Personalidades fortes
Personalidades dotadas de um físico robusto e sobretudo dotadas de um caráter sólido, retilíneo, coerente, acompanharam sempre os grandes lideres, os grandes chefes, os reis e imperadores, os comandantes nos campos de batalha, os príncipes na condução dos seus domínios, os bispos à testa das suas dioceses, os missionários na pregação do evangelho. Entre eles não havia lugar para fracos, para pusilânimes e, menos ainda, para medrosos e covardes. Tanto os povos germânicos conhecidos por Tácito, como seus herdeiros mais de dois mil anos depois, se renderam como se rendem ainda ao fascínio e à mística das personalidades fortes. É neste contexto que é preciso entender a afirmação de Anton Stonner, ao mostrar como, na cristianização da Europa Central e do Norte, a personalidade forte dos missionários foi decisiva.
Avaliando-se (os missionários, religiosos e bispos) e empregando os mesmos conceitos da nossa terminologia atual, somos obrigados a dizer: os homens que protagonizaram a conversão ao cristianismo, conquistaram o reconhecimento por meio da sua coragem, do seu arrojo e da solidez do espírito. Tornaram-se guias espirituais devido às suas qualidades de liderança, como se conta do abade de Corbie: Era um homem que falava pouco, realizava muito e dominava a pessoas com os eu olhar de fogo. (Stonner, 1934, p. 20)
O “olhar de fogo” que impressionou tanto o cronista do abade de Corbie, reaparece em relatos cronologicamente muito próximos a nós, caracterizando missionários vindos da Europa para o Sul do Brasil. Num dos seus famosos contos em dialeto, o Pe. Balduino Rambo, conta como foi a primeira visita do padre Johannes Rick, originário do Tirol do norte na Áustria, aos colonos pioneiros na fronteira de colonização no oeste de Santa Catarina, na década de 1930.
O padre chegou a cavalo. Era um homem enorme, de ombros largos, braços compridos, punhos imensos, cabelos negros e o rosto cheio de sulcos e rugas, como que esculpido num tronco de louro. Quando apertou as mãos dos pioneiros e os encarou com seus olhos castanhos, todos se convenceram: este é o padre certo para nós. Não é de “frescuras” e, com seus olhos, nos penetra a nós colonos, até os ossos”. (Rambo Balduino, 2002, Vol. I. p. 288)
No mesmo contexto o autor põe na boca de um líder do grupo de pioneiros, o espírito que os animava ao enfrentarem a mata virgem. Depois de contar as peripécias próprias dum começo como aquele: seca, praga de gafanhotos, peste suína, ataque de bandos de revolucionários, perseguição política etc., concluiu:
Olha, padre, e tudo isso não nos abateu a nós moradores emigrados da Picada do Pote do Leite. Somos como aquela canafístula no alto do morro. Nenhuma tormenta conseguiu abate-la. Floresce todos os verões e não se importa se sobre seus galhos andam os macacos e os coatís e sobre eles pousam os urubus.
(Rambo Baluino, 2002,Vol. I, p. 294
Ilustrativo é também o depoimento de um antigo aluno do Ginásio Conceição, em São Leopoldo, no início do século XX, Aparício Torelli, o Barão de Itararé. Na despedida, após concluir os estudos, descreveu assim um dos seus mestres, o mesmo jesuíta tirolês citado há pouco, descendente, portanto, dos alamanos que se fixaram na região dos Alpes, no século quarto e quinto da nossa era.
Como último na portaria, topei com o Pe. Rick. Pousou suas mãos incrivelmente grandes sobre os meus ombros, cravou seus olhos castanhos puxando para o amarelo, nos meus, perguntou-me com uma voz que retumbava como o canto de guerra dos germanos: “Então, meu filho, o que pretendes ser?” Respondi, tremendo que pretendia estudar direito. “Tu e jurisprudência! Vai meu filho. De ti nunca sairá algo que preste!” Lembrando-me do total fracasso na matemática, anotei a terrível profecia. Desisti da jurisprudência e entrei no círculo dos literatos. Com que sucesso? Deixo que meus leitores decidam. (Rick, 2004, p.19)
Os depoimentos que acabamos de registrar soam, na verdade, como o eco dos antigos escritores que foram os grandes admiradores da natureza humana em seu estágio primigênio: um misto de rudeza e autenticidade, que marcavam os povos germânicos. César relatou.
Consta, conforme nos informam os nossos, o que nos relatam os gauleses e os comerciantes, quando destacam nos germanos a enorme estatura, a incrível valentia e destreza nas armas. Contam que, ao se encontrarem com eles, não foram capazes de suportar o seu olhar e os seus olhos penetrantes. Isto atemorizou de tal forma o exército como um todo que a coragem deu lugar a uma perplexidade generalizada. (cf. Tácito, p. 87)
E Sêneca em “De Ira”, 11.
Quem é mais corajoso do que os germanos? Quem mais agressivo no combate? Quem mais dado às armas? Neste clima, nascem e são educados. Nisto depositam todas as suas preocupações, enquanto não dão valor nenhum às outras coisas. Quem é mais forte e mais temperado para suportar tudo? Na maioria dos casos, não dispõem de vestimenta para o corpo, nenhuma proteção contra o clima eternamente frio. Ensinai-lhes a ponderação, ensinai-lhes a disciplinar seus corpos e seus corações valentes, que não conhecem prazeres, que não conhecem vida tranquila, e estaremos de volta por assim dizer, aos autênticos costumes romanos. (Sêneca, p. 87)
Na tradição germânica, o matrimônio monogâmico e vitalício, formava a base da família e ela, por sua vez, representava o fundamento último do edifício social. O papel da mulher não pode ser ignorado. Numa sociedade em que o arrojo, a valentia, a força física e moral ocupava o primeiro lugar entre as virtudes de um homem, a parceria com uma mulher igualmente ousada e destemida, conferia a qualquer empreendimento uma dinâmica e um ritmo todo peculiar pois, como observou Stonner,
Também nesta parceria, isto é, na construção da cultura, da etnicidade como um todo, homem e mulher atuavam juntos como camaradas. E neste sentido é significativo como se avaliam mutuamente, e qual a atitude externa e interna que cultivam um em relação ao outro. (Stonner, 1934, p. 37)