Conclusões
O chão comum - A Ética. Para quem acompanhou com atenção o pensamento dos cientistas que destacamos acima, encontra nas diversas concepções da natureza, coincidências flagrantes. Convergem para um consenso ao chamarem a atenção de que para entender a natureza os conhecimentos científicos são insuficientes como o são também as conclusões filosóficas e teológicas. “Sem a religião a ciência é manca e sem a ciência a religião é cega”, conforme entendimento de Einstein. Isso significa que a compreensão da natureza como uma grande síntese somente é possível se os dados, as informações, enfim, os conhecimentos gerados nas duas dimensões forem devidamente harmonizados. Deixando de lado convicções pessoais e ou filiações religiosas ou laicas, todos concordam no essencial. É emblemático como dois cientistas, um entomólogo, Edward Wilson que se assume como “humanista secular” (Wilson, 2008, p. 12) e um botânico, Balduino Rambo, religioso jesuíta, se encontram no terreno comum da ética como o argumento mais forte para incentivar a preservação da natureza. Para os dois, a Natureza, a Criação ou outra denominação que se prefira, representa o cenário em que a espécie humana surgiu, evoluiu e edificou a sua história. Como as demais espécies de plantas e animais o corpo físico da espécie humana é formado pelos mesmos elementos que o dos demais seres vivos, desde as arqueobactérias até os mamíferos mais evoluídos. Oxigênio, nitrogênio, hidrogênio e carbono estão presentes em todos eles. Além disso mais duas dúzias de outros elementos entram na estrutura dos seus organismos, variáveis em dosagem e natureza, de acordo com as características das milhões de espécies. De outra parte os mesmos processos e leis físicas e químicas básicas regulam o funcionamento de todas as espécies. O mais notável da estrutura e funcionamento dos organismos vivos é o código genético presente em todos eles. Sua importância supera em muito qualquer outra característica comum pois, de um lado é responsável pela preservação da identidade biológica da respectiva espécie e do outro, pela capacidade de sofrer mutações. Elas constituem-se no argumento mais convincente e mais sólido para explicar as mudanças nas e entre as espécies. Em outras palavras, neste e por meio deste dispositivo a teoria da evolução encontrou o suporte científico mais convincente. Mas tanto para Edward Wilson quanto para os demais cientistas analisados nas presentes reflexões, permanece uma pergunta não respondida pela Ciência. Onde procurar a razão de ser, a causa primeira responsável pelo engenhoso e prodigioso mecanismo que, pelo visto, partindo de um organismo vivo primordial, foi capaz de evoluir para a complexidade de um mamífero superior como o homem e, paralelamente, desdobrar-se em milhões de espécies vivas tanto vegetais quanto animais, vivendo e convivendo em ecossistemas harmonicamente calibrados?. É nesse nível que o verdadeiro cientista repete Einstein admitindo que os conhecimentos conquistados com o auxílio dos seus métodos e instrumentos revelam-se “mancos” sem a ajuda do filósofo e teólogo. E estes por sua vez admitem que sem as conquistas científicas, suas conclusões e crenças são “cegas”. É inevitável que enquanto os dois lados se fecharem em seus territórios, isto é, não dialogarem, não permutarem dados, experiências e conhecimentos, o cientista avança “mancando” e o teólogo tateando “cego” no escuro. A partir do momento em que os dois se decidirem a um diálogo, a uma troca de experiências e conhecimentos, o cientista percebe que há uma ordem, uma coerência, uma unidade e uma teleologia na infinita complexidade dos dados que vai identificando sob as lentes do microscópio, deduzindo de modelos matemáticos ou observando nos telescópios ultra potentes. Com isso o praticar ciência deixa de ser um procedimento errático, entregue ao acaso, à sorte, ao ensaio e erro, enfim, confere sentido à dedicação a alguma especialidade científica. Em outras palavras o cientista adquire segurança, deixa de “mancar”. Do outro lado, filósofos e teólogos percebem, à luz dos dados e descobertas dos pesquisadores, que a lógica racional e os princípios religiosos encontram respaldo e razão de ser no mundo real em que raciocinam e creem. Abrem os olhos para esse universo fantástico que é a natureza e nele começam a perceber, farejar, intuir e enxergar, que o filosofar tem muito a ver com a lógica do mundo concreto em que vivemos e o crer e a prática da religiosidade tem uma dimensão que perpassa os acontecimentos do mundo material. Enfim, seus olhos se abrem e começam “a enxergar”. Neste sentido é emblemática a exclamação de Kant já referida mais acima: “nada me fascina tanto quanto o firmamento estrelado lá fora e a lei moral aqui dentro”. E é de Balduino Rambo a reflexão descansando à borda do cânion do Fortaleza em Cambará: “Alguém mora nesses abismos, alguém vigia nessa torre de observação”.
Mas voltemos ao começo da reflexão em curso quando afirmamos que o cenário comum onde se encontra o clima favorável para o diálogo ente as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, chama-se Ética no sentido mais amplo e bioética no sentido mais estrito. Só para relembrar, já em 1942, na sua famosa obra “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” o Pe. Balduino Rambo, ao insistir na preservação na forma original de pelo menos parcelas significativas da paisagem, enumerou:
A proteção da natureza, em primeiro lugar está a serviço das ciências naturais, antropogeográficas e históricas; em segundo lugar, baseia-se sobre um princípio de ética natural, que considera imoral a destruição desnecessária ou inconsiderada dos tesouros da beleza nativa; em terceiro lugar, protegendo o que há de precioso, restaurando o que já sucumbiu, acomodando as obras da mão humana ao estilo da terra, torna-se um aliado de valor da higiene e pedagógica sociais, e em adjutório indispensável da educação nacional. (Rambo, 1942, p. 338)
Parece oportuno lembrar que os princípios fundamentais de como conceber e lidar com a natureza enumeradas por Rambo, foram propostas ao público, numa obra que marcou e continua marcando época, há mais de 70 anos. Naquele momento histórico, final da década de 1930, as preocupações com o meio ambiente ainda não frequentavam os discursos públicos, não motivavam mutirões de reflorestamento, não serviam de bases para criar organizações não governamentais, muito menos eram objetos de propostas de criação de leis específicas. Os campos de criação de gado da fronteira com suas intermináveis estâncias, ainda não tinham sido afetados na sua essência com a presença homem. Os campos de cima da Serra com os Aparados exibiam suas características espetaculares na forma original. Milhões de araucárias a perder de vista emprestavam uma atmosfera majestosa àquela paisagem carregada de simbolismos, testemunhas da gênese daquele planalto único. Inclusive na faixa originalmente coberta pela mata atlântica, a partir de Torres, passando pelo centro do Estado e terminando no Alto Uruguai, embora intensivamente cultivada pelos agricultores familiares, ainda não era chão fértil para cultivar preocupações pelo tratamento mais racional das propriedades e das matas que ainda subsistiam. O andar da história do sul do Brasil encontrava-se no patamar lembrado pelo Pe. Rambo na “Fisonomia do Rio Gande do Sul.
Enquanto o espaço é suficiente e a densidade demográfica pequena, não se tornam muito conscientes tais sentimentos; mas no momento em que as necessidades brutais da vida forçam a interferir sempre mais na expressão natural do ambiente, desperta a dor perante a destruição de suas feições naturais, e o desejo de as conservar, senão no conjunto, ao menos em alguns lugares e nos traços mais característicos. (Rambo, 1942, p. 338).
Na data da publicação da “Fisionomia do Rio Grande do Sul”, a região das Missões, a Serra e o Alto Uruguai acabavam de ser incluídos nas colonizações já consolidadas. A meio caminho encontrava-se a colonização de todo o centro e oeste de Santa Catarina. A partir do final da década de 1950, as clareiras que se multiplicavam rapidamente no centro e oeste do Paraná, prenunciavam que até o final do século XX, em lugar daquelas terra férteis antes cobertas com florestas virgens, a presença do homem praticando uma agricultura já em fase de modernização e mecanização, consolidaria um dos polos de produção de alimentos mais importantes do País. Mas a disponibilidade de espaço para dar vazão aos excedentes populacionais gerados nos três estados do sul, esperava pela ocupação dos dois Matogrosso, Rondônia, Acre e Amazônia adentro. A grandes florestas, lá onde as fronteiras dos grandes Estados da América Latina se encontram, esperavam a civilização do século XXI, conforme profetizara o Pe. Johannes Rick há 80 anos passados. Chegados que estamos à metade da segunda década do século XXI, para o Brasil e a humanidade como um todo, os sinais de alerta ambiental piscam por toda a parte e em todas as fronteiras onde acontece a interferência da civilização no chão que lhe fornece os recursos materiais e espirituais. A destruição da cobertura vegetal e animal está passando dos limites toleráveis, o ambiente totalmente sintético das metrópoles e megalópoles, a poluição em todas as sua formas e origens, a ameaça ao equilíbrio ambiental pelo emprego abusivo de agrotóxicos, dejetos urbanos e ou industriais, configuram a “interferência além do tolerável na natureza motivado pelas necessidades brutais da vida. (Rambo, 1942. p. 338). Chegamos à vigésima quarta hora para que a humanidade mude radicalmente a relação para com sua “mãe e pátria”. Não se trata de arroubo romântico de alienado. Trata-se, em última análise de prevenir, enquanto é tempo, a perda fatal do equilíbrio da espécie humana e a precipitação no abismo, servindo-nos mais uma vez da metáfora de Nietzsche.
A fase da relação do homem com seu chão que vivemos nesse começo do milênio, alerta os responsáveis maiores pela condução da atual civilização, assim com qualquer pessoa consciente, a levar a sério essa reflexão: “Assim, no curso de todas as culturas humanas, mais cedo ou mais tarde, surgem tendências de proteção ativa da natureza; um povo que se descuidasse deste elemento, seria falto dum requisito essencial da verdadeira cultura humana total e indigno da terra, com que a mão pródiga do Criador o presenteou”. (Rambo, 1942, p. 338).
Não se requer nenhum esforço fora do comum para ler nas linhas e, principalmente, perceber nas entrelinhas das reflexões de Rambo, que a natureza com seus recursos administrados com inteligência, senso de responsabilidade e parcimônia, são condições com as quais morrem ou se perpetuam as esperanças do homem em relação ao seu destino como espécie. Voltamos, portanto, de novo ao mesmo pressuposto que dá sentido e torna obrigatório, como um dever de justiça e de solidariedade, a preocupação pelo futuro da vida na terra, pelo futuro sustentável da querência da humanidade. Todo o esforço empenhado nesse sentido só então tem sentido e justificativa quando estiver direta ou indiretamente a serviço do bem estar da espécie humana. Fazer ciência simplesmente por fazer ciência, termina na esterilidade dos resultados. De outra parte, o filosofar sem se preocupar em encontrar soluções para os impasses humanos, não passa de malabarismo intelectual que termina em satisfazer o próprio ego ou do isolamento do “filósofo” no seu próprio olimpo. Dozhansky alertou sobre essa questão na introdução do seu livro “Herança e Natureza Humana”.
No essencial, o progresso da ciência está nas mãos dos especialistas. Na medida em que a ciência se expande, o campo de cada especialista tende a estreitar-se. Alguns limitaram-se até o exagero. Correm sérios riscos e por sua vez são perigosos, em primeiro lugar porque sua própria vida interior está depauperada; em segundo lugar porque costumam ser presas fáceis da exploração pelos detentores de poder, dinheiro, coisa que prejudica tanto a ciência, quanto a humanidade no seu conjunto. (Dobzhansky, 1969, p. 10)
O autor comentando essa realidade afirma que a ciência carrega na própria natureza um paradoxo que obriga a pensar. Esse paradoxo aparece mais visivelmente no próprio desenvolvimento da atividade científica. O especialista corre o risco de evoluir para um casulo incomunicável, um feiticeiro de posse exclusiva de segredos interditados ao comum dos mortais. Em outras palavras seus conhecimentos científicos são perfeitamente inúteis para enfrentar os grandes desafios da humanidade como um todo, como também os problemas que afligem as pessoas como indivíduos. Por mais acirrada que seja a especialização e, por isso mesmos, por mais fragmentada o conhecimento científico do especialista, também nesse particular o exagero no desmonte dos objetos científicos, faz-se sentir uma tendência crescente para reunir numa síntese os dados obtidos pela análise científica. Evidentemente o candidato a elaborar um síntese corre um outro risco nada desprezível. Para que um síntese goze de um mínimo de abrangência, solidez e credibilidade, o sintetizador necessita dominar um espetro amplo de conhecimentos científicos somados a um raio não menor nem menos sólido de informações sobre as ciências do espírito, ciências humanas, letras e artes. E é no domínio tão vasto de conhecimentos que reside o desafio maior para os formuladores de sínteses.
Num momento em que o número de cientistas e pesquisadores se multiplica proporcionalmente com maior rapidez do que a própria humanidade e as especialidades multiplicam de diversificam-se no mesmo ritmo, é impossível alguém se apropriar de informações sobre o que acontece nessa imensa pluralidade científica. Informações básicas de Filosofia, Ciências Humanas, Letras e Artes, talvez não seja tão complicado. São campos do saber há muito tempo consolidados. Seus objetos, suas bases teóricas e seus métodos de aproximação são muito menos complexos e seus desdobramentos em subespecialidades muito menor do que nas Ciências Naturais. De qualquer forma pelas dificuldades apontadas, embora se perceba uma crescente reclamação em busca da unidade na pluralidade do saber, o número de candidatos para concretizá-la é incomparavelmente menor do que os modernos cientistas, filósofos, humanistas ou literatos. Menor ainda é o número daqueles que de fato assumem o desafio e metem mãos à obra. Depois de alertar que os que se arriscam a formular uma síntese, são em geral especialistas e sintetizadores medíocres, conclui que em nome de uma compreensão do real sentido que impulsiona ou deveria alimentar toda a atividade científica como um todo, vale a pena tentar e por isso mesmo correr os riscos que a acompanham.
Apesar disso, deveria haver cientistas que sejam capazes de combinar a vontade de romper com a carapaça protetora de suas especialidades e partir para a exploração de campos mais amplos. Significa, sem dúvida, uma tarefa perigosa pois, pode implicar na perda da fama de especialista. Acontece que como tantas outras tarefas de risco também essa é necessária na sociedade moderna. A vida interior dos indivíduos se enriquecerá com a abertura para uma compreensão do que de fato representa a atividade científica. Alguns aspecto e realizações dizem respeito a todos. (Dobzhansky, 1969, p. 10-11).