A mulher na sociedade germânica
Entre os povos germânicos pré-cristãos e no raiar do cristianismo, é notória a posição de destaque que as mulheres ocupavam em todas as situações. A mulher germânica, de forma alguma, deve ser vista como uma criatura do assim chamado “sexo frágil”, necessitando de constante proteção, nem tampouco como uma fatalidade biológica indispensável para a procriação e a satisfação do homem, ou como uma besta de carga responsável pela criação dos filhos e a administração da casa. A mulher germânica costumava estar ao lado do seu homem para o que desse e viesse. Essa constatação nada mais é do que uma consequência óbvia quando se analisam, por exemplo, as migrações dos povos entre os séculos quarto e nono. Não foram apenas incursões de guerreiros e conquistadores no sentido corrente do termo mas, povos inteiros que se movimentavam, migravam e terminavam por se fixar em terras longínquas. As vanguardas de combatentes abriam caminho e a eles seguiam de perto as mulheres e os filhos. Compartilhavam os riscos e privações, encorajavam os homens, orgulhavam-se dos seus feitos e do seu heroísmo quando tombavam nos combates. Costumavam carregar no cinto um pequeno punhal e dele se valiam quando a necessidade o exigia. Ocasiões houve em que as mulheres se envolviam diretamente nos combates. Relatos históricos dão conta de que esta era, na prática, a rotina das mulheres dos Cimbros e Teutões, em migração para além dos Alpes e na conquista do Norte da Itália.
Figuras femininas germânicas como Hertwiga, companheira de Odoaker, mortalmente ferida em companhia do marido na batalha de Ravena no final do século V, tornaram-se exemplares na história desses povos. Entre elas, merece destaque, por exemplo, Veleda, a mais famosa vidente conhecida entre os germanos pré-cristãos. Do alto de uma torre na Vestfália, distribuía seus conselhos a integrantes das tribos da região, inclusive aos romanos, que costumavam procurá-la.
Tácito, ao ressaltar a posição de destaque de que a mulher gozava na antiga sociedade germânica, além de registrar a sua admiração pessoal por ela, perseguia também um objetivo pedagógico. As mulheres germânicas deveriam servir de exemplo para a sociedade romana como um todo em decadência, mas principalmente para a mulher romana em particular.
A cristianização dos povos germânicos em nada afetou o lugar tradicional da mulher. Sob certos aspectos até o sublimou. Houve uma preocupação muito grande da parte dos missionários em preservar tudo o que de positivo havia naquelas tradições em relação à mulher, ao seu papel e à imagem da sua personalidade forte e marcante. A Igreja deve, de fato, muito às mulheres germânicas, principalmente no período da cristianização dos povos a que pertenciam. Lendárias tornaram-se as figuras da esposa de Ehlowig, uma princesa cristã borgúndia, que tem o seu nome indelevelmente vinculada à conversão dos francos; a princesa bávara Theodolinde, que ajudou São Columbano a construir o mosteiro de Bobio; a participação da princesa da Turíngia, educada num convento francônio, foi decisiva na cristianização do próprio povo. A conversão dos anglo-saxões por missionários enviados pelo papa Gregório, só pôde ser levada a bom termo com a interferência de Ethelbert, rei dos anglo-saxões, e uma princesa cristã da casa real dos francos. O acima citado A. Stonner, não hesita em afirma.
Presenciamos também como essas mulheres germânicas passaram por uma sublimação interna pessoal, fato que faz parte daquilo que há de mais belo e acende uma luz em meio às perturbações daqueles tempos, não poucas vezes selvagens. (Stonner, 1934, p. 37)
Na companhia dos grandes missionários responsáveis pela cristianização da Europa Central e do Norte, encontram-se invariavelmente personalidades femininas. Deram tudo de si para que a obra prosperasse e, em não poucos casos, garantiram a continuidade da obra começada, quando os missionários partiam para novas frentes de envangelização ou vinham a faltar por outro motivo qualquer. Nesse sentido há notícia de uma mulher Viking de nome Friedeburg e de sua filha Kathle, que permaneceram fieis à fé cristã, mesmo após a expulsão do bispo Gautbert e dos missionários sob sua orientação e o povo voltou a venerar os deuses pagãos. Merecem ser citadas algumas personalidades femininas na vida e atividade cristianizadora de São Bonifácio, cognominado apóstolo da Alemanha. Entre elas destaca-se a anglo-saxônica Eangyth, que presidiu um mosteiro duplo para monges e monjas, uma realidade, para a nossa maneira atual de ver as coisas, um tanto estranha. Não é difícil de imaginar o que o cargo vinha a exigir da abadessa em termos de sabedoria na condução e energia em fazer valer a disciplina monástica, numa instituição que abrigava, por vezes, várias centenas de monges e monjas. Em sua correspondência com São Bonifácio fala da responsabilidade de manter, num bom patamar, tanto no regime disciplinar como na conduta monacal e, ainda, administrar os desentendimentos internos, de modo especial entre os monges.
No fim o autor acrescenta a observação de que essas mulheres, de forma alguma, foram personalidades masculinizadas. A prova encontra-se novamente na correspondência da abadessa Eangyth com São Bonifácio e em outras correspondências de mulheres da época. Ele próprio definiu o significado da presença feminina da abadessa na sua vida, ao chamá-la “solatium peregrinationis meae” – “consolo da minha peregrinação”.
Uma segunda figura feminina que acompanhou São Bonifácio e colaborou na fundação e condução do mosteiro de Fulda foi Lioba. Filha única de grande amigo do santo, deve ter sido uma mulher dotada de uma sabedoria enérgica e de uma autêntica personalidade feminina. Este relacionamento fraterno, íntimo, comprometido entre personagens paradigmáticos do cristianismo da época, com figuras femininas igualmente exemplares, não foi, de maneira alguma, excepcional. Fazia parte da natureza do próprio cristianismo e da sua consolidação no mundo bárbaro. Os exemplos poderiam ser multiplicados ao indefinido. Não é o objetivo do presente trabalho. Concluímos com a observação de Stonner em seu livro intitulado “Cristandade e Germanidade”.
O que na fundação da Igreja parecia uma perspectiva promissora, ao observarmos a colaboração com que Paulo contou na sua obra missionária, ressurgiu aqui, após longa estagnação, numa exuberância somente explicável pelo respeito que os germanos cultivavam pela mulher. Infelizmente, este florescimento não foi duradouro. Este grau de valorização das grandes mulheres durou apenas até o tempo dos Otões, Hartsvit de Gauderheim, tão grande como escritora quanto como poetisa, bem como Adelheid, Gerberga e, ainda, de Mechtild de Quedlingburg e a imperatriz Kunegunde, foram mulheres deste formato. (Stonner, 1934, p. 45-46)
Embora, conforme a avaliação de Stonner, as grandes mulheres, as mulheres que marcaram época e fizeram a história entre os povos germânicos da Antiguidade e da Idade Média, se tivessem tornado uma raridade, elas estão presentes e, principalmente, foram decisivas mesmo no anonimato, em momentos dramáticos da história posterior. E um desses momentos foram sem dúvida os anos logo depois da Segunda Guerra Mundial. O Holocausto merece com justiça um destaque proporcional à sua importância a ele dedicado pelos historiadores. Mas, há um outro aspecto da guerra e, principalmente, suas conseguências pouco destacado. Alemanha fora sistemticamente arrasada pelos borbardeios aéreos e os combates terrestres. Cidades sem qualquer importância estratégica, como Dresden com suas galerias de arte, museus, pinacotecas e arquitetura admirada pelos historiadores, artistas e os visitantes comuns, foi reduzida em três dias a escombros por sucessivas ondas de centenas de bombardeiros. Pilhas de corpos de crianças, mulheres e idosos ocupavam ruas e praças. Dezenas de outras cidades não escaparam ao bombardeio diário dos aviões dos aliados. E, a vinvasão por terra a partir do oeste pelos ingleses, americanos e franceses e a partir do leste pelos russos, arrasaram o que escapara dos bombardeios. Em meio a esse caos generalizado o maior preço foi pago pela população civil. A população masculina de jovens, adultos incluindo homens de 50 ou mais anos, ou morrera nas frentes de combate, ou caíra prisioneira e confinada nos campos de prisioneiros e, na frente leste, incontáveis deles confinados nos campos de trabalhos forçados na Sibéria.
Acontece que a história das guerras costuma ser contada e registrada pelo viés dos vencedores. A tragédia que a população da Alemanha vencida enfrentou durante o conflito e os anos que o seguiram, senão ignorada, passou à margem dos interesses dos historiadores que se ocuparam ou ocupam ainda com com aquele período. Poucos são os livros e outras formas de registro que lançam alguma luz sobre o quotidiano dramático das mulhres, crianças e idosos atônios e desnorteados, que perambulavam às centenas de milhares, senão milhões, sem abrigo, sem alimento, sem assistência, procurando de alguma forma sobreviver e tentando vislumbrar algum sinal que alimentasse os restos de esperança de um possível futuro menos sombrio. Ja em fase de uma rápida e espantosa recuperação da Alemanha tive acesso a dois livros, um deles com o titulo “Der Tod Dresdens” (A morte de Dresden) e segundo “Heldentum deutscher Frauen” (O heroísmo de mulheres alemãs). “A Morte de Dresden” descreve em detalhes o horror daqueles dias 13, 14 e 15 de fevereiro de 1945. Em sucessivas levas 1.300 bombardeiros despejaram 3.900 toneladas de bombas, muitas delas incendiárias sobre a cidade apelidada de a “Florença do Elba”. A estimativa de mortos, na sua totalidade civis oscila entre 250.000 e 500.000. Como já alertamos mais acima, Dresden não foi uma cidade militarmente estratégica. Há-os que defenderam o bombardeio, mas 70 anos depois do episódio a opinião de historiadores, analistas e estrategistas igualam essa destruição, somada a muitas outras cidades sem importância militar, ao holocausto e afirmam tratar-se de autênticos crimes de guerra. Ninguém foi responsabilizado porque, afinal coube aos vencedores permitir que esse verdadeiro genocídio fosse perpetrado. Com esse breve resumo sobre a tragédia de Dresden e dezenas de outras cidades, tive com objetivo a contextualização da reação das mulheres alemãs principalmente em situações extremas. A resposta para essa cacterística fica explícita no também já citado livro “O Heroísmo de Mulheres alemãs”. (Heldentum Deutscher Frauen). Não é aqui o lugar para me ater exaustivamente às violências cometidas pelas tropas de ocupação nos dois fronts, em termos de estupros, assassinatos, torturas e outras tantas agressões impostas pelos vencedores a mulheres de todas as idades.
Terminada a guerra os novos líderes da Alemanha subsidiados pelo “Plano Marshal” não perderam tempo para reconstruir o País. Foi neste cenário que que se fez presente a figura da “Trümmerfrau” – “A Mulher dos escombros”. Estima-se que só em Berlim 60.000 delas foram responsáveis pela remoção dos tijolos, madeiras e demais restos de construção que cobriam as ruas, avenidas, e praças. Com carrinhos de mão, carrocinhas improvisadas e com as mãos desprotegidas separavam os tijolos, os limpavam e empilhavam para serem reaproveitados na reconstrução. Amontoavam os entulhos inaproveitáveis em lugares estratégicos livrando os espaços para os profissionais programarem e executarem a espantosa obra da reconstrução das cidades pequenas e grandes arrasadas pela estupidez e a irracionalidade da guerra. Dezenas de milhares de viúvas, mães, noivas e moças solteiras que choravam os maridos, os filhos, os noivos e os irmãos, tombados nas frentes de combate, desaparecidos ou confinados em campos de prisioneiros e/ou de trabalhos forçados, reuniram-se como que num exército de assalto, que tornou, em grande parte, possível o duro remeço. As atuais gerações da Alemanha fariam bem em construir um monumento em homenagem às suas avós e bisavós que sozinhas com as mãos esfoladas, os pés maltratados, com o coração sangrando, mas indômitas como suas ancestrais formaram as brigadas das “Trümmerfrauen – das “Mulheres dos Escombros”. E, voltando à reflexão que motivou essa digressão observa-se, respeitadas as devidas circunstâncias, uma paralelismo nada forçado entre o perfil das “Mulheres dos escombros” de Berlim e outras cidades e suas contemporâneas, as “Mulheres da floresta virgem”, no Rio Grand do Sul, no Alto Uruguai, Oeste e leste de Santa Catarina, oeste do Paraná