Da Enxada à Cátedra [ 7 ]

É óbvio que não me lembro de nada dos meus dois primeiros anos de vida. O que descrevo deduzo-o como o recordo dos costumes e práticas usuais naquela época que se perde nas brumas do tempo. Aconselham, por isso mesmo, as devidas precauções, senão restrições pois, “as coisas não são como as vemos mas como as recordamos”. (Valle Inclán, in Caldera, 2004. p.14). As linhas mestras, porém, definem o panorama em que acontecia, não somente o diário no trabalho da lavoura, como também e, sobretudo, a manifestação, a explosão do humano do homem, naqueles homens e mulheres, moços, moças, adolescentes  e crianças, descalços, chapéu de palha na cabeça, roupas com três ou quatro camadas de remendos, ao ponto de não se reconhecer o tecido original, não raro cantando e assobiando, manejando o arado, a enxada, o gadanho, o ancinho, a foice e demais instrumentos de trabalho, cumprindo sem reclamação a missão que lhes fora confiada, humilde sim, mas de um significado sem adjetivos. Passadas as primeiras semanas as mães costumavam retomar a rotina diária também na roça. Sem onde deixar os filhos pequenos a solução consistia em levá-los consigo para a roça. Um grande balaio de vime devidamente adaptado e acomodado na sombra de uma árvore ou na beira do mato, servia de berço vigiado por um cachorro e o problema estava resolvido. A mãe capinando por perto interrompia o trabalho e amamentava seu bebê nos intervalos previstos, acomodada na raiz de uma árvore ou simplesmente sentada no chão em cima de uma braçada de capim ou palha. Evidentemente uma cena dessas de há muito desapareceu do cenário rural. Penso, entretanto, que merece uma breve reflexão. Numa época em que a mortalidade infantil era  alta comparada aos índices de hoje pois, ainda não existiam vacinas contra a paralisia infantil, o sarampo, etc.; em que o recurso aos hospitais e médicos ficava horas e dias de distância; em que creches e jardins de infância somente em centros urbanos maiores; em que, portanto, a sobrevivência dos recém nascidos dependia em grande parte da bagagem e do potencial de sobrevivência com que vinham ao mundo, os  evolucionistas falariam em aptidões maiores ou menores para sobreviverem, uma criança, superados os riscos da primeira infância, desenvolvia-se num adolescente e adulto apto para superar os tropeços da saúde normais, como gripes e outros, sem maiores riscos. Partindo do pressuposto de que o ser humano é “Adam” - “nascido da terra”, em outras palavras ontologicamente inserido na natureza, é legítimo concluir que quanto mais próximo do seu hábitat, quanto mais intimamente acolhido nessa sua “casa” prospera a sua vida, tanto maior será a ressonância sobre sua existência biológica como também sobre a relação com suas potencialidades sentimentais, emocionais e espirituais. Baixando do abstrato ao concreto. Mesmo que não disponhamos nem de método, nem de equipamentos,  nem de modelos matemáticos para identificar e mensurar  a repercussão biológica, psicológica e espiritual desse crescer em contato com a natureza, é possível intui-lo, melhor talvez percebê-lo, no comportamento de pessoas adultas em relação ao seu entorno natural. São emblemáticos os testemunhos como o do Pe. Balduino Rambo recordando a sua infância exatamente vivida nos mesmos lugares, espaços e caminhos como  eu com uma diferença de 25 anos pois, ele nasceu em 1905 e eu em 1930. “Fui criança um dia, como todas as crianças, só mais silente e reflexiva do que a maioria delas. Imagens, flores e florestas virgens sempre foram meus brinquedos prediletos”. (Tavares, E.Dalto, Renato, 2007, p. 109). Desafio qualquer especialista em educação infantil a me provar que numa creche climatizada, oferecendo toda parafernália que a pós moderna tecnologia oferece, teria sido mais saudável para meus pulmões, que já passam dos 94 anos, sem darem mostras de falência. Credito-o, em grande parte,  àquela brisa perfeitamente dosada de oxigênio, hidrogênio, nitrogênio e carbono que fluía de dentro da floresta, das plantações de milho, feijão, mandioca, amendoim, cana de açúcar, sem resquício de contaminação, que tive o privilégio de respirar no meu berço improvisado numa balaio de vime à beira da mata virgem, a cachorra fiel vigiando e minha mãe  sempre atenta, capinando por perto. A essa relação, por assim dizer primária, física, telúrica, com a natureza, acresce, num outro nível de contato, diria subliminar, imprimindo marcas indeléveis e definitivas na formação da personalidade futura. Não há como dimensionar e/ou quantificar esses elementos e as marcas por eles deixados para o resto da vida nas pessoas que vivenciaram esse mundo desde sua mais remota infância. Não é minha intenção especular sobre essa realidade orientado por hipóteses e teorias formuladas sobre a importância dessas primeiras vivências na formatação do perfil da identidade juvenil e adulta das pessoas. Limito-me a intuir ou imaginar as marcas deixadas pela sinfonia da natureza no germinar e deitar as raízes na sua forma mais próxima e mais íntima com a “sua mãe e pátria”. E, para não estagnar no nível teórico e abstrato chamo a atenção  aos “instrumentos” que faziam parte da “orquestra” que executava a sinfonia que lembrei acima. O palco, o panorama natural  também já descrevi. Mas, quem realmente decidia sobre a importância  existencial e perene para a vida futura, foram os artistas com seus instrumentos que povoavam aqueles cenários. Os passarinhos e pássaros ocupavam naturalmente um lugar de destaque. Entre eles o tico-tico costumava andar sempre por perto. Saltitando pelo chão ou voando de um arbusto para outro, de um pé de mandioca para outro, marcando o seu lugar com o pipilar característico, catava incestos e bichinhos, o machinho ostentando orgulhosamente seu topete de luxo e sua companheira de cabecinha lisa parecendo uma joia recém saída da oficina de um artista plástico. Na primavera armavam os ninhos caprichosamente tecidos, escondidos em meio a arbustos fechados ou, então, no chão sob densas touceiras. Esses ninhos com os ovos e/ou filhotes costumavam ser alvo e vítima fácil de predadores  como  gatos selvagens e domésticos. A corruíra fazia parte obrigatória da companhia dos agricultores com a localização dos seus  ninhos em ocos de árvore ou sob as pedras de cobertura das taipas. Nas explorações infantis dos segredos e surpresas da natureza fazia parte obrigatória a localização dos ninhos desses passarinhos minúsculos escondidos, em ocos de árvores, sob as coberturas dos galinheiros, chiqueiros e paióis protegidos pelas pedras de cobertura de alguma taipa. Percebendo o ninho ameaçado por algum predador ou mesmo a aproximação do homem, emitiam um chilreado inconfundível. No sítio que moro hoje um casal de tico-ticos tece religiosamente todos os anos seu ninho num tufo de orquídeas poucos metros da entrada da casa e as corruíras criam suas ninhadas em caixinhas de madeira acomodadas sob as abas do telhado. Observando seus rituais e, principalmente, escutando ao entardecer suas músicas, dou automaticamente um salto para o passado de 90 anos para trás o paraíso passado mas não esquecido da minha infância.  

 

A simplicidade da vida da roça, lá no alto do Morro da Manteiga, emerge das brumas do tempo, redesenhada pela memória do momento em que faço esta viagem no tempo, e dou-me conta do quanto fui feliz junto aos meus, o quanto foi bom percorrer aqueles caminhos e explorar aqueles lugares e espaços, descalço, chapéu de palha na cabeça, as roupas simples de tecido barato, costuradas pela mãe nos dias de chuva. Atrás de cada bloco de pedra esperava uma surpresa. Enormes caranguejeiras vigiavam a entrada de seus esconderijos entre as raízes em decomposição de tocos de árvore ou troncos ocos espalhados por áreas recém desmatadas. Nas laranjeiras e bergamoteiras cantavam os sabiás na primavera, centenas de pintassilgos reunidos nas copas das majestosas araucárias alinhadas ao longo dos muros de potreiro e do curral dos porcos, davam o melhor de si para enriquecer a sonoridade da sinfonia das criaturas em homenagem ao  Criador. E, em meio a tudo isso, bandos de dezenas de periquitos enchendo o ar com seus sons estridentes migravam de uma árvore com frutinhas silvestres para a outra, enquanto o som rouco de algum tucano enriquecia o conjunto somado ao assobio estridente do inhambu partindo da penumbra da floresta, o cacarejar dos grupos de aracuãs intercomunicando-se de manhã, ao entardecer ou durante o dia sinalizando para a eminência de chuva. Acomodado num galho seco de alguma árvore no fundo da mata, o ferreiro fazia ecoar suas marteladas audíveis a centenas de metros de distância. Um dos sons da natureza que mais fundo calou na minha memória foi o canto do Uru, partindo também do interior da floresta ao final do dia. Marcava a hora em que meu pai se apoiava na enxada e  comandava: o Uru está cantando, vamos para casa o sol está se pondo. Não posso deixar de lembrar o espetáculo sonoro do ronco dos bugios acomodados na alto de uma grandiosa  figueira do mato fazendo, por assim dizer, às vezes dos bateristas do conjunto enquanto os micos pretos saltavam de árvore em árvore fazendo-se notar ao longe pelos seus assobios característicos, o que aliás lhes valeu o nome de “macaquinho assobiador” entre os moradores da região. Levaria longe demais, além de correr o risco de ser cansativo, enumerar muitos outros sons, pios, cricris e outros mais, como do grilo, da cigarra, etc., etc.  que completavam e conferiam corpo e alma à bela, magnífica, grandiosa e majestosa sinfonia da natureza, cantada em verso por Homero como “o imenso mar do belo” e no entender de Sto. Agostinho, encarnava a “beleza sempre antiga e sempre nova”. E o Pe. Balduino, meu irmão 25 anos mais velho que eu, e tendo passado a infância nos mesmos lugares, espaços e caminhos, deixou anotado em seu diário uma observação que confirma a reflexão acima já referida: “Fui criança um dia, como todas as crianças, só mais silenciosa e reflexiva como a maioria delas. Imagens, flores e florestas virgens sempre foram meus brinquedos prediletos”. (Tavares E. – Dalto,  2007, p. 109).  

Da Enxada à Cátedra [ 6 ]

Lugares, espaços e caminhos da infância. 

 

Mais acima já identifiquei geograficamente que os lugares, espaços e caminhos a que me refiro aqui localizam-se no Morro da Manteiga, distrito do município de Tupandi. Nasci no extremo sul daquele planalto voltado para Bom Princípio, São José do Hortênco e, um pouco para o sudoeste São Sebastião do Caí, Pareci Novo e Velho, Montenegro e já quase na linha do horizonte, São Leopoldo e Porto Alegre. Não se enxergavam as cidades durante o dia, mas à noite a iluminação refletia-se nas nuvens ou no céu estrelado. Um morro triangular, o topo plano e coberto de mata virgem intocada descendo até abaixo da coroa, elevava-se cerca de 300 metros acima do planalto. Em torno de 2/3, incluindo a área plana do topo, fazia parte dos 72 hectares da propriedade da minha família. Os lugares, espaços e caminho de que vou falar localizavam-se ao pé daquele morro. A casa em que nasci, toda ela de madeira, desde os alicerces até o telhado fora construída por meu avô materno a cerca de 50 metros duma faixa de mata virgem de cerca de 100 metros de largura, que descia a encosta do morro, emendada nos fundos com a cobertura florestal original que cobria todo o topo e suas bordas. 

 

O conceito de “bem morar” entre os colonos de origem alemã comportava o espaço delimitado por taipas e/ou cercas de arame farpado, que abrigava a casa de moradia propriamente dita, celeiros, estrebarias, chiqueiros, galinheiros, forno de pão, depósito de lenha, moenda de cana, etc. Não podiam faltar árvores frutíferas como bergamoteiras, laranjeiras, marmeleiros, pereiras, macieiras ou alguma outra espécie silvestre que produzia frutas, entre outras o guabiju, a guabiroba e cerejeira do mato. Entre as benfeitorias e as árvores costumavam andar soltos patos, marrecos, galinhas e, naturalmente, cachorros e gatos. Esse espaço abrigando a casa de moradia como epicentro, as benfeitorias, os animais e as árvores, levava o nome de “Hof” – mal traduzido “Pátio”. O conceito ultrapassava em muito o sentido de um simples espaço protegido e delimitado. Nele acontecia “o bem morar” no seu sentido fenomenológico pleno, possibilitando ao ser humano incorporar, desde a sua remota infância, a dimensão espacial da sua identidade. Em outras palavras conscientizar-se e familiarizar-se, na condição de “nascido da terra”, de que ela é a sua casa, sua mãe e pátria, que o chão que pisa, o abriga e lhe fornece o sustento do corpo, a razão de ser de sua existência, a inspiração para seus sonhos e fantasias e o alimento das suas demandas espirituais. O morar, melhor, o bem morar, tem muito mais a ver com a nossa identidade do que normalmente se pensa ou se quer admitir. Nessa perspectiva entende-se que “em muitas línguas se percebe claramente a relação semântica próxima entre o morar e o viver, entre a casa e a vida pois, o morar não significa apenas nos  fixarmo-nos ou nos demoramos em algum lugar. Importa que enquanto moramos vivemos e o viver significa muito mais do que a vida biológica.” (cf. Zaborowski, 1974, p. 223). O autor continua com uma reflexão de Heidegger: “Pois, a minha e a tua maneira de ser, como criaturas humanas na terra, resume-se em construir e morar. Ser humano (Menschlich) implica em vivermos como mortais na terra o que significa morar”. (in Zaborowski, p. 223). Não é aqui o lugar para entrar mais a fundo na filosofia ou fenomenologia do “bem morar”. Remeto esses tipo de reflexões para mais abaixo e os pensadores que mergulharam fundo no sentido do que significa o conceito  do “bem morar” e o monumental desafio da pós modernidade com suas concentrações urbanas, expansão das metrópoles e multiplicação de megalópoles, oferecer o mínimo de “lugares, espaços e caminhos” capazes de permitir que o humano no homem possa realizar-se na plenitude da sua riqueza e complexidade que tem como condição “o bem morar”.  

 

Depois dessa digressão que justifico como alerta que o conceito “morar” significa para os humanos muito mais do que um abrigo contra as intempéries, um refúgio para se proteger dos perigos que espreitam por todos os lados, ou um canto seguro e privativo para se reproduzir, permito-me voltar aos lugares, aos espaços e caminhos em que vivi meus primeiros anos de vida. Mais acima já os descrevi. Até aos 8 anos esse foi o meu mundo. Nasci naquela casa toda de madeira nobre abrigada na sombra de uma faixa de mata virgem e das árvores frutíferas e de sombra em volta dela. Naquele remoto 1930 o hospital mais próximo com médico e enfermeiras e respectivos equipamentos ficava em Porto Alegre a 100 quilômetros de distância por estradas precárias ou via fluvial a partir de São Sebastião do Cai. Todos os nascimentos, também o meu, aconteciam em casa normalmente com o acompanhamento de uma parteira. 

 

Não posso deixar passar o momento para render uma homenagem toda especial à personagem das parteiras, verdadeiros anjos da guarda sempre a postos para que o momento da entrada na vida de mais uma criatura humana acontecesse com os menores traumas possíveis, tanto para a mãe quanto para o nascituro. Essas mulheres carinhosamente chamadas de “tias” ou “tias cegonhas” (Tante ou Storchentante), salvaram a vida de centenas e mais centenas de parturientes e seus bebês naquelas incontáveis situações de risco de vida tanto para as mães quanto para as crianças. Costumavam ser mulheres de colonos com famílias numerosas como era o hábito daquela época, treinadas por parteiras experientes. A partir do final do século XIX o médico austríaco Gabriel Schlatter manteve junto a seu consultório em Estrela uma escola de treinamento de parteiras. Escolhia moças procedentes do interior colonial porque, segundo ele, essa missão pressupunha o conhecimento das circunstâncias e dos usos e costumes familiares daquele meio. Para quem se interessar por mais informações sobre essa missão e suas protagonistas recomendo a tese de doutorado de Giesela Büttner Lermen escrita sob minha orientação no Programa de Pós Graduação em História da Unisinos e publicada em língua alemã com o título: “Deutsche Einwanderinnen in Südbrasilien, 2004”. A versão original em português também acaba de ser oferecida pela Edit. Oykos. 

 

Como mandava o costume o batizado dos recém nascidos costumava acontecer na igreja matriz de Salvador, hoje Tupandi no decorrer das duas semanas após o nascimento. Um primo meu Arthur Rambo, do qual herdei o nome, foi meu padrinho e minha madrinha a Bárbara Both, uma prima em segundo grau do meu pai. A escolha do nome costumava ser feito verificando no calendário o santo padroeiro do dia. Como nasci no dia 3 de fevereiro e como santo do dia venerava-se São Braz ou São Blasio, meu nome completo e registrado tanto no religioso como no civil veio a ser Arthur Blasio Rambo. O registro civil costumava ser feito depois do batizado demorando, não raro, meses e até anos. Assim em não poucos casos havia uma diferença de até um ou dois anos entre a data do registro civil e do religioso.  

 

Cerca de 4 a 5 semanas dois do nascimento, a mãe refeita do parto e suas sequelas, levava o recém-nascido para assistir à missa no domingo e receber a bênção da purificação diante da comunidade reunida. Foi a primeira missa que assisti no colo da minha mãe e tenho toda a convicção, embora de nada me lembre como é óbvio, que aquele momento deve ter deixado uma marca no meu íntimo que continua a influenciar até hoje a minha postura perante os valores perenes da vida. Hoje, 94 anos depois, quando vez por outra visito aquela igreja, minha atenção dirige-se invariavelmente para aquele degrau à esquerda, ao lado do confessionário, onde as mães costumavam ajoelhar-se com seus recém nascidos para receber a bênção da purificação no final da missa, na presença de toda comunidade. Essa prática remontava à tradição judaica que obrigava as mães a apresentar a criança ao Senhor no templo, 20 dias depois do nascimento se fosse menino e 40 dias depois se menina. A comemoração da purificação de Nossa Senhora acontece no dia 2 de fevereiro, celebrado sob os mais diversos títulos. Em Porto Alegre a procissão pluvial de Nossa Senhora dos Navegantes faz parte dos acontecimentos religiosos e turísticos de destaque na cidade.