominantes  naquelas, nessas foram substituídas por outras desconhecidas na Europa. Em vez de carvalhos, faias, abetos, tílias, plátanos, castanheiras, bordos, bétulase outras mais, as responsáveis pelo perfil da mata virgem brasileira, eram louros, cedros, cabriúvas, angicos, cangeranas, canafístulas, grápias, araucárias e outras tantas. Além das araucárias em altitudes maiores, inexistiam coníferas de importância  numa floresta em que, espécies de folhas em parte perenes se alternavam com espécies de folhas caducas. Sob as copas dos gigantes vicejava uma vegetação arbustiva  e rasteira, em muitos casos, impenetrável pela densidade, pelo emaranhado e pelos espinhos. Agarrando-se e subindo até as copas mais altas, dezenas de espécies de cipós, tornavam a penetração e o  trânsito pela floresta ainda mais desafiador. Com essas características, a primeira visão da floresta brasileira não deixou de assustar, de impressionar, ao mesmo tempo, de despertar um profundo fascínio nos filhos das florestas germânicas. Sentimentos deste tipo encontram-se registrados em relatos de viajantes e em depoimentos dos próprios colonizadores. Avé-Lallemant assim pintou a impressão que teve ao avistar a Walachei e  o Jammertal:

A visão da Walachei e do Jammertal é grandiosa. Será difícil encontrar sequências tão selvagens de mata como aquelas. É difícil localizar as áreas cultivadas no fundo escuro das gargantas. É preciso coragem para embrenhar-se no vale, antigo refúgio de índios, onças e tapires. (Cem anos de germanidade, 1924, p. 103-104)

Um outro componente que conferia àquelas matas um toque adicional de mistério foram as montanhas da região, elevando-se a altitudes de até 800 a 900 metros, inteiramente cobertas  de mata fechada. Nas encostas, formando escarpas, gargantas e peraus, cavernas, refúgios e abrigos naturais serviam, desde tempos imemoriais, de esconderijo para onças, pumas, jaguartiricas e porcos do mato. Nos galhos e nas copas das árvores, reinavam soberanos, os bugios, os micos, os coatís e uma infinidade de espécies de pássaros de todos os tamanhos e coloridos, enchendo a penumbra da mata com a  sinfonia dos seus gritos, pios, assobios e cantos.

Não demorou e os colonizadores se depararam com um inesperado fator de temor e constante sobressalto. Nos matos de toda a região, vagavam seminômades as tribos dos indígenas espoliados de suas terras. Pensando bem, pelo princípio do “ius primi possidentis”, eram eles os legítimos donos daquelas terras. Do seu ponto de vista  os imigrantes não passavam de usurpadores dos seus  domínios. De outra parte, porém, os colonos não alimentavam a mínima dúvida de que as terras que estavam ocupando, lhes foram legitimamente entregues pelas autoridades imperiais, cuja competência ninguém discutia, ou doadas, adquiridas por ocupação ou, mais tarde, por compra.

O que interessa não é a discussão em torno da legitimidade ou não-legitimidade em relação à posse daquelas terras, nem pelos imigrantes, nem pelos nativos. O importante é mostrar como a floresta que os imigrantes foram obrigados a enfrentar, oferecia  mais este complicador. Encontros diretos com os índios, com os “bugres”, como eram chamados no quotidiano da colônia, contam-se em poucas dezenas. Limitam-se a alguns raptos de crianças e mulheres, alguns assassinatos e assaltos a propriedades, seguidos de roubos de animais e produtos das roças. 

Em poucas palavras, foi esta a floresta oferecida aos imigrantes com a finalidade de transformá-la em terra arável e produtiva: uma floresta exuberante, imensa, densa, quase impenetrável, exercendo uma atração carregada de temor ao desconhecido e, ao mesmo tempo, alimentado pelo imaginário  de uma terra de promissão. A literatura regional em língua alemã, tanto na erudita, quanto na dialetal, dão conta do fato em inúmeras referências. Como amostra alguns exemplos.

Sempre que um grupo de pioneiros dava início à abertura de uma nova picada e principalmente a uma nova fronteira de colonização maior, fazia proceder o começo da obra, com um ato religioso, de preferência uma missa ou um culto quando se contava com a presença de um padre ou um pastor. O ato era realizado na sombra dos gigantes da mata, no clima místico inspirado pela penumbra e aos sons melodiosos das criaturas da floresta. O P. Ambros Schupp relata que a implantação da Colônia de Santa Cruz do Sul teve como ato inicial uma missa rezada sob uma vigorosa figueira do mato. Fato similar foi registrado  para o início da colonização de Cerro Largo e mais  tarde, Porto Novo, no oeste de Santa Catarina.

O fascínio pela mata virgem foi de tal ordem que o termo “mata virgem” – “Urwald” vinha acompanhado por um apelo irresistível. Do quotidiano dos imigrantes faziam parte  termos como “colono da mata virgem”, “pioneiro da mata virgem”. “gigantes da mata virgem”, (Urwaldbauer, Urwaldpionier, Urwaldboden, Urwaldriese ...). Nos relatos históricos sobre a imigração e colonização alemã no Sul do Brasil,  fala-se até numa relação quase doentia com a mata virgem, que fazia com que não poucos fossem incapazes de viver longe dela. Encontravam-se em constante migração para novas fronteiras de colonização. Falava-se nesses casos da “doença da mata virgem” – “Urwaldkrankheit”. 
 
Numa conversa sobre os novos assentamentos no rio Uruguai, Josefine Wirsch  confirma esse espírito da boca de um colono de meia idade: “Se minha mulher e meus filhos estivessem de acordo”, afirmou com emoção, “como gostaria de novamente participar na derrubada da floresta virgem e recomeçar tudo do começo”.

“Como pode fazer essa afirmação”, ousei interromper, “Como é possível  o senhor desejar tal coisa”! O senhor com a sua rica propriedade, na qual tudo está organizado; com sua bela criação de animais e a bela terra, tudo resultado do seu trabalho”.

“Aí está e exatamente a questão” e pôs-se em pé e cruzou os braços. “Aqui tudo está feito, tudo arável. Isso já não se chama mais um trabalho de verdade. A senhora não se pode imaginar que disposição resulta do enfrentamento com a floresta virgem, arrancar dele pedaço por pedaço – Força contra força”!

Tive que admirar esse homem na sua postura – um homem robusto, os músculos temperados no enfrentamento com a natureza – num embate do qual saíra vitorioso e comecei a entender como é possível que, num trabalho sobre humano desses se esconda um fascínio que não deixa de cativar as pessoas.

A mesma opinião ouvi também de um dos sacerdotes pioneiros da florestas virgens. Num encontro do idoso senhor, referi-me à conversa com o referido colono. O idoso padre jesuíta, um figura veneranda com um comprida barba branca, falou: “Veja senhora, é o que costumo dizer, a floresta não nos larga. Como tenho saudades das minhas picadas na floresta virgem, dos meus pioneiros na floresta virgem, das minhas cavalgadas pela floresta virgem”! Falou essas palavras num tom de nostalgia. Durante décadas exercera a pastoral na região das florestas no Rio Grande do Sul e agora goza do merecido descanso numa simpática e bela povoação.

Parece que não há necessidade de insistir no fato de que os imigrantes procedentes da Europa Central e do Norte, apesar da distância geográfica e cronológica de muitos séculos que os separava das raízes, continuaram sendo, na sua essência, uma estirpe humana intimamente vinculada à floresta e alimentando-se de suas dádivas e valendo-se dos seus estímulos e símbolos. Sob a inspiração do entorno natural em que a floresta representava a realidade mais marcante, construíram, também em terras brasileiras,  todo um  imaginário e o transformaram num rico referencial simbólico de metáforas profundas, envolvendo o homem, a floresta e seus habitantes. 

A literatura histórica está repleta de exemplos que comprovam o que acabamos de afirmar. Enumera-las, mesmo em parte, extrapola os objetivos deste trabalho. 

Ainda hoje, é comum escutarem-se afirmações  como esta, entre os descendentes dos imigrantes europeus no sul do Brasil: “resistentes às intempéries” – “Wetterfest”; “incorruptível como o cerne da cabriúva”; “sólido como a canafístula”; “personalidade de um pinheiro”... Embora o entorno geográfico seja outro, assim como os referenciais simbólicos, o significado permanece o mesmo, apesar do tempo e do espaço que separam os ancestrais da Europa Central dos seus descendentes remotos no sul do Brasil. A história foi passando, mas não esquecida.

Bicentenário da Imigração - 2

A Gênese da Germanidade

Na sombra do carvalho

O Pe. Balduino Rambo definiu numa só frase a relação existencial  do homem com o chão em que vive e seu pertencimento ontológico a ele: “O homem filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria” (Rambo, 1942, p. 337). Sem tomar em consideração as circunstâncias físicas e geográficas, é impossível entender as histórias dos povos e a gênese das suas identidades étnicas. Na reflexão a que damos o sub título “Na sombra do Carvalho”, tentamos mostrar como essa afirmação encontra a sua confirmação na tradição cultural vivida pelos imigrantes alemães e seus descendentes no sul do Brasil. Desde a remota pré-História os povos germânicos dos quais descendem os “alemães” vindos para o Brasil, viveram e consolidaram suas tradições em meio às florestas que cobriam a Europa central e do norte. Pela sua imponência, seus troncos milenares, suas raízes sólidas encravadas no chão, o carvalho tornou-se o símbolo da história e da solidez do caráter étnico dos povos daquelas paragens, tão admirados por Tácito. Na sombra de carvalhos celebravam-se armistícios, decidiam-se guerras, celebravam-se as efemérides importantes das comunidades. A derrubada do carvalho sagrado por São Bonifácio convenceu os germanos de que o Deus dos cristãos era mais poderoso do que Thor, e em massa, converteram-se ao cristianismo. 

A “Sombra do Carvalho” como metáfora cobrindo  vastas regiões da Europa e, pela emigração avançou sobre países em outros continentes, também sobre o Brasil, a partir do sul. Onde quer que a “sombra do Carvalho” convida para a reflexão, estão presentes também as características do “rebento do carvalho”, transplantado para o Brasil: O amor à natureza e à querência natal – a Heimat; a paixão pela floresta virgem como cenário de múltiplos simbolismos; a família como núcleo da comunidade e esta como base da sociedade mais ampla; o papel da mulher na sociedade germânica; a lealdade aos chefes; o fascínio pelas personalidades fortes; a retidão de caráter; a religiosidade.

Floresta e germanidade
Depois desse panorama introdutório passamos a concentrar a atenção no cenário no qual,  nos últimos dez mil anos, consolidou-se a gênese de uma estirpe humana, de uma civilização que terminou por projetar a sombra da sua influência sobre vastas áreas, também fora da Europa.

Em linhas gerais essa paisagem de florestas estendia-se entre o Reno, os Alpes, o Mar do Norte, o Báltico e no leste até as imensas estepes da Rússia. Uma poderosa floresta mista na qual se alternavam os gigantes de folhas caducas com outros gigantes de agulhas perenes. Abetos, álamos, pinheiros, bordos, tílias, castanheiras, plátanos e o soberano de todos, o carvalho com suas variedades, reinavam nessas florestas. 

Pois foi nas entranhas das florestas da Germânia que nos últimos dez mil anos dezenas de estirpes, tribos e povos, consolidaram as bases de uma civilização rica, vigorosa e em extremo dinâmica. E nesta história o carvalho, a mais vigorosa, a mais frondosa, a mais duradoura e a mais longeva das espécies daquelas florestas, transformou-se no símbolo das culturas em formação. 

Na antiga mitologia germânica, o deus da guerra está associado ao carvalho. Quando no século XIX, as ondas nacionalistas e restauracionistas que seguiram à derrocada do império napoleônico, buscavam voltar aos tempos ideais anteriores à Revolução Francesa, o carvalho e Thor retornaram. Neles se viam as raízes do antigo, da fidelidade, do duradouro. Nas pinturas de Caspar Friedrich (1774-1840), o maior expoente do romantismo alemão na pintura, o carvalho, sempre de novo, vai aparecer ao lados dos túmulos de heróis ou junto a mosteiros. Nos heróis e nos mosteiros, os carvalhos, cujos troncos estão repletos de  nós e nódulos, que não se vergam e cujas raízes remontam à longa ancestralidade, são testemunhos da fidelidade. A durabilidade de suas raízes, aliás, é metáfora para todo aquele que não nega as suas origens e que lhes é fiel. (Dreher, in o Rebento do Carvalho, 2002, p. 3)

Fica mais do que claro nesta citação de Martin Dreher como nas entranhas das florestas da Germânia, uma única espécie de árvore, o carvalho, reuniu em si, como que  numa síntese, o significado, a essência, os valores de uma história cultural. Na sombra dos carvalhos reuniam-se os guerreiros germânicos para reafirmarem perante si mesmos, perante os companheiros, perante o seu povo e, principalmente, perante Thor, o compromisso, o juramento de fidelidade às divindades, ao povo, à tradição, às raízes, com todos os seus valores. No decurso de séculos e milênios consolidou-se  na sombra dos carvalhos da Germânia a linha mestra que até hoje marca  o perfil das instituições que, de alguma maneira, são suas herdeiras: as famílias reunidas em comunidades, em estirpes e em parentelas. Nesta organização de base resolviam-se  todas as questões de interesse comum. Os conselhos tribais julgavam os desvios de comportamento e os crimes que afetavam a harmonia interna ou abalavam as estruturas comunais, ou simplesmente as afrontava. Aplicavam-se penas aos infratores inclusive a pena de morte nos casos mais graves. Não importava se era o todo da  assembleia comunal que decidia ou se a decisão era confiada aos anciãos, aos conselhos escolhidos pelos membros da comunidade, da tribo ou da estirpe. Todas essas modalidades de organização tinham na sua base, na sua essência, a mesma concepção organizacional da sociedade: a família monogâmica congregada em torno de um conjunto de valores sociais, éticos e religiosos, aceitos e defendidos como pressupostos para o bem estar do indivíduo e da coletividade. Ao grupo local cabia zelar pela observância das regras, dos dispositivos e instrumentos que a tradição e a longa prática haviam consagrado. 

Vale a pena examinar mais a fundo alguns dos componentes mais significativos que moldaram o caráter histórico e cultural dos povos da antiga Germânia. Muitos deles entraram como traços constitutivos da cultura ocidental amalgamados com a herança grega, romana e cristã. É notável como, em momentos históricos decisivos, em que os herdeiros  remotos dos antepassados germânicos participaram ou foram os protagonistas principais, muitos desses traços marcantes afloram, ou irrompem com todo o seu vigor primigênio. Momentos como a invasão dos bárbaros no Império Romano, as expedições dos Normandos e Vickings, a conquista das Américas não deixam dúvidas. A colonização por povoamento das mesmas Américas e parcelas de outros continentes, no decorrer dos últimos 200 anos, o arrojo e a ousadia dos navegadores e exploradores, o espírito com que os missionários se entregaram de corpo e alma às missões  em todos os continentes, permitem ler nas linhas e perceber nas entrelinhas, os mesmos elementos dinâmicos. Tentamos apontar os mais significativos.

Bicentenário da Imigração - 1

Introdução

No dia 25 de julho de 2024 comemora-se a data do bicentenário da imigração alemã no Brasil. Entre as muitas modalidades para lembrar a efeméride, constam publicações referentes à essa história. Como  nos últimos 30 anos dediquei grande parte do meu tempo, das minhas pesquisas e publicações, com foco nos diversos aspectos da inserção dos imigrantes alemães e seus descendentes no todo da nacionalidade brasileira, decidi-me  oferecer aspectos significativos dessa trajetória ao público interessado. A grande maioria das matérias da série que segue, foi publicada em revistas especializadas de dentro e fora do País. Pelas suas características cabe à  série o título: Flagrantes dos 200 anos da Imigração Alemã no Brasil. Começa com uma reflexão sobre a “Gênese da Germanidade e a comparação da presença alemã na América Latina, com ênfase para a Argentina, o Chile e o Brasil, desde o período em que esses países ainda eram colônias da Espanha e Portugal e depois de se tornarem independentes. O objetivo central, porém, é a imigração alemã no Brasil, com destaque para lances de maior significado nesta história que completa  dois séculos.

A presença alemã nos diversos países da América Latina seguiu em todos eles um modelo muito parecido. No período colonial dos primeiros três séculos, os encontramos integrando a tripulação dos navios espanhóis e portugueses como peritos em navegação, como canhoneiros, como escrivães de bordo, integrantes dos batalhões de conquista, etc. Logo depois da consolidação das primeiras  praças de comércio entram em cena comerciantes alemães, muitos deles a serviço de importantes casas como os Welser e Fugger, da Companhia das Índias, e outras. Nestes casos combinava-se, não raro, um misto de espírito comercial com o aventureiro que fez com que os personagens mais conhecidos tenham sido representantes paradigmáticos da mentalidade da época, na prática comercial, na implantação e consolidação dos empreendimentos mais diversos e na colocação das bases que posteriormente orientaram  a gênese, a dinâmica e a evolução da história da América Latina. 

A conquista da América Latina pelos portugueses e principalmente pelos espanhóis não pode ser entendida sem que se incorpore nela a conquista espiritual. O espírito que animava a conquista pelas armas, a conquista pelo controle das riquezas do continente, a conquista pela efetiva e definitiva presença ibérica, a conquista pelo povoamento, teve como alma, como justificativa, como uma das formas de legitimação, a conquista espiritual. Foi nessa ação que entraram os missionários das mais diversas ordens religiosas: franciscanos, dominicanos, mercedários e principalmente jesuítas. O geral da ordem dos jesuítas criara em 1607 a província do Paraguai, encarregando-a da “Conquista Espiritual”, como o Pe. Ruiz de Montoya classificou a missão da ordem na América Latina. Com a revogação da proibição imperial que impdedia a entrada de estrangeiros nas colônias espanholas, elevou-se consideravelmente o número de jesuítas de língua alemã  entre os missionários em atividade nas colônias do Prata e demais regiões do continente. Aos jesuítas alemães coube de modo especial a transferência de tecnologias e de conhecimentos artísticos de toda espécie trazidos da Europa. Otto Quelle, citado em “Die  Deutschen in Lateinamerika – Schicksal und Leistung, p. 46, resumiu numa frase a contribuição dos jesuítas alemães: “Fazendo-se um balanço da atividade desses missionários alemães em tantos lugares na América Latina no período que vai de 1660 – 1770, estamos diante da maior obra cultural realizada por alemães na América Latina, nos séculos XVII e XVIII”. (Fröschle, 1984,  p. 46)


Os alemães, além de participarem na exploração dos caminhos marítimos e terrestres de acesso a América Latina  e no interior de seus territórios, além de integrarem as equipes de missionários, principalmente jesuítas; além de contribuírem ativamente na implantação e na consolidação e ampliação do comércio; além de desempenharem um papel fundamental na pesquisa pioneira dos recursos naturais minerais, vegetais e animais; além de contribuírem decisivamente na transferência de todo o tipo de tecnologias trazidas da Europa para as colônias espanholas e portuguesas; além de tudo isso, os alemães  tiveram um papel de fundamental importância na história da vida pública das colônias e mais tarde dos países da América Latina. A sua presença e a participação foi determinante e em muitos casos decisiva na condução político-administrativa de vários dos mais importantes países do continente. Os casos mais exemplares encontramos no Brasil, na Argentina e no Chile.  Há, porém, um setor da história pública dos países latino-americanos, e, novamente com destaque para o Chile, a Argentina e o Brasil, em que a contribuição alemã não pode ser ignorada. Referimo-nos aos  alemães incorporados como soldados e principalmente como oficiais com patentes superiores nas tropas destes países. A organização, as táticas militares e principalmente o princípio da disciplina teve uma forte inspiração no modelo prussiano. Figuras proeminentes da história militar dos três países acima mencionados, foram oficiais alemães contratados para executarem  tarefas específicas ou foram oficiais que fizeram carreira nos vários exércitos, conquistando os postos mais altos na hierarquia. Exemplos concretos serão mencionados quando nos ocuparmos com cada um dos países onde a presença militar alemã foi mais visível e mais permanente. 

Durante o período colonial os alemães não chegaram a constituir grupos maiores estáveis muito menos comunidades étnicas. Muitos deles permaneceram definitivamente no continente, tiveram filhos com portuguesas, espanholas, crioulas, mestiças e com frequência com índias. Seus nomes sofreram corruptelas nos registros ou foram definitivamente substituídos por nomes espanhóis ou portugueses. Desta forma suas obras, seus feitos e suas contribuições relacionam-se mais com os indivíduos que as desenvolveram a convite de governos coloniais ou por conta própria, do que com as organizações ou centros de pesquisa que por acaso fundaram. 

Na maioria das vezes viviam com uma ou mais índias. Assim, conquistadores e conquistados amalgamaram-se num único povo. Também os descendentes dos alemães diluíram-se nessa raça mestiça europeia-índia. Na maioria dos casos seus nomes sofreram corruptelas pelos escrivães espanhóis ou hispanizados pelos próprios portadores”.  Depois da renúncia de Carlos V somente alemães esparsos chegaram até a América Espanhola. Desta forma o elemento alemão representa apenas uma gota na mistura de sangue da qual procedeu o “crioulo”. (Fröschle, 1984, p. 45.)

Nas páginas que seguem  tentaremos caracterizar a presença alemã no Chile na Argentina e no Brasil  durante o período colonial desses países. Mas como pano de fundo é preciso traçar o perfil desses imigrantes e em que circunstâncias históricas ele foi moldado.

Crônica de Bom Jardim ( Ivoti )

Zero Hora - Ed. 18 de março de 2022

Editora Oikos  Erny Mugge
Deitando Raízes 
Tradução e Organização Arthur Blasio Rambo 



Bicentenário da Imigração

Em 2024 comemoramos o bicentenário da Imigração Alemã no sul do Brasil. As postagens que seguem pretendem destacar aspecto importantes desse acontecimento.

Sumário
Apresentação
Introdução
A gênese da germanidade – Na sombra do Carvalho
Alemães na América Latina no período colonial
A imigração alemã nos século XIX e XX para a Argentina e Chile  
Imigração alemã para o Brasil no século XIX e XX.
A imigração para o Brasil  -  Propaganda e Realidade
Contribuições dos imigrantes alemães
Modelos de colonização
A dinâmica da expansão colonial
O Sul muda de fisionomia
O Caixeiro Viajante
A Igreja dos imigrantes
A religiosidade no quotidiano dos imigrantes
A Restauração Católica no sul do Brasil
A Missão dos jesuítas no sul do Brasil
A Escola comunitária e o Professor comunitário
O Projeto social dos jesuítas no sul do Brasil
Nacionalização e ação policial no Estado Novo
Religião e participação política
Práticas de Medicina
A educação do corpo – “Turnen”.
A imigração alemã e meio ambiente
A imprensa teuto-brasileira
A Trajetória da Integração
Bibliografia


Prefácio

“A história da humanidade é a história das migrações e suas consequências”. É com essa sentença que Karl Fouquet introduz a sua obra comemorativa dos 150 anos da imigração alemã no Brasil. Desde que a espécie humana surgiu, provavelmente, em algum lugar na África, começou a sua peregrinação, melhor, sua migração, pelo mundo afora. Antes de nos ocuparmos com um povo ou  povos concretos, frutos  próximos ou remotos de alguma migração, é oportuna a pergunta, à primeira vista singela, mas carregada de significados: porque os homens migram e como tal  a “história da espécie humana é o resultado de migrações e suas consequências”. Muito se tem escrito e falado com a finalidade de formular uma teoria consistente capaz de definir a essência da questão e avaliar os  resultados. Até teses de doutorado com títulos como “Teoria geral das migrações”, podem ser encontradas nas bibliotecas. Todos os caminhos explorados para entender o conceito “migrar, migrações” e porque os homens migram, a lendária sabedoria romana resumiu em quatro palavras: “ubi bene ibi pátria”, isto é., “onde as pessoas se sentem bem aí é a sua pátria”. Ninguém migra, ou abandona o local em que se sente feliz e lhe oferece as condições necessárias para realizar seus sonhos. Esta compreensão do conceito de migrar exclui evidentemente os viajantes em busca de aventuras em terras inexploradas, aventureiros, comerciantes, cientistas, legionários e outros mais que percorrem o mundo sem intenção de fixar-se definitivamente em algum lugar remoto e aí construir uma nova morada e dar início a uma nova história para si próprios e seus descendentes. O conceito aplica-se aos  migrantes que em qualquer época histórica partiram de suas terras de origem para se fixarem em outras e começar uma vida nova. Incluem-se nessa categoria os povos que desde a remota pré-história  foram ocupando os espaços habitáveis nos continentes e ilhas; incluem-se, principalmente,  as migrações intercontinentais ocorridas  nos últimos cinco séculos; incluem-se igualmente as migrações regionais e locais, a transferência das pessoas do meio rural para o urbano, que resultam num perpétuo recomeçar a vida. Os motivos podem ser os mais diversos: políticos, econômicos, religiosos, superpovoamento, oportunidades mais promissoras, e por aí vai. Resumindo, porém, tudo numa razão básica chega-se à conclusão que as pessoas migram para melhorar suas perspectivas de vida: “ubi bene ibi pátria”

Depois dessa reflexão introdutória faz-se oportuno destacar as “consequências” mais importantes que acompanharam as migrações transoceânicas, principalmente da Europa central e do norte  para as três Américas, à Austrália, sul da África, Nova Zelândia, com destaque para o sul do Brasil, objeto dos capítulos deste livro. 

A primeira consequência, diz respeito ao “desenraizamento” compulsório dos emigrantes que partiam para além do oceano sem nunca mais retornarem. Deixaram para trás, e para sempre, as terras que os abrigaram durante séculos e milênios e nas quais haviam deitado raízes profundas e sólidas. Nelas moldaram uma tradição robusta  sustentada  por valores individuais, familiares, sociais, éticos e religiosos que os acompanharam para o além dos oceanos. Enfim sacrificaram uma “Querência”, uma “Heimat” multissecular para construir uma nova em terras e circunstâncias completamente estranhas. 

Ao desenraizamento compulsório seguiu-se um novo enraizamento, também compulsório, nas terras desconhecidas que haviam escolhido para começar uma nova vida, uma nova história, uma nova “pátria”. Já que os “Flagrantes” que seguem tem como palco a imigração alemã para o sul do Brasil, centramos a nossa atenção em aspectos que determinaram e ainda continuam determinando os desafios que tiveram que ser enfrentados no  deitar raízes nessas terras. 

Em primeiro lugar os imigrantes foram encaminhados para se estabeleceram em florestas quase impenetráveis dominadas por espécies de árvores e vegetação secundária que assustavam e ao mesmo tempo mexiam com a imaginação dessa gente que cultivava na sua tradição toda uma simbologia inspirada nas florestas com seus carvalhos, faias, bétulas, castanheiras, coníferas e muitas outras, que dominaram originariamente toda Europa central e do norte,  e nas quais fora moldada a história e a personalidade desses imigrantes. Nas florestas do sul Brasil predominavam louros, cabriúvas, grápias, canjeranas, canelas, batingas, mata-olhos, angicos e no planalto florestas de majestosas araucárias. Foi preciso transferir a simbologia inspirada nas espécies europeias para as do sul do Brasil. Detalhes sobre esse processo seguem mais adiante nos respectivos capítulos. Da mesma forma os animais e as aves  nenhuma semelhança tinham com as espécies da Europa. Esparsos nessas florestas sobreviviam tribos de índios semi nômades valendo-se da  caça, pesca e agricultura primitiva. Nas áreas dos campos naturais dominavam os estancieiros com seus peões e na transição uma população fruto do encontro e caldeamento  luso-açoriano-indígina. Os Estancieiros criadores de gado na Campanha e de Cima da Serra ditavam as normas na política e tinham em mãos o poder econômico. 

O deitar novas raízes começou com o lidar com a floresta ao adotarem o modelo indígena da coivara para conquistar o solo  arável. Ao mesmo tempo aprenderam dos índios e lusos a cultivar milho, mandioca,  arroz, feijão, batata doce, cana de açúcar. Desde os primeiros anos da imigração os colonos alemães foram indireta e diretamente envolvidos nas turbulências  políticas, de modo especial na Guerra dos Farrapos. E assim de geração em geração, em contato com as novas circunstâncias geográficas e sócio-político e étnico-culturais, foi sendo moldado o perfil de um cidadão brasileiro  marcante, fruto do enraizamento do “rebento do carvalho  na terra das palmeiras” no entender do Pe. Balduino Rambo. Mas apesar dos 200 anos do desembarque dos primeiros imigrantes alemães no sul do Brasil e nascendo a nona geração dos seus descendentes as terras e tradições  de origem, deixadas para trás há dois séculos, embora profundamente modificadas, resistem ao tempo. A prova está no esforço de não deixar morrer a língua e os dialetos, as comemorações como os “Oktoberfest”, os encontros de famílias, a valorização da família e da convivência e compromisso comunal, o trabalho, o compromisso com princípios éticos fundamentais, a religiosidade e outros. E para  fechar essa apresentação sugiro para a reflexão do leitor a sugestão do filósofo Nicaraguense Alexandro Serrano Caldera:  “Recordar é um pouco percorrer novamente velhos caminhos, mas é também imaginar o ocorrido e construir sobre isso uma nova realidade pois, as coisas não são como as vemos mas como as recordamos”. (Caldera, 2004, p. 14).

A Natureza como Síntese - 74

A educação ambiental.  Apesar de toda a capacidade de destruição de que o homem é capaz com as tecnologias de que dispõe hoje, subsistem ecossistemas que, apesar de já terem sido percorridos pelo homem não deixaram de conservar a natureza de “áreas naturais intactas”. Quando se toma como base para definir essas áreas o critério especificado pela “Conservação Internacional”, uma área com esse perfil deve cobrir no mínimo 10.000 quilômetros quadrados e 70% da cobertura vegetal original. Nesse critério cabem as grandes florestas tropicais da América do Sul, da bacia do Congo e em parte da Nova Guiné. Somam-se às florestas tropicais o cinturão de florestas subárticas, a taiga composta basicamente de coníferas que cobrem ainda grandes extensões do norte dos Estados Unidos, Canadá e Alasca, Finlândia, Suécia e Noruega, centro norte da Rússia e toda Sibéria. No critério da “Conservação Internacional” cabem também os grandes desertos com suas peculiaridades, as regiões polares, o alto-mar além do leito profundos dos oceanos. O mesmo já não se pode afirmar da foz e delta dos rios, das baías, de modo especial se utilizadas como portos e destino dos dejetos de centros urbanos. A essas áreas naturais de 10.000 ou mais quilômetros quadrados somam-se centenas de áreas menores na forma de parques naturais e reservas. A lei que criou essas áreas protegidas nos Estados Unidos determina que que sirvam “para o uso e desfrute do povo americano, de tal maneia que sejam deixados em bom estado para o futuro uso e desfrute”. No Brasil dispomos também  um respeitável número  de parques nacionais e reservas de proteção à natureza. O Parque Nacional do Iguassú, o Parque Nacional dos Aparados da Serra, o Parque Nacional do Itatiaia, a reserva do Guarita, só para citar alguns. Não é aqui o lugar para desenhar um mapa mais preciso dos parques e reservas de proteção ambienta. Interessa, isso sim, o significado e a importância da sua multiplicação num momento da história em que a agressão  consequente deterioração do meio ambiente avança, em muitas partes do mundo, sem o controle necessário. 

Os parques e reservas de proteção à natureza, porém, só então tem condições de cumprir a sua missão como instrumentos de preservação, quando de fato forem cenários em que o homem é visitante. Não se fixa  neles mas mantem uma relação de mero visitante para apreciar o que “a mãe terra não degradada pelo homem”,  oferece  para o apreço dos sentidos, para alimentar as emoções intuir o belo na sua forma original. Além disso os parques e as reservas desempenham um papel pedagógico excepcional. São escolas ao ar livre onde as crianças, jovens e adultos, caminhando sem compromisso de ordem disciplinar e ou burocrática entram diretamente em contato com o mundo que num passado não tão remoto, foi o cenário em que a grande maioria dos povos passava a vida. Uma caminhada solitária ou em boa companhia pela tranquilidade de um parque, vendo, ouvindo, apalpando, farejando, sentindo, intuindo, mesmo as pessoas que passam a maior parte da vida na artificialidade das metrópole e megalópoles sentem-se em casa. A relação existencial que as vincula à natureza original  não violada pela civilização, pode ter sido perdida no quotidiano em meio à muralhas de concreto, em escritórios ascéticos, respirando poluição e o odor do asfalto, mas não esquecida. Num  parque, numa reserva ou numa simples caminhada num parque urbano essa relação atávica se faz sentir. Por essa razão é tão importante que às crianças se proporcione  contato seguido e livre da “mãe terra”, que foi o cenário e a escola  de vida dos  seus coleguinhas do Paleolítico, do Neolítico, em toda história e ainda hoje nos lugares privilegiados onde o sol ainda nasce entre árvores e se percebe o odor da terra molhada depois de uma chuva. A esse respeito Edward Wllson ensina.

A ascensão à Natureza começa na infância, portanto o ideal é que a ciência da biologia seja introduzida logo nos primeiros anos de vida. Toda a criança é um naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar, explorar novos territórios, buscar tesouros, examinar a geografia, descobrir novos mundos  -  tudo isso  está presente em seu cerne ais íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as crianças foram criadas  em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais e plantas silvestres. (Wilsnon, 2006, p. 158). 

Wilson deixou uma série de sugestões para que o aprendizado em contato direto com a  natureza produza os melhores resultados, seja o mais rico possível. Já que a mente da criança, o interesse pelo mundo natural que a cerca, se manifesta desde muito cedo, a educação ambiental deve começar igualmente em cedo pois, a criança está pronta para mergulhar existencialmente basta abrir-lhe as portas e mostrar-lhe o caminho. Sem forçar, apenas orientando o professor ou o guia apontem os lugares onde há surpresas a descobrir. É preciso que a criança individualmente ou em pequenos grupos explore o ambiente, entre em contato íntimo com as descobertas que vai fazendo por sua própria conta. Havendo oportunidade um binóculo, uma lupa, uma bússola tornam a aventura ainda mais emocionante e educativa. Os resultados serão surpreendentemente abundantes e duradouros.

Com adaptações à idade a educação para a natureza deveria continuar num crescendo harmônico pela adolescência afora a fora, o que não significa que todos optem por um futuro de naturalista. O tipo de aprendizado, porém, pelo que passaram será útil em qualquer profissão pois, identificar as coisas, classificá-las, ordená-las, colocá-las no seu devido lugar, são procedimentos úteis em qualquer profissão e atividade. Engenheiros, médicos, advogados, historiadores, e outros mais, valendo-se do  treinamento e da disciplina assimilados nos incursões na natureza, levarão vantagem sobre aqueles que nunca pisaram num parque, numa reserva, ou simplesmente conviveram com a natureza em qualquer outra circunstância. E, se não tiver servido para outra coisa são inspiradoras para que profissionais de todo tipo de especialidade direcionem as suas horas de lazer para objetos da natureza, observando pássaros, animais silvestres, árvores, explorando cavernas, escalando montanhas, ou simplesmente caminhando pelo campo deliciando com ar puro, observando as flores silvestres, bebendo água dos arroios de montanha, meditando na penumbra da floresta, ou admirando os monumentos naturais. Wilsnon conclui o capítulo sobre a educação para a natureza. 

Da liberdade de explorar vem a alegria de aprender.  Do conhecimento adquirido pela iniciativa pessoal advém o desejo de obter mais conhecimentos. E ao dominar esse  novo e belo mundo que está à espera de cada criança, surge a autoconfiança. Cultivar um naturalista é como cultivar um músico ou um atleta: excelência para os talentosos, prazer por toda a vida para os mais, benefício para toda a humanidade. (A criação, 2006, p. 166)

A Natureza como Síntese - 73

A nova linguagem interdisciplinar. A partir do momento em que as Ciência Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências Humanas as Letras e Artes celebram um pacto para, solidários e mutuamente comprometidos, entender cada vez melhor o nosso maravilhoso mundo e seus inquilinos com destaque para o homem, um novo  vocabulário conceitual começou a circular nos meios acadêmicos empenhados em produzir um conhecimento fundado numa perspectiva interdisciplinar. É fundamental que os especialistas dos mais variados  campos, intercambiem experiências, se sirvam de conceitos a que as partes atribuam o mesmo sentido. Em outras palavras, é indispensável que se fale a mesma língua nesse esforço que visa o entendimento entre os muitos segmentos do saber, um discurso honesto, desarmado, sincero. Vão nesse sentido os dois conceitos, “Weldbild e Weldauffassung – o retrato, a imagem do mundo e o significado do mundo ou a cosmovisão” formulados por Erich Wassmann. Cabe ao cientista desenhar o retrato tangível, visível e material, com os dados fornecidos pelos  métodos e técnicas de investigação empírica, o “Weldbild”. Ao filósofo e ou teólogo compete identificar o “donde, o como e o porque” do retrato do mundo desenhado pelo cientista. Em outras palavras, o sentido que lhe confere razão de ser, isto é, os significados que lhe garantem vida, sentido  e identidade, para a compreensão do mundo, ou a cosmovisão. Se a cosmovisão, a compreensão do universo e da natureza, a “Weldauffassung”, não for legitimada pelos dados que a ciência oferece, ela será “cega”. O retrato do mundo, o “Weldbild” é “manco” se não passar de um volume maior ou menor de informações aleatórias detectadas pela ciência.

Um outro conceito que vem fazendo parte cada vez mais frequente da linguagem dos cientistas que se ocupam com a natureza como um todo, a natureza como síntese e, de modo especial preocupados com a saúde do planeta, é a Ética. Apelam para a Ética como como argumento mais convincente. Note-se que o conceito na sua origem   é   próprio do linguajar da Filosofia e a Moral, sua versão religiosa, da Teologia. Como outros conceitos, o Darwinismo, por ex., a ética foi incorporada no  mundo conceitual de outros campos do conhecimento. Conquistou um lugar obrigatório nas mais diversas áreas dos conhecimentos aplicados, com a finalidade de disciplinar o comportamento dos respectivos profissionais. Fala-se muito em ética médica, ética no exercício da advocacia, ética na atividade econômica, ética social e por aí vai. 

Com cada vez maior frequência e mais insistência cientistas de renome como Edward Wilson, Francis Collins, Dobzhansky, para ficar com três cuja concepção da natureza foram analisados mais acima, terminam em colocar a ética, a capacidade de o homem distinguir entre o bem e o mal, o certo e o errado como terreno comum para a diálogo interdisciplinar. É óbvio que isso não acontece quando se debatem questões exclusivamente científicas e especializadas. Num encontro entre botânicos ou zoólogos sistematas, geólogos à procura de minérios ou campos de petróleo, entre outros, não é o lugar para falar em Ética. 

 Mas é na compreensão e no convívio do homem com a  natureza que,  cada dia que passa, essa relação ganha mais importância. Toda uma área de conhecimento a “Bioética”, vem se tornando mais popular e os que a ela se dedicam gozam cada vez de mais respeito e suas opiniões em questões ambientais são levadas em conta com muita seriedade. E é no plano das preocupações ecológicas que a Ética, mais especificamente o conceito de Bioética, assumiu um papel chave, como plataforma comum,  sobre a qual cientistas, filósofos, geógrafos, economistas, juristas, ecologistas sérios, têm condições de se entender, falando a mesma linguagem. A razão que subjaz aos esforços de qualquer profissional sério e ativista digno deste nome, consiste em tratar “a natureza como um bem comum”. Relembramos a máxima que colocamos como motivação  para escrever essas reflexões: “A natureza vive e sobrevive sem o homem, mas o homem não vive nem sobrevive sem a natureza”. Os motivos, os dados e argumentos que validam essa afirmação já foram exaustivamente confirmados pelas autoridades científicas que forneceram as informações que nortearam as reflexões que registramos até aqui. Cabe repetir mais uma vez chamar a atenção para o significado mais profundo que se esconde atrás da ideia chave que nos vem orientando até aqui. A espécie humana está existencialmente inserida na natureza. Sobrevive nela e dela em todos os níveis da sua identidade. Portanto, a natureza representa um bem comum e como tal, todo e qualquer ser humano tem o direito de usufruir dos seus benefícios. Por isso mesmo, o comprometimento com o equilíbrio da natureza se constitui num  dever ético, que deve ser sobreposto a qualquer outro interesse, quando a questão ambiental entra em discussão. 

“Sistema” é mais um  conceito que faz parte do dicionário interdisciplinar quando se procura entender  a natureza na sua globalidade. Foi popularizado por Ludwig von Bertalanfy, e amplamente e consistentemente formulado na sua obra clássica: “Teoria Geral dos Sistemas” (trad. port. Vozes, 2008). Salvo melhor juízo trata-se da formulação de uma síntese global que contempla todos os níveis e áreas do conhecimento, a começar pelas Ciências Naturais, passando pelas Humanas, as Letras, Artes e Filosofia. Como tal oferece, senão o melhor, certamente uma das fundamentações teóricas mais consistentes, para as iniciativas sérias de qualquer natureza e procedência, em favor da saúde do nosso planeta. Se no parágrafo anterior argumentamos com o sentido ético da natureza, como justificativa para o interesse pela saúde do meio ambiente, a Teoria Geral dos Sistemas, contribui com a fundamentação científica e até técnica para justificar o mesmo propósito. O conceito de sistema segundo Bertalanffy não resume a natureza a uma máquina, um relógio que funciona perfeita e automaticamente. A montagem do sistema como o defendido pelo autor citado, tem a sua razão de ser amarrada a uma teleologia, ou se quisermos, destinado a produzir resultados que não se resumem na soma do desempenho das partes e funções de cada peça. Há uma tarefa a cumprir um objetivo a alcançar. Esse fato implica de um lado que a participação de cada peça, cada componente do sistema tem razão de ser em função em relação ao que lhe compete contribuir para o bom funcionamento do todo em vista do fim para que existe. Do outro lado a contribuição de cada um é indispensável na proporção e no nível  que lhe compete no sistema como um todo. A lógica da conclusão não deixa dúvidas.  por mais insignificante que pode parecer um componente ele cumpre uma tarefa indispensável. No caso de não comprometer o funcionamento essencial diminui de alguma forma a sua qualidade e os seus resultados.   
Um bom exemplo é um organismo vivo superior como o do homem. Na base da sua estrutural e funcional estão as células. Organizadas em tecidos, órgãos, aparelhos e sistemas formam o organismo. A destruição de um número menor de células por alguma lesão, obviamente não ameaça a  viabilidade do todo, mas de alguma forma, mesmo imperceptível, afeta o todo. O avanço das pesquisas científicas  somadas às conquistas da medicina  comprovam que a destruição de certos órgãos não compromete organismo como um todo, mas reduz a qualidade de vida da pessoa e limita de igual forma seu desempenho na razão direta da função afetada. A solução para órgãos como o coração, o fígado,  pulmões,  rins, etc., quando comprometidos no seu funcionamento,  soluciona-se até certo ponto com o transplante. Mesmo nesses casos o risco da rejeição prova que a natureza caibrou as células,  órgãos,  sistemas e  aparelhos,  em função de cada indivíduo. 

Da mesma forma como um organismo vivo funciona como um sistema, ressalvadas as peculiaridades, a natureza é um “organismo” à sua maneira, um mega sistema. O conceito compreende, em última análise, o universo e a natureza com todos os seres vivos que integram a biosfera. É nessa percepção da Natureza que se  encontra o argumento que justifica as ações de qualquer natureza a serviço de qualquer causa. Mas vamos restringir-nos à Natureza como sistema e a morada imediata de todas as espécies vivas conhecidas e, ao mesmo tempo, o cenário na qual evoluíram, prosperaram ou se extinguiram. Perguntamos: o que  afinal é a Natureza?. Edward Wilson assim a define: “A Natureza é  aquela parte do ambiente original e de suas formas de vida que permanece depois do impacto humano, Natureza é tudo aquilo que no planeta Terra não necessita de nós e pode existir por si”. (Wilson, 2006, p. 23)

Wilson pondera que para muitos essa definição não tem valor prático, porque não há recanto no planeta que não sofreu com a presença do homem. Todos os espaços disponíveis já foram tão humanizados e, por isso mesmo, descaracterizados ao ponte de se duvidar da existência de ecossistemas  que conservam a sua identidade original. Subsistem poucos quilômetros quadrados que nunca foram pisados pelo homem. Somos obrigados a dar parcialmente razão a essa visão pessimista. Poluentes industriais de tudo que é procedência e natureza, sobrecarregam anualmente a atmosfera e carregadas pelas correntes aéreas e marítima até além dos círculos polares, ameaçando inclusive o equilíbrio das calotas perenemente congeladas dos polos. O efeito estufa  agravado por esse processo fazendo subir gradativamente a temperatura média da terra põe em xeque a vida em espaços cada vez maiores. O autor observa ainda  que a maior parte da megafauna terrestre, que compreende animais que pesam de quilos ou mais, já foi caçada até a extinção. A fauna das planícies e florestas do mundo contemporâneo tem pouca semelhança com o majestoso desfile de gigantescos mamíferos e ave que foram levados à extinção pelos habilidosos caçadores do Paleolítico Boa parte dos animais sobreviventes está na lista dos ameaçados. Há 12 mil anos, a fauna das planícies americanas era mais rica do que a hoje existente na África. (Wilson, 2006, p. 24).

A Natureza como Síntese - 72

O “porque e para que” fazer Ciência. Depois desse alerta que é válido  a toda e qualquer especialidade no âmbito das Ciências Naturais, Dozhansky, vale-se da genética, sua especialidade, para ilustrar sua maneia de conceber o “fazer ciência”. No avanço das conquistas modernas da ciência, a genética é, sem dúvida um dos mais dinâmicos e mais promissores. A Genética, segundo o autor, não inventou uma nova  superbomba, nem tão pouco está em condições de competir com os lances românticos  das viagens interplanetárias. A importância e razão de ser dessa especialidade localiza-se em outro lugar e num outro nível.

Passaram-se mais de dois milênios, que os sábios gregos descobriram que o “conhecer-se a si mesmo”,  é a bases de toda a sabedoria. Quem sabe o objetivo principal e a finalidade maior (ou pelo menos um deles), da genética, da biologia e da ciência em geral, consiste em o homem compreender-se a si mesmo e tomar consciência de seu lugar no universo. (Dobzhansky, 1969, p. 11).

Com essa colocação Dobzhansky ensina que a ciência somente tem sentido quando ajuda ao homem a compreender-se a si mesmo. E esse compreender-se implica não apenas na compreensão da sua identidade como espécie taxonômica, mas em respostas para todas as dimensões da natureza humana. Para essa primeira questão podemos aceitar tranquilamente que a ciência tem respostas, senão definitivas, mas plenamente satisfatórias. Enumeram-se na linha daquelas que explicam a origem e a evolução  das demais espécies vivas. Mas no caso do homem colocam-se perguntas para as quais o potencial de resposta da ciência é insuficiente, embora indispensável. Em outros momentos essas questões já foram objeto das nossas reflexões.  Rambo resumiu num conceito o tamanho do desafio posto para as Ciências Naturais e demais áreas do conhecimento, isto é, explicar e entender a “Menschlichkeit” – o “Humano no Homem”. O que afinal vem a ser “Menschlichkeit” – “o Humano no homem?”. 

A natureza humana, desde que o homem se fez homem manteve-se na sua essência inalterada e com ela o “humano” – a “Menschlichkeit”. Ela se expressa nos mesmos medos, nos mesmos temores, nas mesmas esperanças, nas mesmas alegrias, nas mesmas perguntas existenciais, ao procurar o sentido para a sua própria existência: donde viemos, o que somos e para onde vamos. Somam-se a isso as perguntas pela natureza e razão do universo, da existência ou não de uma vida depois da morte, do lugar ou não lugar Deus, divindades, espíritos bons ou maus. Esses elementos, por comporem o “Humano”, vem intrigando os homens de todos os tempos e de todas as culturas e civilizações. Com essa matéria prima, cada povo e cada indivíduo procuraram respostas no seu mundo ambiente peculiar, para responder às questões existenciais a que nos acabamos de referir. Qualquer um conclui que não se trata de tarefa nem simples nem fácil. A complexidade do desafio é de tal ordem que a sua solução somente é possível quando enfrentado com métodos e instrumentos capazes de identificar as notas e os acordes dessa peça e, principalmente, como interagem para resultar numa  sinfonia harmônica. Parece evidente que os métodos convencionais, o analítico indutivo e o sintético dedutivo não conseguem dar conta para identificar e explicar a incógnita que é “o humano” – a “Menschlichkeit”. Segundo a opinião de Alfonso Borrero, esses métodos são chamados  para  conferir mais segurança e maior credibilidade para o conhecimento baseado na intuição e na percepção sensorial, numa fase histórica na qual, por assim dizer, exige-se “o preto no branco”, como selo de validade para que algo possa ser chamado de científica e racionalmente aceitável. 

A ciência  apenas possui  então valor quando cultivar o que o cientista tem de humano (Menschlichkeit), quando compreendida e praticada a parir do todo. Pressupõe isso um treinamento escolar geral voltado para o todo – coisa que foge à grande maioria dos pesquisadores atuais.  A ciência praticada como deve ser  é uma recriação do mundo, semelhante a de Deus, dando assim em culto divino. (Rambo, 1994, p. ?)
A linha de reflexão que estamos seguindo pode até parecer uma digressão desnecessária, melhor complicadora, em relação ao que pretendemos, isto é, encontrar o terreno comum em que a as Ciências Naturais   e as Ciências dos Espírito encontrem condições para um diálogo construtivo. E para que o diálogo se estabeleça nesse nível, é fundamental que haja consenso na compreensão  daquilo que é essencial á realidade em causa: o Homem. Além do consenso sobre a natureza da realidade, objeto do diálogo, é indispensável que se fale a mesma língua. Os conceitos chave de que se valem os interlocutores precisam, no essencial pelo menos, serem  entendidos da mesma forma, isto é, terem o mesmo sentido, tanto para o cientista, quanto para o filósofo, o humanista, o letrado e o artista. É fundamental que os especialistas de todos os campos do saber tenham uma noção clara de que os postulados da ética decorrem da própria natureza humana e suas necessidades, portanto perenes, e não uma questão que pode ser relativizada ao sabor das ideologias no momento em moda;  de que a espécie humana como uma categoria taxonômica pode ser perfeitamente entendida como qualquer outra espécie, animal ou vegetal, quanto à sua origem  e gênese biológica;  de que a espécie humana comunga com as demais espécies vivas da mesma estrutura química e que seu organismo tem  o mesmo DNA  como o código responsável pelo funcionamento de todas funções vitais; que o DNA é susceptível  à recodificação para o melhor ou  o pior influenciado pelo meio ambiente; de que a sobrevivência da espécie está condicionada a um mínimo de recursos naturais necessários para alimentar-se e abrigar-se; de que a espécie humana depende para a vida e a morte de condições climáticas e atmosféricas minimamente estáveis e finamente calibradas; de que a espécie humana compartilha com as outras espécies animais dos mesmos instintos básicos para garantir a sobrevivência dos indivíduos e a perpetuação da espécie; de que, como as demais, tem conhecimento, memória, consciência e inteligência. Em se tratando da espécie humana, porém,  entram em jogo outros atributos exclusivamente humanos. O mais determinante de todos é sem dúvida a “Inteligência Reflexa”, a capacidade única pela qual o ser humano toma consciência de si mesmo, do mundo em sua volta e suas relações com ele próprio, dos demais seres humanos e das relações que determinam a convivência com eles; a capacidade única de procurar as origens e raízes do mundo  e sua própria e interessar-se “pelo como, o porque e o para que”, da sua existência e o sentido do universo e da natureza. Nesse cenário há um outro conjunto de desafios que não podem se menosprezados. Dizem respeito às esperanças, aos medos, aos temores, as mesmas perguntas existenciais, a procura de respostas para  o sentido para  a própria existência, da natureza e do universo, da continuação da vida de pois da morte, da existência ou não de um Deus ou de deuses, espíritos e ou ouras realidades além do mundo visível e tangível.

Sem entrar em maiores detalhes esses parecem ser, em grandes linhas, os elementos que fazem que o humano no homem seja de fato “humano” – “mensclich”. Partindo desse pressuposto é também nesse cenário que uma reflexão interdisciplinar isenta, honesta e séria tem condições de frutificar. Deixando de lado preconceitos, idiossincrasias, radicalizações, egoísmos e outras atitudes que impedem o diálogo, fica o convite para um encontro, uma confraternização de todas as áreas do conhecimento no cenário de interesse comum: o homem a sua identidade, a sua razão de ser e sua missão como figura central da “Criação” como a concebe Edward Wilson na sua visão de “humanista secular”, de um lado e  Rambo que pressupõe a “Criação de Deus” como pressuposto no estudo da natureza.  Tanto para o primeiro, quanto para o segundo, quanto para Francis Collins, Dobzhansky e tantos outros, a compreensão do universo e da natureza somente então se justifica e faz sentido, quando, direta ou indiretamente, cria as condições para que a espécie humana se conheça a si mesma, se aperfeiçoe  e se realize sempre mais, corporal e espiritualmente.

Tirando as conclusões lógicas do que tentamos afirmar nas considerações acima parece indiscutível  que a realização das potencialidades físicas e espirituais do homem, é diretamente proporcional à qualidade ou à degradação do meio ambiente em que vive. Sendo assim os recursos naturais devem estar em primeiro lugar disponíveis para todos indistintamente; que o equilíbrio climático é uma questão que interessa a todos; que a destruição dos ecossistemas naturais vem a ser uma ameaça de extinção de milhares de espécies de animais e vegetais; que o desperdício da água potável, o uso irracional do solo, de produtos químicos, pesticidas e outros artifícios, a médio e longa prazo, comprometem a sobrevivência de povos inteiros, não descartando a da humanidade como um todo. Resumindo. As Ciências Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e Artes, tem a sua razão de ser como caminhos para, cada uma à sua maneira, contribuir para a compreensão, a promoção e a realização do “humano no homem” – a “Menschlichkeit”. Sendo assim os diversos campos do conhecimento encontram-se em território comum e tem sua justificativa  em se nortearem pelos postulados comuns da Ética Natural. Parafraseando e interpretando Kant é lícito afirmar  que duas realidades deixam o cientistas, os filósofos, os humanistas e, de modo especial, as pessoas comuns, admiradas, pensativas e perplexas: o mundo lá fora que lhes garante alimento para o corpo e o espírito e a lei moral lá dentro, fazendo com que sejam capazes de distinguir entre o bem e o mal, o certo e o errado. 

A Natureza como Síntese - 71

Conclusões

O chão comum  -  A Ética.  Para quem acompanhou com atenção o pensamento dos cientistas que destacamos acima, encontra nas diversas concepções da natureza, coincidências flagrantes. Convergem para um consenso ao chamarem a atenção de que para entender a natureza os conhecimentos científicos são insuficientes como o são também as conclusões filosóficas e teológicas. “Sem a religião a ciência é manca e sem a ciência a religião é  cega”, conforme  entendimento de Einstein. Isso significa que a compreensão da natureza como uma grande síntese somente é possível se os dados, as informações, enfim, os conhecimentos gerados nas duas dimensões forem devidamente harmonizados. Deixando de lado convicções pessoais e ou filiações religiosas ou laicas, todos concordam no essencial. É emblemático como dois cientistas, um entomólogo, Edward Wilson que se assume como  “humanista secular” (Wilson, 2008, p. 12) e um botânico, Balduino Rambo, religioso jesuíta, se encontram no terreno comum da ética como o argumento mais forte para incentivar a preservação da natureza. Para os dois, a Natureza, a Criação ou outra denominação que se prefira, representa o cenário em que a espécie humana surgiu, evoluiu e edificou a sua história. Como as demais espécies de plantas e animais o corpo físico da espécie humana é formado  pelos mesmos elementos  que o dos demais seres vivos, desde as arqueobactérias até os mamíferos mais evoluídos. Oxigênio, nitrogênio, hidrogênio e carbono estão presentes em todos eles. Além disso mais duas dúzias de outros elementos entram na estrutura dos seus organismos, variáveis em dosagem e  natureza, de acordo com as características das milhões de espécies. De outra parte os mesmos processos e leis  físicas e químicas básicas  regulam o funcionamento de todas as espécies. O mais notável da estrutura e funcionamento dos organismos vivos é o código genético presente em todos eles. Sua importância supera em muito qualquer outra característica comum pois, de um lado é responsável pela preservação da identidade biológica da respectiva espécie e do outro, pela capacidade de sofrer mutações. Elas  constituem-se no argumento mais convincente e mais sólido para  explicar as mudanças nas e entre as espécies. Em outras palavras, neste  e por meio deste dispositivo  a teoria da evolução encontrou o suporte científico mais convincente. Mas tanto para Edward Wilson quanto para os demais cientistas analisados nas presentes reflexões, permanece uma pergunta não respondida pela Ciência. Onde procurar a razão de ser, a causa primeira responsável pelo engenhoso e prodigioso mecanismo que, pelo visto, partindo de um organismo vivo primordial, foi capaz de evoluir para a complexidade de um mamífero superior como o homem e, paralelamente, desdobrar-se em milhões de espécies vivas tanto vegetais quanto animais, vivendo e convivendo em  ecossistemas harmonicamente calibrados?. É nesse nível que o verdadeiro cientista repete Einstein admitindo que os conhecimentos conquistados com o auxílio dos seus métodos  e instrumentos revelam-se “mancos” sem a ajuda do filósofo e teólogo. E estes por sua vez admitem que sem as conquistas científicas,  suas conclusões e crenças são “cegas”. É inevitável que enquanto os dois lados se fecharem em seus territórios, isto é, não dialogarem, não permutarem dados, experiências e conhecimentos, o cientista avança “mancando” e o teólogo tateando “cego” no escuro. A partir do momento em que os dois se decidirem a um diálogo, a uma troca de experiências e conhecimentos, o cientista percebe que há uma ordem, uma coerência, uma unidade e uma teleologia na infinita complexidade dos dados que vai identificando sob as lentes do microscópio, deduzindo de modelos matemáticos ou observando nos  telescópios ultra  potentes. Com isso o praticar ciência deixa de ser um procedimento errático, entregue ao acaso, à sorte, ao ensaio e erro, enfim, confere sentido à dedicação a alguma especialidade científica. Em outras palavras o cientista adquire segurança, deixa de “mancar”. Do outro lado,  filósofos e  teólogos percebem, à luz dos dados e descobertas dos pesquisadores, que a lógica racional e os princípios religiosos encontram respaldo e razão de ser no mundo real em que raciocinam e creem. Abrem os olhos para esse universo fantástico que é a natureza e nele começam a perceber, farejar,  intuir e enxergar, que o filosofar tem muito a ver com a lógica do mundo concreto em que vivemos e o crer e a prática da religiosidade tem uma dimensão que perpassa os acontecimentos do mundo material. Enfim, seus olhos se  abrem e começam “a enxergar”.  Neste sentido é emblemática a exclamação de Kant já referida mais acima: “nada me fascina tanto quanto o firmamento estrelado lá fora e a lei moral aqui dentro”. E é de Balduino Rambo a reflexão descansando à borda do cânion do Fortaleza em Cambará: “Alguém mora nesses abismos, alguém vigia nessa torre de observação”. 

Mas voltemos ao começo da reflexão em curso quando afirmamos que o cenário  comum onde se encontra o clima favorável para o diálogo ente as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, chama-se  Ética no sentido mais amplo e bioética no sentido mais estrito. Só para relembrar, já em 1942, na sua famosa obra  “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” o Pe. Balduino Rambo, ao insistir na preservação na forma original de pelo menos parcelas significativas da paisagem, enumerou: 

A proteção da natureza, em primeiro lugar está a serviço das ciências naturais, antropogeográficas e históricas; em segundo lugar, baseia-se sobre um princípio de ética natural, que considera imoral a destruição  desnecessária ou inconsiderada dos tesouros da beleza nativa; em terceiro lugar, protegendo o que há de precioso, restaurando o que já sucumbiu, acomodando as obras da mão humana ao estilo da terra, torna-se um aliado de valor da higiene e pedagógica sociais, e em adjutório indispensável da educação nacional. (Rambo, 1942, p. 338)

Parece oportuno lembrar que os princípios fundamentais de como conceber e lidar com a natureza enumeradas por Rambo, foram propostas ao público, numa obra que marcou e continua marcando época, há mais de 70 anos. Naquele momento histórico, final da década de 1930, as preocupações com o meio ambiente ainda não frequentavam os discursos públicos, não motivavam mutirões de reflorestamento, não serviam de bases para criar organizações não governamentais, muito menos  eram objetos de propostas de criação de leis específicas. Os campos de criação de gado da fronteira com suas intermináveis estâncias, ainda não tinham sido afetados na sua essência com a presença homem. Os campos de cima da Serra com os Aparados exibiam suas características espetaculares na forma original. Milhões de araucárias a perder de vista emprestavam uma atmosfera majestosa àquela paisagem carregada de simbolismos, testemunhas da gênese daquele planalto único. Inclusive na faixa originalmente coberta pela mata atlântica, a partir de  Torres, passando pelo centro do Estado e terminando no Alto Uruguai, embora intensivamente cultivada pelos agricultores familiares, ainda não era chão fértil para cultivar preocupações pelo tratamento mais racional das propriedades e das matas que ainda subsistiam. O andar da história do sul do Brasil encontrava-se no patamar lembrado pelo Pe. Rambo na “Fisonomia do Rio Gande do Sul.

Enquanto o espaço é suficiente e a densidade  demográfica pequena, não se tornam muito conscientes  tais sentimentos; mas no momento em que as necessidades brutais da vida forçam a interferir  sempre mais na expressão natural do ambiente, desperta a dor perante a destruição de suas feições naturais, e o desejo de as conservar, senão no conjunto, ao menos em alguns lugares e nos traços mais característicos. (Rambo, 1942, p. 338).

Na data da publicação da “Fisionomia do Rio Grande do Sul”, a região das Missões, a Serra e o Alto Uruguai acabavam de ser incluídos nas colonizações já consolidadas. A meio caminho encontrava-se a colonização de todo o centro e oeste de Santa Catarina. A partir do final da década de 1950, as clareiras que se multiplicavam  rapidamente no centro e oeste do Paraná, prenunciavam que até o final do século XX,  em lugar daquelas terra férteis antes cobertas com  florestas virgens, a  presença do homem praticando uma agricultura já em fase de modernização e mecanização, consolidaria um dos polos de produção de alimentos mais importantes do País. Mas a disponibilidade de espaço para dar vazão aos excedentes populacionais gerados nos três estados do sul, esperava pela ocupação dos dois Matogrosso, Rondônia, Acre e Amazônia adentro. A grandes florestas, lá onde as fronteiras  dos grandes Estados da América Latina  se encontram, esperavam a civilização do século XXI, conforme profetizara o Pe. Johannes Rick há 80 anos passados. Chegados que estamos à metade da segunda década do século XXI, para o  Brasil e a humanidade como um todo, os sinais de alerta ambiental  piscam por toda a parte e em todas as fronteiras onde acontece a interferência da civilização no chão que lhe fornece os recursos materiais e espirituais.  A destruição da cobertura vegetal e animal está passando dos limites toleráveis, o ambiente  totalmente sintético das metrópoles e megalópoles, a poluição em todas as sua formas e origens, a ameaça ao equilíbrio ambiental pelo emprego abusivo de agrotóxicos, dejetos urbanos e ou industriais, configuram a “interferência além do tolerável na natureza motivado pelas necessidades brutais da vida. (Rambo, 1942. p. 338). Chegamos à vigésima quarta hora para que a humanidade mude radicalmente a  relação para com sua “mãe e pátria”. Não se trata de arroubo romântico de alienado. Trata-se, em última análise de prevenir, enquanto é tempo, a perda fatal do equilíbrio  da espécie humana e a precipitação no abismo, servindo-nos mais uma vez da metáfora de Nietzsche.

A fase da relação do homem com seu chão que vivemos nesse começo do milênio, alerta os responsáveis maiores pela condução da atual civilização, assim com qualquer pessoa consciente, a levar a sério  essa reflexão: “Assim, no curso de todas as culturas humanas, mais cedo ou mais tarde, surgem tendências de proteção ativa da natureza; um povo que se descuidasse deste elemento, seria falto dum requisito essencial da verdadeira cultura humana total e indigno  da terra, com que a mão pródiga do Criador o presenteou”. (Rambo, 1942, p. 338).

Não se requer nenhum esforço fora do comum para ler nas linhas e, principalmente, perceber nas entrelinhas das reflexões  de Rambo,  que a natureza com seus recursos administrados com inteligência, senso de responsabilidade e parcimônia, são condições com as quais morrem ou se perpetuam as esperanças do homem em relação ao seu destino como espécie. Voltamos, portanto, de novo ao mesmo pressuposto que dá sentido e torna obrigatório, como um dever de justiça e de solidariedade, a preocupação pelo futuro da vida na terra, pelo futuro sustentável da querência da humanidade. Todo o esforço empenhado nesse sentido só então tem sentido e justificativa quando estiver direta ou indiretamente a serviço do bem estar da espécie humana. Fazer ciência simplesmente por fazer ciência, termina na esterilidade dos resultados. De outra parte, o filosofar sem se preocupar em encontrar soluções para os impasses humanos, não passa de malabarismo intelectual que termina em satisfazer o próprio ego ou do isolamento  do “filósofo” no seu próprio olimpo. Dozhansky alertou sobre essa questão na introdução do seu livro “Herança e Natureza Humana”. 

No essencial, o progresso da ciência está nas mãos dos especialistas. Na medida em que a ciência se expande, o campo de cada especialista tende a estreitar-se. Alguns limitaram-se até o exagero. Correm sérios riscos e por sua vez são perigosos, em primeiro lugar porque sua própria vida interior está depauperada; em segundo lugar porque costumam ser presas fáceis da exploração pelos detentores de poder, dinheiro, coisa que prejudica tanto a ciência, quanto a humanidade no seu conjunto. (Dobzhansky, 1969, p. 10)

O autor comentando essa realidade   afirma que a ciência carrega  na  própria natureza um paradoxo que obriga a pensar. Esse paradoxo aparece mais visivelmente no próprio desenvolvimento da atividade científica. O especialista corre o risco de  evoluir para  um casulo incomunicável, um feiticeiro de posse exclusiva de segredos interditados ao comum dos mortais. Em outras palavras seus conhecimentos científicos são perfeitamente inúteis para enfrentar os grandes desafios da humanidade como um todo, como também os problemas que afligem as pessoas como indivíduos. Por mais acirrada que seja a especialização e, por isso mesmos, por mais fragmentada  o conhecimento científico do especialista, também nesse particular o exagero no desmonte dos objetos científicos, faz-se sentir uma tendência crescente para reunir numa síntese os dados obtidos pela análise científica. Evidentemente o candidato a elaborar um síntese corre um outro risco nada desprezível. Para que um síntese goze de um mínimo de abrangência, solidez e credibilidade, o sintetizador necessita dominar um espetro amplo de conhecimentos científicos somados a um raio não menor nem menos sólido de informações sobre as ciências do espírito, ciências humanas, letras e artes. E é no domínio tão vasto de conhecimentos  que reside o desafio maior para os  formuladores de sínteses. 

Num momento em que o número de cientistas e pesquisadores se multiplica proporcionalmente com maior rapidez do que a própria humanidade e as especialidades multiplicam de diversificam-se no mesmo ritmo, é impossível alguém se apropriar de informações sobre o que acontece nessa imensa pluralidade científica. Informações básicas de Filosofia, Ciências Humanas, Letras e Artes, talvez não seja tão complicado. São campos do saber há muito tempo consolidados. Seus objetos, suas bases teóricas e seus métodos de aproximação são muito menos complexos e seus desdobramentos em subespecialidades muito menor do que nas Ciências Naturais. De qualquer forma pelas dificuldades apontadas, embora se perceba uma crescente reclamação em busca da unidade na pluralidade do saber, o número de candidatos para concretizá-la é incomparavelmente menor do que os modernos cientistas, filósofos, humanistas ou literatos. Menor ainda é o número daqueles que de fato assumem o desafio e metem mãos à obra. Depois de alertar que os que  se arriscam a formular uma síntese, são em geral   especialistas e sintetizadores medíocres, conclui que em nome de uma compreensão do real sentido que impulsiona ou deveria alimentar toda a atividade científica como um todo, vale a pena tentar e por isso mesmo correr os riscos que a acompanham.  

Apesar disso, deveria haver cientistas que sejam capazes de combinar a vontade de romper com a carapaça protetora de suas especialidades e partir para a exploração de campos mais amplos. Significa, sem dúvida, uma  tarefa perigosa pois, pode implicar na perda da fama de especialista. Acontece que como tantas outras tarefas de risco também essa é necessária na sociedade moderna. A vida interior dos indivíduos se enriquecerá com a abertura para uma compreensão do que de fato representa a atividade científica. Alguns aspecto e realizações dizem respeito a todos. (Dobzhansky, 1969, p. 10-11).