Amor à natureza e ao torrão natal
Não há necessidade de encarecer que os povos da antiga Germânia, vivendo a sua história em contato diuturno com a natureza, cultivassem com ela uma relação íntima e existencial. As decisões importantes e de interesse comum, costumavam ser tomadas em assembleias da comunidade, da tribo ou da parentela, na sombra dos bosques, nas proximidades de fontes, de arroios ou sob a copa de carvalhos sagrados. Nesses ambientes, aconteciam também os cultos em que se veneravam as divindades personificadas em fenômenos ou entes naturais, como o sol, a lua, a mãe terra. A religião dos antigos germanos foi uma religião profundamente enraizada na natureza. Nela se venerava a terra, a água, o fogo, o sol, a lua, o dia, as estações do ano, a tempestade, a tormenta, a germinação, a fertilidade, o explodir da brotação e o fenecer da vegetação. Numa invocação anglo-saxônica, a terra é saudada como a mãe dos homens. “Glória a ti, mãe dos homens”. Tácito ao falar sobre as crenças germânicas, destacou que a terra gerou originalmente o deus Tuisto, do qual descende Manus, o que significa homem, e este novamente gerou três filhos, que foram os ancestrais dos germanos. O culto ao sol, à lua e às estrelas foi imortalizado em imagens de ouro e, ainda hoje é lembrado, quando, no alemão, o domingo é o dia do sol –“Sontag”, a segunda-feira é o dia da lua -“Montag”, Donnerstag-dia do Trovão. Muitos outros exemplos poderiam ser enumerados.
Quando, dois mil anos mais tarde, os descendentes remotos desses povos se fixaram no sul do Brasil, trouxeram consigo, como herança preciosa, mais esta faceta dos seus ancestrais. Uma compacta floresta subtropical cobria as áreas destinadas pelo Império do Brasil, para serem povoadas pelos imigrantes procedentes da Europa do Norte e Central. Comparadas com as florestas europeias, notava-se uma diferença flagrante. As espécies dominantes naquelas, nessas foram substituídas por outras desconhecidas na Europa. Em vez de carvalhos, faias, abetos, tílias, plátanos, castanheiras, bordos, bétulase outras mais, as responsáveis pelo perfil da mata virgem brasileira, eram louros, cedros, cabriúvas, angicos, cangeranas, canafístulas, grápias, araucárias e outras tantas. Além das araucárias em altitudes maiores, inexistiam coníferas de importância numa floresta em que, espécies de folhas em parte perenes se alternavam com espécies de folhas caducas. Sob as copas dos gigantes vicejava uma vegetação arbustiva e rasteira, em muitos casos, impenetrável pela densidade, pelo emaranhado e pelos espinhos. Agarrando-se e subindo até as copas mais altas, dezenas de espécies de cipós, tornavam a penetração e o trânsito pela floresta ainda mais desafiador. Com essas características, a primeira visão da floresta brasileira não deixou de assustar, de impressionar, ao mesmo tempo, de despertar um profundo fascínio nos filhos das florestas germânicas. Sentimentos deste tipo encontram-se registrados em relatos de viajantes e em depoimentos dos próprios colonizadores. Avé-Lallemant assim pintou a impressão que teve ao avistar a Walachei e o Jammertal:
A visão da Walachei e do Jammertal é grandiosa. Será difícil encontrar sequências tão selvagens de mata como aquelas. É difícil localizar as áreas cultivadas no fundo escuro das gargantas. É preciso coragem para embrenhar-se no vale, antigo refúgio de índios, onças e tapires. (Cem anos de germanidade, 1924, p. 103-104)
Um outro componente que conferia àquelas matas um toque adicional de mistério foram as montanhas da região, elevando-se a altitudes de até 800 a 900 metros, inteiramente cobertas de mata fechada. Nas encostas, formando escarpas, gargantas e peraus, cavernas, refúgios e abrigos naturais serviam, desde tempos imemoriais, de esconderijo para onças, pumas, jaguartiricas e porcos do mato. Nos galhos e nas copas das árvores, reinavam soberanos, os bugios, os micos, os coatís e uma infinidade de espécies de pássaros de todos os tamanhos e coloridos, enchendo a penumbra da mata com a sinfonia dos seus gritos, pios, assobios e cantos.
Não demorou e os colonizadores se depararam com um inesperado fator de temor e constante sobressalto. Nos matos de toda a região, vagavam seminômades as tribos dos indígenas espoliados de suas terras. Pensando bem, pelo princípio do “ius primi possidentis”, eram eles os legítimos donos daquelas terras. Do seu ponto de vista os imigrantes não passavam de usurpadores dos seus domínios. De outra parte, porém, os colonos não alimentavam a mínima dúvida de que as terras que estavam ocupando, lhes foram legitimamente entregues pelas autoridades imperiais, cuja competência ninguém discutia, ou doadas, adquiridas por ocupação ou, mais tarde, por compra.
O que interessa não é a discussão em torno da legitimidade ou não-legitimidade em relação à posse daquelas terras, nem pelos imigrantes, nem pelos nativos. O importante é mostrar como a floresta que os imigrantes foram obrigados a enfrentar, oferecia mais este complicador. Encontros diretos com os índios, com os “bugres”, como eram chamados no quotidiano da colônia, contam-se em poucas dezenas. Limitam-se a alguns raptos de crianças e mulheres, alguns assassinatos e assaltos a propriedades, seguidos de roubos de animais e produtos das roças.
Em poucas palavras, foi esta a floresta oferecida aos imigrantes com a finalidade de transformá-la em terra arável e produtiva: uma floresta exuberante, imensa, densa, quase impenetrável, exercendo uma atração carregada de temor ao desconhecido e, ao mesmo tempo, alimentado pelo imaginário de uma terra de promissão. A literatura regional em língua alemã, tanto na erudita, quanto na dialetal, dão conta do fato em inúmeras referências. Como amostra alguns exemplos.
Sempre que um grupo de pioneiros dava início à abertura de uma nova picada e principalmente a uma nova fronteira de colonização maior, fazia proceder o começo da obra, com um ato religioso, de preferência uma missa ou um culto quando se contava com a presença de um padre ou um pastor. O ato era realizado na sombra dos gigantes da mata, no clima místico inspirado pela penumbra e aos sons melodiosos das criaturas da floresta. O P. Ambros Schupp relata que a implantação da Colônia de Santa Cruz do Sul teve como ato inicial uma missa rezada sob uma vigorosa figueira do mato. Fato similar foi registrado para o início da colonização de Cerro Largo e mais tarde, Porto Novo, no oeste de Santa Catarina.
O fascínio pela mata virgem foi de tal ordem que o termo “mata virgem” – “Urwald” vinha acompanhado por um apelo irresistível. Do quotidiano dos imigrantes faziam parte termos como “colono da mata virgem”, “pioneiro da mata virgem”. “gigantes da mata virgem”, (Urwaldbauer, Urwaldpionier, Urwaldboden, Urwaldriese ...). Nos relatos históricos sobre a imigração e colonização alemã no Sul do Brasil, fala-se até numa relação quase doentia com a mata virgem, que fazia com que não poucos fossem incapazes de viver longe dela. Encontravam-se em constante migração para novas fronteiras de colonização. Falava-se nesses casos da “doença da mata virgem” – “Urwaldkrankheit”.
Numa conversa sobre os novos assentamentos no rio Uruguai, Josefine Wirsch confirma esse espírito da boca de um colono de meia idade: “Se minha mulher e meus filhos estivessem de acordo”, afirmou com emoção, “como gostaria de novamente participar na derrubada da floresta virgem e recomeçar tudo do começo”.
“Como pode fazer essa afirmação”, ousei interromper, “Como é possível o senhor desejar tal coisa”! O senhor com a sua rica propriedade, na qual tudo está organizado; com sua bela criação de animais e a bela terra, tudo resultado do seu trabalho”.
“Aí está e exatamente a questão” e pôs-se em pé e cruzou os braços. “Aqui tudo está feito, tudo arável. Isso já não se chama mais um trabalho de verdade. A senhora não se pode imaginar que disposição resulta do enfrentamento com a floresta virgem, arrancar dele pedaço por pedaço – Força contra força”!
Tive que admirar esse homem na sua postura – um homem robusto, os músculos temperados no enfrentamento com a natureza – num embate do qual saíra vitorioso e comecei a entender como é possível que, num trabalho sobre humano desses se esconda um fascínio que não deixa de cativar as pessoas.
A mesma opinião ouvi também de um dos sacerdotes pioneiros da florestas virgens. Num encontro do idoso senhor, referi-me à conversa com o referido colono. O idoso padre jesuíta, um figura veneranda com um comprida barba branca, falou: “Veja senhora, é o que costumo dizer, a floresta não nos larga. Como tenho saudades das minhas picadas na floresta virgem, dos meus pioneiros na floresta virgem, das minhas cavalgadas pela floresta virgem”! Falou essas palavras num tom de nostalgia. Durante décadas exercera a pastoral na região das florestas no Rio Grande do Sul e agora goza do merecido descanso numa simpática e bela povoação.
Parece que não há necessidade de insistir no fato de que os imigrantes procedentes da Europa Central e do Norte, apesar da distância geográfica e cronológica de muitos séculos que os separava das raízes, continuaram sendo, na sua essência, uma estirpe humana intimamente vinculada à floresta e alimentando-se de suas dádivas e valendo-se dos seus estímulos e símbolos. Sob a inspiração do entorno natural em que a floresta representava a realidade mais marcante, construíram, também em terras brasileiras, todo um imaginário e o transformaram num rico referencial simbólico de metáforas profundas, envolvendo o homem, a floresta e seus habitantes.
A literatura histórica está repleta de exemplos que comprovam o que acabamos de afirmar. Enumera-las, mesmo em parte, extrapola os objetivos deste trabalho.
Ainda hoje, é comum escutarem-se afirmações como esta, entre os descendentes dos imigrantes europeus no sul do Brasil: “resistentes às intempéries” – “Wetterfest”; “incorruptível como o cerne da cabriúva”; “sólido como a canafístula”; “personalidade de um pinheiro”... Embora o entorno geográfico seja outro, assim como os referenciais simbólicos, o significado permanece o mesmo, apesar do tempo e do espaço que separam os ancestrais da Europa Central dos seus descendentes remotos no sul do Brasil. A história foi passando, mas não esquecida.