A Gênese da Germanidade
Na sombra do carvalho
O Pe. Balduino Rambo definiu numa só frase a relação existencial do homem com o chão em que vive e seu pertencimento ontológico a ele: “O homem filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria” (Rambo, 1942, p. 337). Sem tomar em consideração as circunstâncias físicas e geográficas, é impossível entender as histórias dos povos e a gênese das suas identidades étnicas. Na reflexão a que damos o sub título “Na sombra do Carvalho”, tentamos mostrar como essa afirmação encontra a sua confirmação na tradição cultural vivida pelos imigrantes alemães e seus descendentes no sul do Brasil. Desde a remota pré-História os povos germânicos dos quais descendem os “alemães” vindos para o Brasil, viveram e consolidaram suas tradições em meio às florestas que cobriam a Europa central e do norte. Pela sua imponência, seus troncos milenares, suas raízes sólidas encravadas no chão, o carvalho tornou-se o símbolo da história e da solidez do caráter étnico dos povos daquelas paragens, tão admirados por Tácito. Na sombra de carvalhos celebravam-se armistícios, decidiam-se guerras, celebravam-se as efemérides importantes das comunidades. A derrubada do carvalho sagrado por São Bonifácio convenceu os germanos de que o Deus dos cristãos era mais poderoso do que Thor, e em massa, converteram-se ao cristianismo.
A “Sombra do Carvalho” como metáfora cobrindo vastas regiões da Europa e, pela emigração avançou sobre países em outros continentes, também sobre o Brasil, a partir do sul. Onde quer que a “sombra do Carvalho” convida para a reflexão, estão presentes também as características do “rebento do carvalho”, transplantado para o Brasil: O amor à natureza e à querência natal – a Heimat; a paixão pela floresta virgem como cenário de múltiplos simbolismos; a família como núcleo da comunidade e esta como base da sociedade mais ampla; o papel da mulher na sociedade germânica; a lealdade aos chefes; o fascínio pelas personalidades fortes; a retidão de caráter; a religiosidade.
Floresta e germanidade
Depois desse panorama introdutório passamos a concentrar a atenção no cenário no qual, nos últimos dez mil anos, consolidou-se a gênese de uma estirpe humana, de uma civilização que terminou por projetar a sombra da sua influência sobre vastas áreas, também fora da Europa.
Em linhas gerais essa paisagem de florestas estendia-se entre o Reno, os Alpes, o Mar do Norte, o Báltico e no leste até as imensas estepes da Rússia. Uma poderosa floresta mista na qual se alternavam os gigantes de folhas caducas com outros gigantes de agulhas perenes. Abetos, álamos, pinheiros, bordos, tílias, castanheiras, plátanos e o soberano de todos, o carvalho com suas variedades, reinavam nessas florestas.
Pois foi nas entranhas das florestas da Germânia que nos últimos dez mil anos dezenas de estirpes, tribos e povos, consolidaram as bases de uma civilização rica, vigorosa e em extremo dinâmica. E nesta história o carvalho, a mais vigorosa, a mais frondosa, a mais duradoura e a mais longeva das espécies daquelas florestas, transformou-se no símbolo das culturas em formação.
Na antiga mitologia germânica, o deus da guerra está associado ao carvalho. Quando no século XIX, as ondas nacionalistas e restauracionistas que seguiram à derrocada do império napoleônico, buscavam voltar aos tempos ideais anteriores à Revolução Francesa, o carvalho e Thor retornaram. Neles se viam as raízes do antigo, da fidelidade, do duradouro. Nas pinturas de Caspar Friedrich (1774-1840), o maior expoente do romantismo alemão na pintura, o carvalho, sempre de novo, vai aparecer ao lados dos túmulos de heróis ou junto a mosteiros. Nos heróis e nos mosteiros, os carvalhos, cujos troncos estão repletos de nós e nódulos, que não se vergam e cujas raízes remontam à longa ancestralidade, são testemunhos da fidelidade. A durabilidade de suas raízes, aliás, é metáfora para todo aquele que não nega as suas origens e que lhes é fiel. (Dreher, in o Rebento do Carvalho, 2002, p. 3)
Fica mais do que claro nesta citação de Martin Dreher como nas entranhas das florestas da Germânia, uma única espécie de árvore, o carvalho, reuniu em si, como que numa síntese, o significado, a essência, os valores de uma história cultural. Na sombra dos carvalhos reuniam-se os guerreiros germânicos para reafirmarem perante si mesmos, perante os companheiros, perante o seu povo e, principalmente, perante Thor, o compromisso, o juramento de fidelidade às divindades, ao povo, à tradição, às raízes, com todos os seus valores. No decurso de séculos e milênios consolidou-se na sombra dos carvalhos da Germânia a linha mestra que até hoje marca o perfil das instituições que, de alguma maneira, são suas herdeiras: as famílias reunidas em comunidades, em estirpes e em parentelas. Nesta organização de base resolviam-se todas as questões de interesse comum. Os conselhos tribais julgavam os desvios de comportamento e os crimes que afetavam a harmonia interna ou abalavam as estruturas comunais, ou simplesmente as afrontava. Aplicavam-se penas aos infratores inclusive a pena de morte nos casos mais graves. Não importava se era o todo da assembleia comunal que decidia ou se a decisão era confiada aos anciãos, aos conselhos escolhidos pelos membros da comunidade, da tribo ou da estirpe. Todas essas modalidades de organização tinham na sua base, na sua essência, a mesma concepção organizacional da sociedade: a família monogâmica congregada em torno de um conjunto de valores sociais, éticos e religiosos, aceitos e defendidos como pressupostos para o bem estar do indivíduo e da coletividade. Ao grupo local cabia zelar pela observância das regras, dos dispositivos e instrumentos que a tradição e a longa prática haviam consagrado.
Vale a pena examinar mais a fundo alguns dos componentes mais significativos que moldaram o caráter histórico e cultural dos povos da antiga Germânia. Muitos deles entraram como traços constitutivos da cultura ocidental amalgamados com a herança grega, romana e cristã. É notável como, em momentos históricos decisivos, em que os herdeiros remotos dos antepassados germânicos participaram ou foram os protagonistas principais, muitos desses traços marcantes afloram, ou irrompem com todo o seu vigor primigênio. Momentos como a invasão dos bárbaros no Império Romano, as expedições dos Normandos e Vickings, a conquista das Américas não deixam dúvidas. A colonização por povoamento das mesmas Américas e parcelas de outros continentes, no decorrer dos últimos 200 anos, o arrojo e a ousadia dos navegadores e exploradores, o espírito com que os missionários se entregaram de corpo e alma às missões em todos os continentes, permitem ler nas linhas e perceber nas entrelinhas, os mesmos elementos dinâmicos. Tentamos apontar os mais significativos.