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A Natureza como Síntese - 7

As Ciências Naturais e as Ciências do Espírito em conflito

Uma situação impensável  há um século, tornou-se cada vez mais frequente de 100 anos para cá. Filósofos, teólogos e cientistas sentam-se com sempre maior frequência juntos à mesa, e o que é mais importante, de espírito desarmado, dispostos a dialogar sobre os avanços de cada lado em busca da compreensão do universo. 

Acontece, porém,  que o caminho que nos últimos anos levou a Ciência, a Filosofia e a Teologia a novamente dialogarem e trocarem resultados e conclusões, foi longo e penoso. Até o século vinte adentro assistimos a um distanciamento  cada vez mais profundo e mais radical entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Valendo-se de métodos de abordagem e de categorias de raciocínio aparentemente irreconciliáveis, cada lado foi elaborando e formulando uma compreensão do universo e de suas partes integrantes irredutível e excludente. 

As pesquisas científicas valendo-se do método analítico-indutivo desenvolveram instrumentos cada vez mais eficientes e  tecnologias sempre mais refinadas,  penetrando fundo nas incógnitas da natureza. Os resultados forneceram a base para generalizações e teorizações, em não poucos casos com evidentes características dogmáticas. Assim o mecanicismo que vê  os  acontecimentos  do universo  obedecendo exclusivamente a leis mecânicas, sem um objetivo, sem uma finalidade, sem o concurso de forças  e influências espirituais ou orgânicas. Da mesma forma o Darwinismo na versão de Thomas Huxley,  Haeckel e outros, foi transformado numa cosmovisão monista materialista. Filosofias da natureza como essas e outras  semelhantes, terminaram por impor-se como autênticos dogmas nos meios intelectuais, científicos e acadêmicos das universidades. A eles opuseram-se aberta ou veladamente os dogmas filosóficos e teológicos, invocando nos processos naturais a presença e o concurso de causas extra materiais, uma teleologia, a intervenção de atos criadores.... E a guerra aberta entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, levou a um impasse. Enquanto as duas cosmovisões  se digladiavam o homem comum  perguntava-se: Com quem está a verdade, onde está a verdade, enfim, o que é a verdade? 

Da parte da ciência os fundamentalistas apresentavam seus dogmas como respostas conclusivas para as perguntas sobre o universo. Do outro lado os dogmas e dogmáticos das mais diversas denominações filosóficas, teológicas e religiosas, reclamavam para si a mesma autoridade. Os dois arraiais encastelaram-se cada qual no seu radicalismo, no qual, pontos de vista, conclusões e afirmações se haviam transformado em verdades definitivas e irreconciliáveis. Cada qual se declarava porta voz da Verdade. A radicalização das posições atingiu a temperatura máxima durante a segunda metade do século dezenove e começos do século vinte. De um lado impuseram-se nomes como de E. Haeckel, Huxley, e outros, com suas teses radicais e, do outro, a posição não menos radical defendida e formulada e, em parte, consolidada pelo Concílio Vaticano I. Os ecos desta batalha vieram a repercutir também no Sul do Brasil. O desencontro foi especialmente agudo entre os jesuítas e a corrente liberal liderada por Karl von Koseritz. E não podia deixar de ser assim, visto que von Koseritz defendia  com agressividade as teses evolucionistas, materialistas e monistas de E. Haeckel. Os jesuítas, por sua vez, comprometidos com o projeto da Restauração Católica, foram seu alvo preferencial. 

No meio desse fogo cruzado o homem comum, razoavelmente bem instruído, foi tomado pela perplexidade. As Ciências revelavam cada vez mais evidências que abalavam a solidez das “verdades” acabadas. De outra parte os avanços científicos, na medida que penetravam a fundo nos processos naturais, deparavam-se com outras tantas perguntas sem resposta. As respostas  “dogmáticas a priori” dos teólogos, exegetas e demais autoridades eclesiásticas e as respostas “dogmáticas a posteriori” dos cientistas, empurravam a solução cada vez mais para o  impasse. O diálogo tornara-se quase impossível e, com isto, o entendimento praticamente sem perspectivas. O “fundamentalismo” científico e o “fundamentalismo” teológico, envolveram-se numa guerra estéril, na qual sobreviveram apenas perdedores. 

Francis Collins, diretor do Projeto Genoma Humano,  mandou o seguinte recado aos beligerantes de ambos os arraiais.

É hora de pedir trégua na guerra cada vez mais acirrada entre ciência e espírito. Essa guerra nunca foi de fato necessária. Como em tantas contendas mundanas, essa foi iniciada e intensificada por extremistas de ambos os lados, soando alertas que previam ruínas próximas a menos que o outro lado fosse eliminado. A ciência não é ameaçada por Deus; ela é  aprimorada. Certamente Deus não é ameaçado pela ciência; Ele a possibilitou por completo. Por isso, busquemos, juntos, recuperar os fundamentos sólidos de uma síntese satisfatória entre intelectualidade e espiritualidade de todas as grandes verdades. A terra natal da razão e da adoração nunca correu o risco de se esmigalhar. Nunca vai ocorrer. Ela acena para que todos os que buscam sinceramente a verdade venham e fixem residência. Atenda a esse chamado. Nossas esperanças, alegrias e o futuro do mundo dependem disso. (Collins. 2007.   p. 236)
Mais próximo a nós ainda, em 2006,  Edward Wilson, um dos mais respeitados entomologista e estudiosos dos ecossistemas naturais e humanizados, alinhou sua compreensão do mundo e da natureza, na mesma direção.

Alguns filósofos pós-modernos, convencidos de que a verdade é relativa e dependente apenas da visão do mundo de cada um, argumentam que não existe uma entidade tal como a “Natureza”. Para eles, trata-se de uma falsa dicotomia, que surgiu em algumas culturas e não em outras. Estou disposto a levar em conta esse ponto de vista, pelo menos por alguns minutos, mas já atravessei tantas fronteiras nítidas entre ecossistemas naturais e humanizados que não posso duvidar da existência objetiva da Natureza. (Wilson, E. 2008. p. 31)

  O biólogo Thomas Henry Huxley nasceu em 4 de maio de  de 1826 em Londres e faleceu em 29 de junho de 1895  também em Londres. Contemporâneo de Darwin tornou-se ao lado de Haeckel um ferrenho defensor da teoria da evolução ao ponto de ser apelidado de o buldogue de Darwin. Apesar desssa sua devoção a Darwin não aceitava simples e puramente tudo que o mestre ensiava. No atacado defendia a ferro e fogo a teoria da evolução, no varejo fazia questão de fazer valer as difrenças. Admirador de Karl von Baer, traduziu as obras dele do alemão para o ingles e defendeu os pressupostos de von Baer para explicar a evolução. 

A Natureza como Síntese - 6

Aos poucos os conceitos que alimentaram a beligerância, a guerra aberta, entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, cederam lugar a conceitos que colocaram essa relação em outras bases. Parece importante destacar alguns dos mais representativos.

Erich Wassmann trabalhou com os conceitos de Weldbild e Weldauffassung. O Weldbild ou “retrato da natureza” refere-se às realidades naturais objeto da investigação pelos métodos empíricos das diversas especialidades desenvolvidas pelas Ciência Naturais. Os dados obtidos resultam num retrato momentâneo da natureza. A formulação da Weldauffassung ou “Cosmovisão” é tarefa privativa do filósofo ao formular o significado, a razão de ser e o destino da Natureza e nela a posição do homem. Wassmann aponta assim para  necessidade de uma ação de complementariedade entre o cientista e o filósofo. Sugere ainda como consequência lógica que, tanto a Ciência quanto a Filosofia, tem algo a dizer sobre a natureza das realidades que compõe o universo; que  nem um nem outro dispõe dos instrumentos para chegar sozinho a uma resposta conclusiva e definitiva; que nos defrontamos com o desafio em que o “Weldbild” desenhado pelos cientistas fornece os dados empíricos para que o filósofo formule a “Weldauffassung”; que tanto o cientista quanto o filósofo se complementam  no esforço de aproximar-se  de uma resposta consensual sobre o que decide em última análise nesta busca, isto é onde e como o “Weldbild” e a “Weldauffassung”   se harmonizam e coincidem. Em outras palavras a Unidade radical  expressa na Multiplicidade, a Luz  que se manifesta nos milhares de cambiantes e combinações de cores. 

Hans Driesch contemporâneo de Erich Wassmann com base em observações feitas em embriões de ouriços do mar, concluiu que no ser vivo operam dois princípios. De um lado são as estruturas e funções biológicas e do outro o princípio vital. As duas realidades presentes em qualquer ser vivo acontecem não numa relação de reciprocidade complementar de importância igual e no mesmo nível. A relação e interdependência é de subordinação como ele mesmo o deixou claro ao explicar a sua concepção com a metáfora do navio. O “princípio vital” comanda as estruturas e funções vitais assim como o “capitão comanda o navio”. O avanço de Driesch em direção a uma concepção unitária dos seres vivos, foi considerável, mas não conseguiu superar a velho dualismo que justapõe as realidades empíricas às realidades não materiais, o espírito e a matéria, se é que não ocupam posições antagônicas.

Três décadas mais tarde entra em cena Teilhard de Chardin.   Enquanto Erich Wassmann partiu das suas observações com formigas e térmites e Hans Driesch de embriões de ouriços do mar, Teilhard de Chardin, inspirou-se  na formulação da natureza, do universo e do homem, em observações de paleontologia geral, paleontologia humana e dados complementares fornecidos pela biologia nos seus mais diversos campos. “Complexificação” foi  o conceito chave de que Teilhard se valeu. Complexificação não no sentido de “agregação” como acontece com uma pilha de tijolos que cresce por adição de sempre mais unidades; não no sentido de  “simples repetição geométrica” como se dá o “crescimento” de um cristal; mas por “combinação” que resulta numa realidade formada por um certo número fixo de elementos (o número na importa), num conjunto fechado como por ex. o átomo, a molécula, a célula, o metazoário ... Cada nível de complexidade guarda em potencial a possibilidade de passar a outro nível de complexidade estrutural, que a certa altura resulta no passo para a vida. Desdobra-se no número infinito de suas formas e categorias, para terminar no homem e projetar-se para além, para uma perspectiva cósmica. O grande motor da cosmogênese é a “complexificação” com todo o potencial de avanços e recuos que acompanham o fenômeno. A esta visão do universo subjaz a convicção da existência de um ponto de partida, um “Alfa” e um ponto de chegada ou de convergência, um “Ômega”. Pressupõe também a unidade do cosmos que se desdobra em milhões de maneiras de se manifestar, sempre amarradas a elementos estruturais básicos e comuns, manipulados por processos e leis também universais, operando nos limites estabelecidos pelo nível de  “complexidade”.  A cosmogênese assemelha-se assim a um caudal, impulsionado por uma poderosa teleologia que, apesar da diversidade que o caracteriza, os fluxos e refluxos que o animam e as calmarias ou turbulências que caracterizam seu percurso, vai ao encontro do oceano, do “omega”.

Contemporâneo de Theilhard de Chardin foi o biólogo Ludwig von Bertalanffy.  Associou-se ao mesmo esforço de encontrar um ponto de convergência entre as ciências naturais e as dos espírito. Se o instrumento teórico utilizado por Teilhard foi  “complexidade”, “complexificação”, Bertalanffy vale-se do conceito de “sistema”. A esses vão somar-se, entre outros, Nicolau de Cusa,  Theodosius Dobszhansky,  Balduino Rambo,  Francis Collins,  Edward Wilson, só para citar alguns dos mais expressivos.

  O resumo bibliográfico encontra-se no capítulo abaixa em que sua cosmovisão  é amplamente detalhada.
  A identificação biográfica de Ludwig von Bertalanffy encontra-se na introdução do capítulo abaixo que expõe sua Teoria dos Sistemas.
  Nicolau de Cusa nasceu em 1401 em Kues no distrito de Bernkaste-Kues no Mosela na Alemanha e faleceu em 1464 em Todi na Itália. Cardeal e filósofo é  um representante emblemático de pensador na transição da Idade Média para a  Renascença. Seu pensamento reflete bem as contradições como reflexo do período. As ciências começam a despontar com vigor ao mesmo tempo em que o misticismo se faz valer com igual intensidade. Além de pensador  representando o mundo intelectual da época, foi um grande administrador, cumpriu encargos diplomáticos a serviço do papa. Sua obra principal intitula-se “Docta Ignorantia”. Nela distingue 4 graus do conhecimento. l. Os sentidos dão a imagem confusa da realidade; 2. A razão as ordena; 3. a razão especulativa  as unifica; 4. a contemplação intuitiva alcança em Deus o conhecimento da unidade dos contrários. 
  Theodosius Dobzhansky. Os dados da sua identificação biográfica encontram-se no capítulo abaixo que se ocupa com sua tese sobre a natureza.
  Balduino Rambo: Sua identificação biográfica pode ser encontrada na introdução do capítulo relativo à sua maneira de conceber a natureza como síntese.
  Francis Collins. Sua identificação biográfica, como no o caso dos anteriores, introduz o capítulo relativo à sua concepção da natureza.

A Natureza como Síntese - 5

Relação Homem-Natureza 

Por felicidade essa guerra aberta irredutível não iria durar por muito tempo. A posição de leigos e religiosos, comprometidos com a doutrina católica, que dedicaram a vida ou parte dela à pesquisa científica, fez com que a partir do começo do século XX, se tentassem as primeiras pontes  para o diálogo entre as Ciências da Natureza e as Ciências do Espírito. Foi nesta época em que o jesuíta Erich Wassmann  desenvolveu  seus estudos sobre formigas e térmites, o padre secular Girolamo Bresadola  se tornou especialista em fungos, o monge Gregor Mendel  descobriu as leis básicas da hereditariedade no jardim do seu convento na Áustria, o padre jesuíta Johannes Rick,  aqui no Rio Grande do Sul,  tornou-se um dos micólogos mais respeitados da época, o cientista Hans Driesch,  partindo de observações feitas em ouriços do mar, formulou a teoria do “Vitalismo”.  

Partindo de uma base mais teórica Karl Ernst v. Baer  formulou a teoria de que os processos evolutivos obedecem a  uma teleologia, em contraponto ao darwinismo que atribui esses acontecimentos a uma dinâmica fortuita, errática e entregue ao acaso. Examinada com atenção, a teoria da seleção natural parte do pressuposto de que a evolução resulta, em última análise, de uma “adaptação passiva”. Os mais bem adaptados sobrevivem e os menos bem adaptados são eliminados. Parte, portanto, de um dado prévio, sem se preocupar em identificá-lo, muito menos em explicá-lo. No exato ano do nascimento de Darwin – 1809 – Lamarck já percebera que sem resolver essa questão, toda a genialidade de uma concepção evolucionista da natureza, carecia de fundamento  sólido. Foi, entretanto, infeliz na formulação da sua proposta e atropelado pelo “fixismo”  de Cuvier  e, mais tarde, ignorado  pela repercussão da obra de Darwin. 

Tanto Lamarck em 1809, quanto von Baer e Oskar Hertwig,  noventa anos mais tarde, perceberam que a adaptação passiva não passava de um mecanismo parcial, senão secundário, no acontecer da evolução, que requer a transformação como motor fundamental. A transformação, como é óbvio, não resulta da eliminação dos menos bem adaptados. Além disso há a pergunta  crucial a ser respondida: como surgiu a energia, a matéria, a natureza e a vida capaz de transformar-se e evoluir. Deixando de lado, pelo menos por enquanto, a questão das causas, centremos a atenção no fato de que a evolução somente se explica de alguma forma se associarmos a seleção natural ou a adaptação passiva a uma capacidade interna de adaptação dos organismos vivos  ou “adaptação ativa”. Hertwig contrapôs ao princípio darwiniano da “seleção natural”, o princípio da “ação ativa”. O número de adeptos dessa maneira de explicar a evolução, foi crescendo e impondo-se a representantes respeitados no contexto das Ciências Naturais. Aqui merece, entre outros, destaque especial Karl von Baer, por ter formulado de maneira clara e consistente a teoria de que a “adaptação ativa” acontece porque os organismos vivos vêm munidos de uma “capacidade natural, inata de adaptação. Sem essa característica tanto a evolução filética, quanto a evolução individual é impensável. Nessa concepção está implícita a exigência de uma teleologia “utilitária” que objetiva tanto a gênese de organismos mais aptos à sobrevivência, quanto a evolução filética. Acontece então a feliz combinação entre o impulso teleológico e os estímulos vindos das circunstâncias ambientais. As  adaptações e a gênese de novas formas desencadeadas pelos estímulos externos, somente então são possíveis, quando previstas ou “pré-programadas” no genoma. Sem tomar em conta a adaptação ativa, portanto, uma evolução no verdadeiro sentido da palavra, é impensável. Dito de outra maneira. A capacidade do potencial do ser vivo reagir teleologicamente aos estímulos do meio, conservando a vida e originando novas formas de vida, somente se explica com a participação de tendências evolutivas fazendo parte da própria natureza do organismo vivo. De outra parte, porém, tudo isso não teria sentido se essas tendências não estivessem em condições de responder aos estímulos do meio externo. Caso não fosse assim a vida não subsistiria às contínuas alterações que  ocorrem no meio ambiente. Essa constatação vale tanto para a primeira célula viva quanto para as inúmeras adaptações que se sucederam no decorrer na história de todas as formas de vida.  

  Fixismo Afirma que todas as espécies forma criadas por Deus e permanecem imutáveis enquanto não forem extintas. Em outras palavras, existem tantas espécies quantas foram criadas no começo.
  Cuvier nasceu em 23 de agosto de 1769 em Montbélard – França e faleceu em 15 de maio de 1832.. Foi o o mais expressivo entusiasta e propagador do Fixismo.
  Oskar Herwig biólogo alemão  especializado em embriologia. Nasceu em 21 de abril de 1849 em Friedburg – Alemanha e faleceu em 25 de outubro de 1922 em Berlim. Identificou os mecanismos básicos da evolução como explicado no resumo do texto acima.

A Natureza como Síntese - 4

A Relação Homem-Natureza 

A relação simbiótica, a relação existencial do homem com a natureza, os simbolismos, as metáforas, os mitos, o imaginário, que povoam a história e a cultura do homem de todos os tempos e de todas regiões do planeta, como fruto dessa simbiose homem-natureza, compõem um campo fascinante pouco explorado. Edward O. Wilson,   um dos mais respeitados entomologistas definiu nos seguintes termos essa relação: 

A atração gravitacional  da Natureza sobre a psique humana pode ser expressa em um único termo, mais contemporâneo: Biofilia, que defini, em 1984, como a tendência inata para se afiliar à vida e aos processos vitais. Desde a infância até a velhice, as pessoas de todas as partes  do mundo sentem atração pelas outras espécies. A novidade e a diversidade da vida são apreciadas. Hoje  em dia a palavra ”extraterrestre” evoca, melhor do que nenhuma outra, as incontáveis imagens da vida inexplorada, substituindo a antiga  palavra “exótico”, antes poderosa, que atraia os viajantes do passado para selvas remotas e ilhas ainda sem nome. Explorar a vida e filiar-se a ela, transformar criaturas vivas em metáforas carregadas de emoção, inseri-las na mitologia e na religião – eis os processos  fundamentais, facilmente reconhecíveis, da evolução cultural biofílica. Essa filiação tem uma consequência  moral: quanto mais compreendemos  outras formas de vida, mais o nosso aprendizado se expande, abrangendo  sua diversidade e maior é o valor que atribuímos a elas – e, inevitavelmente  a nós mesmos. (Wilson, 2008. p. 75)

Refletindo com mais atenção sobre esse depoimento da autoridade de peso  do prof. Edward Wilson, a Natureza e o Homem nela inserido, fazem intuir o universo que se oculta atrás desse binômio. De outra parte salta aos olhos a temeridade, para não falar presunção, de alguém, por maior especialista que seja, querer oferecer explicações conclusivas, sobre questões fundamentais, como a natureza do homem, a existência ou não de Deus, o sentido do universo e outros mais. O homem está inserido na natureza que se desdobra à sua frente, não só na condição de integrante passivo, mas como curioso que não se cansa em procurar um sentido para tudo que o rodeia e, principalmente, entender a razão da sua própria existência no universo ao qual está entregue o seu destino como espécie. Assim cada conquista tecnológica, cada avanço científico e cada incursão e aprofundamento na reflexão filosófica e, cada atualização das concepções religiosas, significam passos a mais em direção à compreensão do Homem e da Natureza. Acontece, entretanto, que  cada incógnita respondida, traz à tona outras tantas para desafiar os especialistas. A  busca do homem pela compreensão da Natureza e o seu sentido assemelha-se  ao desenrolar de um novelo que não tem fim. Cada passo nesse desenrolar revela mais surpresas e incógnitas  não esperadas, do que soluções e respostas dadas. Uma reposta definitiva  e conclusiva parece distanciar-se a cada passo que se avança. Tanto o cientista, quanto o filósofo e o teólogo flagram-se no esforço de se aproximar da  linha do horizonte que se afasta na mesma velocidade em que se tenta a aproximação.  A pior atitude nesta corrida é aquela em que o cientista afirma: “encontrei ou certamente encontrarei a explicação final para todas as coisas”; quando o filósofo conclui que “já não restam dúvidas diante das conclusões do seu raciocínio; quando o teólogo aponta “que divindades ou forças sobrenaturais  comandam, em última análise,  tudo”. Este tipo de postura leva fatalmente a posições fundamentalistas irredutíveis, tanto no plano religioso, quanto no filosófico e no científico. Infelizmente foi essa radicalização que impediu o diálogo entre a pesquisa científica, a filosofia e a teologia, durante o século dezenove e boa parte do século vinte. E, na medida em que o embate se acirrava, saíam prejudicados os avanços em todos os campos do conhecimento e a produção de novos conhecimentos encolheu de forma visível. Basta percorrer as estantes das bibliotecas com acervos significativos que guardam obras publicadas nos últimos cinco séculos. Salta aos olhos o volume e o alcance das produções que revolucionaram o pensamento e terminaram por imprimir as características da civilização moderna e contemporânea. Os autores e as obras reitoras  dessa revolução histórica de proporções planetárias, concentram-se no que às vezes se chama de “grande século XIX” – 1750-1914. Nele definiram-se as linhas filosóficas mestras do  Iluminismo,  do Racionalismo,  do Evolucionismo,  do  Materialismo,  do Socialismo, ao lado das correntes filosóficas da antiguidade e da Idade Média que nunca perderam a importância e o vigor. Paralelamente consolidaram-se as bases teóricas e metodológicas das Ciências Naturais e foram feitas algumas das descobertas cuja validade a moderna tecnologia científica comprova a cada dia que passa. Entre estas sobressaem os dois campos complementares que, por assim dizer,  representam a alma de muitos  dos mais importantes laboratórios espalhados pelo mundo, empenhados tanto  na pesquisa pura quanto na aplicada: as leis e processos que comandam a evolução da vida em geral e as leis e processos que comandam a herança biológica e a utilização desses conhecimentos para o desenvolvimento de biotecnologias. 

As Ciências empíricas  ou experimentais consolidaram suas  bases metodológicas e teóricas e as novas correntes filosóficas conquistaram espaços sempre mais amplos. A Filosofia tradicional e, de modo especial, a Teologia tradicional, sofreram uma diminuição substancial na sua influência, tanto em extensão quanto em profundidade. Parece que em toda a primeira metade do século dezenove predominou o distanciamento entre o “moderno” e o “tradicional”. Não se observam maiores embates entre os protagonistas dos dois arraiais. Mas essa convivência mais ou menos civilizada cedeu, aos poucos, lugar a um clima de beligerância e, não raro, de guerra aberta. Dois fatos e dois momentos praticamente simultâneos levaram a essa situação. O “Manifesto Comunista” de Karl Marx em 1848 e “ Origem das Espécies” de Charles Darwin em 1859. Essas duas obras provocaram um autêntico terremoto pelo que significaram em si e, de modo especial, pelo potencial de munição que uma ofereceu à outra. Em outras palavras.  O princípio da evolução que para Lamarck  e Darwin explicava a origem e o surgimento de novas espécies, não demorou em ser emprestado pelos sociólogos, cientistas políticos, economistas, historiadores, estudiosos das religiões, para explicar a gênese e a dinâmica que ocorre nesses campos. Como se pode perceber e prever, o confronto direto com a Filosofia e a Teologia tradicionais, era apenas uma questão de tempo e de ocasião. O Concílio Vaticano I marcou talvez o momento culminante deste embate. Sua convocação por Pio IX  teve como motivação central definir a posição da Igreja Católica diante da situação criada pelas Ciências Naturais e pelas correntes filosóficas responsáveis pela assim chamada Modernidade. Seria longo demais enumerar as principais decisões tomadas durante a realização do Concílio. Só para sentir o clima que motivava os debates, basta lembrar que o evolucionismo estava na pauta de ser declarado como heresia. Felizmente a guerra Franco-Alemã interrompeu-o definitivamente. Do lado oposto o radicalismo não foi menor, expresso nos escritos e manifestações de Ernest Haeckel  e adeptos. 
liberaliso” e na famosa encíclica “Quanta Cura” de 1864, condenou a teses que contrariavam a doutrina católica da época. Como completo da encíclica  veio também o famoso “Syllabus errorum”, que enumerava e condenava os principais erros na visão de Pio IX: o panteísmo, naturalismo, racionalismo, socialismo, comunismo e outras doutrinas.  Convocou o Concílio Vaticano I em 29 de junho de 1869. Na quarta sessão do concílio a infalibilidade do papa foi declarada dogma de fé. Durante o seu pontificado ocorreu a unificação da Itália e  a extinção dos estados pontifícios e sua incorporação na nova República da Itália. O papa considerava-se um prisioneiro no vaticano, situação que perdurou até 1927 conhecida como “Questão Romana com a assinatura do Tratado do Latrão entre Benito Mussolini e o papa Pio XI. 

Ernst Heinrich Pfilipp August Haeckel nasceu em 16 de fevereiro de 1834 e faleceu em Jena em 9 de agosto. de 1919. Naturalista, médico e filósofo fi um dos convictos  divulgadores da teoria da evolução de Darwin. Levou  a evolução até as últimas consequências fundamentando sobre ela o Monismo Materialista que teve  adeptos até no sul do Brasil sob a liderança de Karl von Koseritz. Haecke é o autor da famosa  “Lei Biogenética Fundamental” ou “Lei da Recapitulação, que ensina que a evolução do embrião é uma repetição da evolução geral dos seres vivos

A Natureza como Síntese - 3

A Relação Homem-Natureza  

A relação  diuturna, íntima, existencial entre o homem e a natureza, não pôde deixar de despertar a curiosidade para entender os processos naturais. Acontece que ele não foi um mero espectador dos acontecimentos que movimentavam o mundo ambiente em que vivia. Em sintonia com ela elaborou  a sua cultura e construiu a sua história. Ele próprio foi um dos protagonistas, um dos atores em meio a essa dinâmica. Sua inserção nela se deu em todas as dimensões existenciais: no plano físico, biológico, instintivo, racional e espiritual. Pelo físico, como se apontou mais acima,  situa-se numa dimensão que o nivela com a natureza mineral, no biológico com a vegetal e animal, no instintivo com o animal e pelo racional e espiritual, supera e distancia-se dos demais níveis. Teilhard de Chardin diria que o homem insere-se existencialmente na “litosfera” e na “biosfera”, mas supera essas duas dimensões porque, pela inteligência reflexa, dando existência à “noosfera”. Mas em todos os níveis, num mais noutro menos e, à sua maneira, as circunstâncias naturais deixam suas marcas indeléveis. Afinal o homem encontra-se existencialmente inserido no contexto natural. Não é aqui o lugar para examinarmos como aconteceu e como nesta relação simbiótica as coisas se deram no plano material e instintivo da vida do homem e da sua cultura. Deixamos esta análise para os estudiosos da biologia humana, para os etnógrafos, os etnólogos e os historiadores da cultura. 

Tomando como base a publicação das fontes referentes à história ambiental, para que as presentes reflexões  devem servir de introdução, o interesse em primeiro lugar concentra-se no que eles tem a oferecer e a sugerir em termos de uma cosmovisão ambiental. 

A inserção existencial do homem no universo natural ou, repetindo mais uma vez, a relação simbiótica existente na sua raiz, fica evidente nos traços mais diversificados, mais discretos e nas aparências até mais insignificantes. 

Basta um olhar um pouco mais atento para nos convencermos do acerto desta afirmação. Entre os povos agricultores, por exemplo, o sol e a lua, a alternância mensal das suas fases e da sucessão das estações do ano, fez com que  construíssem o seu mundo simbólico, com todo um universo de costumes, hábitos, valores,  crenças, cultos e rituais. O sol definia os ciclos anuais e, pela alternância das estações comandava a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, crescimento, o florescimento, a maturação dos frutos e, finalmente, a colheita. Em meio ao fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, declinar e morrer, fenômenos  pela sua natureza astronômicos, cosmológicos, geográficos, climatológicos, transformaram-se em fatores causais de fundamental importância na consolidação da identidade dos povos e culturas.. A primavera passou a simbolizar o germinar da vida, a infância, a juventude; o verão o vigor e a plenitude adulta; o outono  a colheita dos bons ou maus resultados; o inverno o declínio e, finalmente a morte para, em seguida, germinar nova  vida e recomeçar o eterno vir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e os ciclos da vida confundem-se simbolicamente numa única e mesma dinâmica. Fala-se então em primavera da vida, outono da vida, inverno da vida. Pela mesma importância em não poucas culturas o sol e a lua são cultuados como divindades.

No mesmo sentido vai toda uma compreensão de outras realidades naturais. Cito apenas algumas mais. A água como elemento indispensável à vida, figura como objeto de veneração na história de inúmeros povos. Água e vida  tornaram-se sinônimos. Como a água que dá vida é, por excelência, aquela que se bebe nas fontes, brotando da rocha ou das entranhas da terra, atribuem-se às próprias fontes  propriedades curativas especiais, efeitos mágicos, milagrosos ou afrodisíacos. Combinada com outras realidades, mereceu ser cultuada em não poucas culturas. Assim, por exemplo, prometia-se em não poucas tradições vida longa e saudável para   quem se banhasse no primeiro dia do novo ano numa fonte, brotando diretamente da terra ou da rocha. 

Não é por nada que a água, pela importância vital para o equilíbrio da natureza como um todo e pela dependência dela para a vida e a morte da vida na terra,  foi explorada com finalidades terapêuticas na bases de suas propriedades naturais e as atribuídas pelo homem nas suas tradições culturais. Não é aqui  o momento para explorarmos em profundidade essa importante questão. Cabe, entretanto, um exemplo para ilustrar a importância e a popularidade que método da cura pela água assumiu no final do século XIX e começos do século XX. O exemplo mais emblemático no recurso à água como terapia para curar praticamente todas formas de problemas de saúde, foi o método aperfeiçoado por Sebastian Kneipp, um simples pároco da cidadezinha de Woerishofen na Baviera. Inspirado no livro dos Reis 4 capítulo 5, vers. 10: “vai e lava-te sete vezes no Jordão e tua carne recupera a saúde e tu a pureza”, elaborou o método: “Minha Cura pela Água – A cura pela água e a preservação da saúde”. Na condição de pároco no interior da Baviera, sul da Alemanha, entrou em contato com inúmeros casos de doentes e doenças as mais variadas por parte de pessoas pobres simples que não tinham acesso aos médicos e medicamentos convencionais. Para estes ele ofereceu seu método experimentado por anos, com resultados extraordinários. Na introdução para a primeira edição 1886, chamou a atenção para a intenção que o levou a se interessar pelo problema da “saúde do corpo ao mesmo tempo que cuidava da saúde da alma”. 

Dediquei-me com especial atenção e amor às classes mais pobres e sem acesso à medicina convencional. A eles dedico em primeiro lugar o meu livrinho. Por isso seu estilo é simples, despido sem recurso ao linguajar técnico, em forma coloquial. (...) De forma nenhuma tenho a intenção de polemizar com qualquer orientação da medicina formal. Tenho a impressão que a publicação tem o seu valor no fato de que um leigo no assunto se ocupe com uma questão tão importante e contribua com sua experiência diária com o povo. Recebo com gratidão sugestões e críticas. (cf. Kneipp, 1886, p. III-IV). A aceitação do Método Kneipp foi de tal ordem que entre 1886 e 1891 foram publicadas nada menos do 33 edições. Fundamenta-se no pressuposto de que todas doenças que de alguma forma são passíveis de cura, encontram solução com a utilização da água pois, tem como objetivo atacar a raiz de todos os males. Em resumo são os seguintes: 1. Dissolver  no sangue os agentes das enfermidades; 2. Eliminar os causadores das doenças diluídas no sangue; 3. Fazer com que o sangue purificado circule normalmente; 4. Por fim restabelecer as resistências debilitadas do organismo. 

Seu colega de estudos Mathias Pfluger, desenganado pelos médicos, submeteu-se ao método Kneipp. Recuperou-se completamente, ordenou-se sacerdote e, depois de entrar na Companhia de Jesus, foi enviado pelos superiores da Alemanha para trabalhar na Missão dos Jesuítas no Sul do Brasil. Fundou e consolidou a Paróquia de Tupandi, hoje município com o mesmo nome, onde faleceu em 1905 com 77 anos. Na época, segunda metade do século XIX, atendimento médico formal e consultórios de médicos diplomados, só em Porto Alegre. Essas circunstâncias fizeram com que o Pe. Pfluger popularizasse entre seus paroquianos e comunidades vizinhas o Método Kneipp. Ainda hoje, mais de 100 anos depois da morte do pároco, mesmo com assistência medica acessível  nos rincões mais remotos, o recurso à práticas de cura pela água ainda são frequentes especialmente em casos nas gripes tão comuns em certas estações do ano.

Tão populares como o Método Kneipp as clínicas de hidroterapia, sob a responsabilidade de médicos e profissionais da saúde credenciados, atendiam em centros urbanos, em sítios de águas termais,  oferecendo uma infraestrutura completa e credenciada pelas autoridades sanitárias. 
Pelo mistério que costumam envolver montanhas, vulcões, lagos e os próprios mares e oceanos, terminaram por personificar figuras mitológicas ou representar lugares sagrados, que passaram para o imaginário dos povos na forma de crenças, mitos e tabus. Os deuses e deusas do monte Olimpo, distantes dos homens, entregavam-se às suas intrigas e pouco se importavam com o que acontecia no quotidiano dos mortais. A atitude olímpica tornou-se sinônimo de uma postura  sobranceira, distante, alienada e desprezadora da realidade, por assim dizer, acima do bem e do mal.. O vulcão Fuji simboliza a própria história do povo japonês. Espíritos que não toleravam a presença do homem povoavam lagos como o de Lhangue no Chile, fazendo com que suas proximidades permanecessem despovoadas até a chegada dos imigrantes alemães em meados do século XIX. 

A Natureza como Síntese - 2

A Relação Homem-Natureza

A relação homem-natureza implica, antes de mais nada, na intrincada relação de causa e efeito entre homem e o ambiente natural em que vive. E não se trata obviamente de uma mera relação conjuntural, mas de uma inserção existencial do homem no mundo ambiente que o cerca mediata e imediatamente. 
Essa relação homem-natureza torna-se evidente, como foi apontado na introdução, quando se presta atenção a alguns fatos que, de tão presentes no quotidiano e de tão “corriqueiros”, escapam à percepção do dia a dia. Começa por aí que o corpo material do homem busca os componentes  estruturais entre os elementos encontráveis na natureza: oxigênio, nitrogênio,  gás carbônico, sais minerais, enzimas, vitaminas, e um número indefinido de outros. Trata-se, portanto, dos mesmos componentes  que entram na composição dos minerais e dos seres vivos em todos os níveis da escala botânica e zoológica. Dessa forma a existência biológica do homem é impensável se desenraizada do chão desse fundamento natural. Mais. Essa relação só se sustenta porque busca permanentemente no ambiente natural, a reposição das matérias primas exigidas pelos processos vitais. 

A mesma constatação aparentemente simples e óbvia, leva-nos a dar um passo adiante na nossa reflexão. O homem ao alimentar-se e ao respirar, busca a matéria prima no meio ambiente.  Entre os animais e vegetais o alimentar-se e o respirar, resume-se em atos e fatos naturais, espontâneos, instintivos, reflexos, destinados à garantia da sobrevivência e o bem-estar ao nível elementar da sobrevivência física do indivíduo e da espécie. 

Desde que o homem despontou no cenário deste planeta, não importa há quantos milhares ou milhões de anos, nem em que continente ou em que circunstâncias ambientais e climáticas, já faiscava  em seu cérebro a centelha da inteligência reflexa. Pouco importa também se ostentava uma fisionomia mais ou menos teromorfa ou humana, de acordo com os critérios utilizados na etnografia e etnologia clássicas. Perambulava pelas florestas, pelas estepes, pelas savanas, pelas montanhas e planícies, com olhar curioso e inquiridor. Observava, experimentava e selecionava aquilo que a natureza oferecia em alimentos, vestuário, abrigo e matérias primas para a confecção dos seus artefatos de sobrevivência, armas de caça e  defesa. 

Guiado pelo instinto de sobrevivência foi buscar no meio ambiente os alimentos de que necessitava, meios para proteger-se contra as intempéries e construir abrigos ou instalar-se  em cavernas. Todos esses procedimentos ultrapassaram, desde o começo, o simples ato instintivo, compulsório, para fazê-los acompanhar de rituais, cerimônias ou tabus,  de natureza cultural. O ato de alimentar-se assumiu entre muitos povos as características de um ritual mágico ou religioso. E não somente o ato de alimentar-se, como os próprios alimentos passaram a fazer parte das culturas, revestidos de sacralidade, dotados de poderes mágicos, de efeitos afrodisíacos, ou de forças milagrosas. O mesmo se pode afirmar do vestuário e da habitação. 

A convivência e, mais ainda, a parceria  do homem com a natureza,  ensinou-lhe caminhos e formas de como consolidar melhor uma parceria  com ela, de como viver e sobreviver nela e de como transformá-la numa aliada sempre presente e numa parceira indispensável na construção das suas culturas e histórias. E desta parceria do homem com a natureza resultou uma autêntica relação simbiótica entre os elementos e os processos que integram a História Natural e a História Cultural. 
E nesse esforço, uma tríplice  gama de  desafios estimulou a criatividade do homem. Em primeiro lugar, foi o desafio de encontrar na natureza o alimento e o abrigo, garantindo a sobrevivência biológica. O segundo desafio consistiu em desenvolver tecnologias cada vez mais eficientes para, gradativamente,  tornar mais fácil e mais eficiente a obtenção dos alimentos, a confecção do vestuário e a instalação de abrigos. O terceiro e o maior de todos os desafios foi o esforço de penetrar nos mistérios da natureza, compreendê-los e, espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo, desvendar as incógnitas da própria existência e tentar formular sínteses compreensivas e compreensíveis sobre si mesmo e o universo em que vive. 

O convívio imediato, íntimo, diuturno, existencial com a natureza, despertou no homem a percepção inequívoca de fazer parte integrante dela. Além de depender dela para a vida e a morte, o ritmo da sua vida seguia na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E, neste conviver simbiótico, foi construindo a sua história, as suas culturas, os seus imaginários, as suas simbologias, as suas mitologias, os seus rituais, os seus sistemas éticos, enfim, as suas cosmovisões. Tudo que o rodeava, por assim dizer, animava-se e personalizava-se de acordo com o significado material, mágico, simbólico ou religioso de que vinha acompanhado. As realidades  e fenômenos naturais assumiam vida e importância pelo que sugeriam à imaginação e pelo que representavam no quotidiano. Acontece que, desta maneira, um espelhar-se recíproco entre o homem e os fenômenos e realidades naturais e, em meio a esse processo de inter-relacionamento, a cultura foi desenhando seus contornos e a história definindo o seu rumo. 

A Natureza como Síntese - 1

Ninguém de sã razão põe em dúvida  que entre o homem e a natureza que o cerca, há uma relação profunda. Os fatos estão aí e dispensam argumentos científicos e raciocínios complicados. As evidências começam pelo fato de a matéria prima que entra nas estruturas físico-químicas do organismo humano, são as mesmas que se encontram em a natureza mineral. Provam-no os resíduos que sobram da cremação de  um corpo. Para lá de dois terços do peso foi água e evaporou, do que sobrou mais de noventa  por cento foram compostos de carbono. Na caixinha de cinzas podem ser identificados em torno de duas dúzias de minerais, todos constantes na tábua periódica dos elementos, encontráveis todos na composição da natureza inorgânica e orgânica. Além disso entram na composição de todos os seres vivos, desde os unicelulares mais simples até os vertebrados mais complexos. Nada mais acertado do que afirmar que o homem, quanto ao seu organismo biológico é feito do mesmo “pó da terra”,  que  o do mundo mineral, orgânico e vivo, com quem divide o cenário natural em que passa a sua existência. 

Passando agora para o plano do funcionamento do organismo, percebe-se outro dado que faz pensar. Os processos fisiológicos que garantem a sobrevivência dos indivíduos e da espécie humana são, na sua natureza, os mesmos que asseguram o bom andamento das funções vitais de uma ameba ou de um tripanosoma. Desde aqueles seres vivos, aparentemente tão sem importância, passando por todos os estágios intermediários da ascensão biológica, para culminar no auge da complexidade dos animais superiores e do homem, os processos fisiológicos são comandados pelo genoma de cada uma. A engenhosidade desse código, ao mesmo tempo complexo e simples, capaz de se auto duplicar indefinidamente, suscetível a modificações induzidas pela variação das condições ambientais, explica, de um lado, a sobrevivência dos indivíduos e a continuidade da espécie e, do outro,  sua transformação e, consequentemente, sua evolução. Por essas suas características, o código genético confere à natureza viva, em grandes linhas, uma grande unidade pela base, ao mesmo tempo em que permite a sua manifestação numa incontável variedade de formas, tamanhos e cores, e ninguém de sã razão, hesita em incluir a espécie humana nessa dinâmica universal. 

Acontece, porém que, em se tratando do homem, lidamos com uma espécie que transcende radicalmente o nível biológico que marca as fronteiras entre as demais. Dotado de inteligência reflexa faz com que estabeleça uma relação com o meio ambiente que supera essencialmente aquela ditada pelo instinto. Embora haja  muito de instintivo no comportamento humano na relação com o meio, não se pode perder de vista que isso prova que o homem continua com as raízes biológicas fincadas fundo no entorno físico, químico, orgânico e vivo. Os estímulos oriundos dessa realidade, são o ponto de partida para as respostas que induzem da parte da inteligência racional, as respostas que já não são instintivas. 

A Natureza como Síntese

A Natureza existe e subsiste sem o Homem, mas, o Homem não existe nem subsiste sem a Natureza

Em dezembro de 2015 realizou-se em Paris a Conferência Internacional do Clima. Reunidos estavam os chefes dos governos das grandes potências, dos emergentes além de representações de países do terceiro mundo. O show foi comandado pelas estrelas dos primeiros. Nesse cenário não podiam deixar  de se fazer ouvir as vozes das organizações que pululam pelo mundo a fora, com o propósito sincero ou nem tanto de salvar o que sobrou da natureza, “a casa” da humanidade, o lar no qual surgiu a espécie humana,  se abriga e se sustenta. Desde o momento em que  o primeiro dos seus representantes começou a respirar o ar das suas florestas e savanas, servir-se de suas dádivas. essa casa foi seriamente maltratada com o andar dos séculos e milênios. O estrago causado é de tal ordem que, com razão, preocupa grandes e pequenos, pobres e ricos, poderosos e humildes, governantes e o povo em geral. Afinal essa “casa” abriga a todos e a todos sustenta. Sua degradação termina atingindo  indistintamente a todos. Primeiro e o mais cruelmente os menos favorecidos, mas é uma questão de tempo para que cobre seu preço também aos poderosos e aos magnatas. A prova está aí. A cúpula do poder político somada à cúpula do poder econômico, encontraram-se em Paris para ouvir o grito de socorro dessa “nossa mãe e pátria”, como a chamou o Pe. Balduino Rambo, maltratada até o irracional pelo homem “racional”.

Diante da gravidade  da situação e da obrigação de uma modesta contribuição para colaborar com esforço universal pelo bem estar da “nossa casa”, na definição do Papa Francisco” na sua Encíclica “Laudato Se”, ofereço aos frequentadores do meu Blog, 80 reflexões, nas quais pretendo que a Natureza é uma gigantesca unidade, finamente calibrada e de alta resolução. Interferir nessa Unidade ou Sistema, mesmo em seus mínimos detalhes, termina afetando o Todo, proporcionalmente à extensão e profundidade da agressão. 

Seguem postagens de dois em dois dias.

Chegou-se ao limite e se tornou urgente uma tomada de posição, definir políticas globais e partir para ações concretas sérias, isentas e desinteressadas. O momento é de tomar decisões para valer e firmar compromissos objetivos e sérios para enfrentar o problema. O debate não pode  estagnar e esgotar-se no nível de uma cortina de fumaça de belas e sonoras intenções; não se soluciona com critérios econômicos; não se avança na solução dos  problemas ambientais com iniciativas turbinadas  por toda a sorte de ideologias e ou interesses não confessados ou não confessáveis. Não há mais tempo a perder pois, a questão ambiental é urgente e complexa demais. 

No texto abaixo não se pretende refletir ou analisar políticas públicas, políticas de natureza geoeconômica, considerações de natureza ecológica, ou propostas concretas de ação. Deixamos esse lado da questão para os respectivos especialistas, peritos, ativistas e outros mais,.
O que de fato nos interessa é um pressuposto que deveria conferir uma bases sólida para essa preocupação que, se não for tomado em consideração, mais, se não for colocado como fundamento, qualquer  esforço carece de solidez. É preciso responder a pergunta aparentemente singela e óbvia: “O que é a Natureza, qual a sua essência?” Será que ela se resume num conjunto aleatório e fortuito de elementos químicos, estruturas minerais, variáveis climáticas, a micro e nano fauna, as plantas e animais superiores e no meio de tudo isso o homem?. Quem sabe é uma máquina finamente calibrada, funcionando à maneira de um robô? ou a natureza tem algo de tudo isso mas sua essência ultrapassa o nível da mecânica para situar-se  num patamar mais acima e mais além?

O avanço e o resultado das pesquisas científicas levou um número crescente de especialistas a conceber a natureza como o resultado de uma engenhosa síntese. O aprofundamento dos estudos de química, física, biologia, paleontologia, genética, fisiologia, botânica, zoologia, ecossistemas, astrofísica, os organismos vivos e os sistemas, está a convencer um número sempre maior cientistas e dos melhores, a conceber a natureza como uma harmoniosa síntese. Essa síntese não  se resume na soma dos elementos que a compõem, senão pela complementaridade funcional.

A compreensão da natureza posta nessa perspectiva, uma conclusão entre muitas assume um significado todo especial.  O esforço das Ciências Naturais centra-se na compreensão do “como” a natureza foi e está estruturada. Falando em síntese, essa é apenas uma face dessa questão tão complexa. Falta explicar e responder a outra que pergunta pelo “donde”, o “para que” e o “para onde”. Qualquer esforço em busca de uma síntese, terminará em frustração, no caso de se ignorar, pior, desqualificar ou até negar uma dessas duas dimensões da síntese. Para responder ao “como”, as Ciências Naturais dispõem de métodos, ferramentas e competência. Quanto à reposta pelo “onde”, o “para que”, e o para “onde”, os métodos, as ferramentas e a competência são das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas, inclusive das Letras e Artes. Sendo assim a construção de uma síntese da natureza digna desse nome, só então terá chances de sucesso, quando em seu edifício contribuírem proporcionalmente todas as áreas do conhecimento. É indispensável que as Ciências todas, as naturais, as espirituais e todas as demais, se encontrem e se comprometam e, num esforço  interdisciplinar honesto e isento,  realizar a tarefa. Para tanto pressupõe-se uma linguagem que ambos os lado entendem e a partir de questionamentos que em princípio interessam a todos, como: “como começou tudo?”; “ o destino final?”; “uma teleologia comanda ou não  os processos?”; enfim, “a razão ou não razão de ser da natureza como “a casa”, “a querência, “a mãe e pátria da humanidade?”. 

Nas reflexões que seguem, depois de um capítulo introdutório que se ocupa com a inserção existencial do homem na natureza, dedicamos o restante do texto à compreensão da natureza de sete cientistas mundialmente respeitados nas respectivas especialidades. Três deles, Erich Wassmann estudioso das colônias de formigas e térmites e sua relação simbiótica com fungos, Teilhard  de Chardin paleontólogo, paleoantropólogo e filósofo, Balduino Rambo botânico e ambientalista, foram jesuítas. Sua compreensão da natureza evidentemente leva as marcas dessa filiação. Hans Driesch foi biólogo e filósofo e como o também biólogo Ludwig von Bertalanffy  cientista secular. Francis Collins e Theodosius Dobzhansky, contam entre os mais respeitados geneticistas, o primeiro em genética médica e o segundo como um dos sistematizadores  da genética como ciência. Não os limita nenhum compromisso confessional. O último é Edward Wilson entomólogo dos mais respeitados e autoridade maior em ecossistemas naturais e humanizados. Auto define-se como “humanista secular”. 

Os cientistas citados partiram de uma base de formação bastante diversificada e dedicaram-se a objetos e áreas de investigação distintos. Às conclusões  que os levaram aos  resultados de seus projetos, porém, apontam para a mesma direção. A natureza é uma síntese de alta complexidade. As funções dos elementos que entram na sua composição são complementares em vista do todo. Formam um intrincado sistema, melhor uma síntese, na qual não se subtrai ou se degrada nenhum componente, por insignificante que possa parecer, sem de alguma forma danificar o todo, a totalidade. Sendo assim, no fundo no fundo, a questão ambiental reveste-se de um significado e de uma importância que extrapola as fronteiras do político, do econômico, do cultural, do técnico, inclusive do científico. Vai assumindo as características de uma questão de ética natural. A lógica é simples e retilínea. Se o homem, pelos menos quanto ao organismo biológico, é mais um rebento da evolução da natureza, se passa a sua existência nela vivendo dos seus recursos, a natureza é um bem comum. Como tal qualquer pessoa, independente da sua condição social, tem o direito de usufruir dos recursos necessários a uma existência digna e, consequentemente o direito de viver num ambiente natural sadio e favorável à sua saúde material e espiritual. Sendo assim a motivação radical de qualquer ação ou intervenção não pode ignorar esse direito natural e, consequentemente, ignorar o princípio ético nele implícito. 

As reflexões que seguem complementam as 97 anteriores,  com o título geral "A Natureza como Síntese"

REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 97

“O bem morar”.

O conceito chave que perpassa como “Leitmotiv” o texto da “Encíclica Laudato si” e ao qual referenciamos as reflexões acima  sobre a natureza e a relação ontológica da espécie humana com ela, vem a ser o entendimento de que ela vem a ser “a nossa a casa”. Parece-me que como  fecho de tudo que vimos afirmando nas páginas que precederam cabe uma reflexão final no sentido de tentar dimensionar a riqueza e a densidade do “humano do homem” implícito nesse conceito, à primeira vista tão trivial e ao mesmo tempo tão óbvio. Em resumo parece importante chamar a atenção ao fato de que a casa é o local, o espaço no qual as pessoas moram. Portanto, uma casa no sentido que aqui emprestamos ao conceito, não pode deixar de oferecer as condições mínimas para um “bem morar”. Mais acima já lembramos que a única espécie viva na terra que “mora” é a humana. As demais, sem exceção, se abrigam, refugiam, se escondem, procuram proteção ou um recanto protegido para se reproduzir. Cavernas, ocos de árvores, tocas cavadas no chão, ninhos de sabiá, casinhas de João de Barro e por aí vai, não são “moradias” no sentido conceituado pela Encíclica. Com essa observação como pano de fundo pretendo dimensionar de alguma forma a importância do “bem morar”, para a satisfação das demandas existências do homem em todas as dimensões, tanto físicas, quanto psicológicas, sociais, artísticas e religiosas. 

Embora o “morar” costume ocupar um lugar um tanto à margem das preocupações filosóficas, Hermann Schmitz, fundador da “Nova Fenomenologia”, citado por Zoborowski, chama atenção à importância do “morar”, na história da humanidade. Trata-se de  um dos fatores determinantes na formatação da personalidade das pessoas e no sadio relacionamento com os demais integrantes de uma sociedade. Com a palavra o filósofo H. Schmitz:

Praticamente todas as pessoas acham que “estão morando”. O que significa isso?  Para responder a essa pergunta entra em questão, em primeiro lugar, uma moradia convencional que oferece todas as condições de um “bem morar”: fazer as refeições, dormir, amar, criar e educar os filhos. Para atender a esses quesitos uma moderna moradia oferece todas as demandas: uma cozinha, sala de jantar, quartos de dormir e quartos para os filhos. Também não pode faltar uma sala de estar. O que acontece aí. “Mora-se”. E o que se entende com esse conceito? Praticamente todas as atividades indispensáveis à vida, menos as relações sexuais e as necessidades fisiológicas, para as quais requerem-se recintos discretos e privativos. De mais a mais incluem-se nos espaços normais um escritório, um local para jogar conversa fora, um local reservado só para a intimidade da família e recepção de convidados, inclusive um canto para não fazer nada. A natureza do “bem morar” não se  esgota, porém, na enumeração dos espaços específicos e suas funções. Trata-se de um ambiente onde acontece a vida naturalmente, sem ter que prestar contas a quem quer que seja incluindo os motivos pelos quais pudesse ser exigido. (W. Schmitz, in Zoborowski, p. 213)

“A casa” onde acontece o “bem morar” materializa-se nos lugares, nos espaços e caminhos ou, resumindo, nas circunstâncias em que se localiza e configuram o cenário em que as pessoas se sentem em casa  - “Zuhause”, onde vivenciam as delícias da intimidade do lar – “Heimatgefühl”, onde se abriga a morada – “das Haus” rodeada das árvores, plantas, arbustos e flores, onde se escuta a sinfonia dos pássaros e animais silvestres, onde os mais diversos animais e aves domésticas convivem com crianças e adultos. Os brinquedos e as diversões da infância inspiram-se nas dádivas da natureza que delimita o cenário que oferece os estímulos que despertam no ser humano desde o remoto despertar da consciência, muitos dos traços mais marcantes da personalidade adulta em toda a sua caminhada futura, mesmo que se prolongue até os 90 ou mais anos. Aquele cenário único, “o Hof”, mesmo desfeito fisicamente com o andar das décadas e sucessão das gerações, acompanha o caminhar da vida e, costuma em inúmeros casos, vir à tona e a ele se retorna na hora da despedida dela. E, para completar o cenário não se podem esquecer a importância dos caminhos que interligam os lugares e espaços. Não importa se são estradas, veredas, trilhas, picadas na floresta ou rios. Arriscando-se por elas como crianças fomos descobrindo os segredos e as surpresas escondidas atrás de cada pedra, na copa das árvores, no silêncio da floresta, nas flores do campo, na brisa da tarde, no assustador da aproximação das trovoadas nas tardes de verão. Depois de décadas, depois de peregrinar por outras veredas, em momentos de retorno ao passado, cruzamos na memória por essas trilhas, veredas e caminhos com os pais, irmãos, parentes, vizinhos, amigos e até forasteiros que há muito tempo já passaram para “outro lado do caminho”, no entender de Santo Agostinho.

Refletindo sobre as características em que acontece o “bem morar” que acabamos de enunciar e descrever, chega-se à conclusão que devido ao estado de agressão à natureza a que a atual civilização avançou, que a concretização desse conceito terminou num problema filosófico e, consequentemente num desafio prático. Ficou difícil encontrar lugares, espaços e caminhos para instalar um morada no sentido tradicional do conceito, isto é, um ambiente no qual as pessoas se sintam existencialmente inseridas, protegidas para dar vasão a todas as demandas do “humano” – “die Menschlikeit”, na qual, em última instância, radica a razão de ser da sua existência. Como causa e, ao mesmo tempo com consequência somam-se a esse cenário sempre novos espaços devorados pelo avanço da urbanização, na maioria dos casos carente de um planejamento adequado. As cidades vão estendendo seus tentáculos  e muitas delas transformam-se em metrópoles e não poucas terminam em gigantescas megalópoles. Nas periferias multiplicam-se os bairros e favelas carentes de água tratada, de saneamento básico, de vias de circulação seguras e infestados por traficantes, assassinos e contraventores da lei de todas as matizes, abrigando uma população de subempregados e desempregados. Nessa dinâmica dissolvem-se os valores  éticos, os valores familiares, os valores do convívio social levando a um comportamento individual e coletivo errático, sem regras, sem compromissos, terminando em rebanhos que se vendem por qualquer preço aos discurso de espertalhões se escrúpulos. A tudo isso soma-se a artificialização em praticamente todas as atividades humanas. 

No contexto desse panorama o “morar” num dos grandes problemas do nosso tempo. Chegou a um ponto em que se pode afirmar que nessas situações as pessoas já não moram. No sentido metafórico perderam o chão debaixo dos pés e já não têm como deitar raízes existenciais. Pensando bem, afirmou Theodor Adorno, citado por Zoborowski, tornou-se impossível morar. Ainda segundo Zoborowski, Martin Heidegger, considerado o filósofo do “bem morar” imaginou e, de fato, concretizou o morar perdido no tempo, numa cabana que mandou construir numa encosta na Floresta Negra sem, entretanto, sugerir um retorno romântico para o passado. Quase diria que com sua cabana Heidegger sonhava com uma utopia. Zoborowski conclui com a observação: Foi preciso sentir com toda a crueza a falta, a carência daquilo que no passado foi realidade e enfrentar o sofrimento da ferida que o mundo de hoje impõe Á perda da “Querência” – “die Heimat”- a perda do “Lar” – “Heim”- a perda do “estar em Casa” – (“das zu Hause”), onde nos sentimos “Em Casa?” Será que existe aquele morar tranquilo onde nossas demandas existenciais se realizam.  E Heideger pergunta: “Será que ainda se pode encontrar  um local onde é dado ao homem viver entre o céu e a terra? Zoborowski conclui: Na melhor das hipóteses, nessa situação de perda, “da Querência” – “Heimat”, tem-se a impressão que ela não passa de uma súplica romântica de volta uma época que irremediavelmente ficou  no passado ou objeto de uma esperança que não passa de uma utopia. Parece-me que entre esses dois extremos um meio termo é possível. Não só  possível como em plena concretização avançando pelo mundo afora, dando razão ao lendário provérbio fruto da sabedoria romana: “in médio stat virtus”, na tradução literal: “a virtude encontra-se no meio termo”. Não se esquecendo que o “bem morar” não se resume numa morada bem planejada, confortável, ampla suficiente, repartições adequadas para atender aos rituais do bem viver de uma família mas, harmonicamente integrado nos lugares, caminhos e espaços que a interligam com as demais moradas. Conclui-se, portanto que “o bem morar” implica na harmonização das obras do homem com a paisagem natural. Em outro momento lembramos como exemplo dessa harmonização da presença do homem com a paisagem natural é possível com acontece no complexo dos Alpes da Suíça, Lichtenstein, norte da Itália e oeste da Áustria, com destaque para o emblemático Tirol do sul pertencente à primeira e o Tirol do Norte à segunda. Um fenômeno semelhante pode ser observado também no sul do Brasil, de maneira mais visível em áreas onde predomina a agricultura familiar. Mais acima já lembramos os cursos médios e superiores dos sete rios que formam a bacia do Guaíba. O mesmo vale, em termos, para as      Missões, Alto Uruguai, centro oeste e leste de Santa Catarina, oeste do Paraná, além de muitas outras regiões do País.  Já a harmonização da presença do homem nos complexos urbanos de médio e grande porte, a solução da organização dos lugares, espaços e caminhos oferece desafios difíceis de enfrentar. Quanto maior for a dimensão dessas cidades, metrópoles e ou megalópoles, tanto mais grave a situação. Neste caso realmente as pessoas tornaram-se reféns e vítimas da sua própria criatura. Nesses casos extremos não tem como não concordar com Adorno, Heidegger e Bolch, resumidos por Zoborowski: “a casa é coisa do passado”.

Depois de todas reflexões acima, inspiradas nos três primeiros três capítulos da Encíclica “Laudato Si”, parece pertinente concluir. Deus criou a natureza e nela inseriu ontolgicamente a espécie humana para viver e sobreviver com os recursos por ela oferecidos; entregou ao homem o “Jardim da Natureza” para cultivá-lo como sendo sua casa e assim torna-lo mais rico; o “cultivo” desandou nos últimos séculos em espoliação, exploração irracional, em agressão ao ponto de por em risco esse “jardim” e com ele a espécie humana; as sirenes de alerta fazem-se ouvir pelo planeta inteiro. Como contraponto a esse cenário nada animador percebe-se o despertar da consciência alertando para a catástrofe desenhando-se no horizonte. Iniciativas de todos tipos e em todos os níveis estão sendo posto em prática para reatar e reforçar os laços da simbiose que liga o homem com a natureza e, dessa forma, tratar essa “Sua Casa” inserida no contexto das circunstâncias do século XXI.


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 96

Poderíamos descrever milhares de outras paisagens humanizadas de uma beleza indiscutível. Ao avalia-las não cabe fazer comparações pois, cada uma é única na sua moldagem numa paisagem geográfica única que não se repete e, por isso mesmo, ecoa na alma de uma forma singular. E, por isso mesmo, que a natureza como “casa” da humanidade oferece múltiplas modalidades concretas para o acontecer da simbiose entre a alma e sua “mãe e pátria”. E, para que esse acontecer não passe por desvios e traumas é preciso que a “casa” ofereça as condições indispensáveis para poder ser chamada de “Lar”, de “Querência, de “Heim”, e as milhares de outras maneiras como cada cultura conceitua “o bem morar”. Holger Zoborowski resumiu em poucas linhas a multiplicidade e complexidade dos fatores que entram em cena ao tentarmos entender toda extensão e profundidade do significado do conceito “morar” para o homem.

Independente das diferenças que nos separam, moramos numa complexa rede de espaços e compartimentos que vão da adega (porão) ao telhado, do jardim ao terraço da cozinha, da sala de estar à sala das refeições, dos quartos de dormir e do banheiro. Moramos também em espaços mais amplos: nas ruas e quarteirões da cidade, nas nossas aldeias e cidades, nos nossos países e continentes. De alguma forma moramos em todos esses espaços embora em nossas moradias não caibam esses espaços. Moramos de alguma maneira em todos eles mesmo que na prática ocupem um espaço à margem do dia adia. Acontece que o “morar”, tendo como pano de fundo esse panorama realizamos as inúmeras potencialidades da nossa condição de humanos. (cf. Zoborowski, H.) 

As reflexões que nos levaram até aqui apontam para a conclusão que, em última análise, resumem todas as outras: a inserção ontológica da espécie humana na Natureza pois, o homem é “Adam, o nascido da terra”. Por isso, a Natureza vem a ser a “Sua Casa”. A Natureza vem a ser a “Casa” da humanidade porque como a espécie biológica comunga com as demais, tanto com os micro e nano seres vivos, quanto com as categorias taxonômicas superiores de vegetais e animais, da mesma matéria prima que compõe a natureza mineral, orgânica e viva. A espécie humana obedece às mesmas leis e os mesmos fatores responsáveis pelo surgimento, a evolução, o sucesso, o brilho ou fracasso das demais. A “Nossa Casa” resume-se num gigantesco ecossistema, dividido em incontáveis ecossistemas secundários, moldados pelas inúmeras peculiaridades climáticas, geomorfológicas, hidrológicas, edafológicas, habitados por milhões, senão de bilhões ou mesmo trilhões de espécies vivas, cada uma cumprindo a sua tarefa para que o todo e suas partes se mantenham em equilíbrio. Catástrofes inesperadas como a queda do meteoro gigante na península de Yukatan no México há aproximadamente 66 milhões de anos e que levou à extinção dos dinossauros ou ciclos climáticos, assim como as glaciações, o movimento das placas tectônicas, redesenharam drasticamente a fisionomia do nosso planeta. Entre outros foram ou são eventos globais e foram necessários centenas de milhares ou até dezenas de milhões de anos, para reparar os estragos causados à Natureza. Inúmeras espécies de plantas e animais foram extintas. Outras tantas tomaram o seu lugar. Mas, não se pode esquecer que a par dos  acontecimentos  de dimensões universais, eventuais ou cíclicos, a natureza como um sistema vivo, passa ininterruptamente por reajustes, remodelações, readaptações, comandados pelos processos químicos, pelas leis da física, pela movimentação das placas sólidas que formam a crosta terrestre flutuando sobre o magma em contínua movimentação, pela dinâmica biológica da evolução e todos os demais fatores que comandam o surgimento, a ascensão das espécies vivas e garantem o sucesso e/ou o declínio e extinção de outras tantas. E, somado aos eventos e agentes naturais vem somar-se a intervenção humana praticamente imperceptível durante todo o Paleolítico sobrevivendo e multiplicando-se coletando, caçando e pescando o que a “mãe terra” oferecia espontaneamente. Com a agricultura e a criação de animais começou a longa caminhada da invasão e agressão progressiva dos ecossistemas naturais dando lugar a ecossistemas humanizados. Na mesma cadência do aperfeiçoamento das tecnologias de manejo da terra e a multiplicação dos rebanhos de ovelhas, cabras, bovinos, suínos, aves e outras tantas espécies domesticadas, foram encolhendo os espaços até então ocupados por florestas, savanas, campos naturais, desertos e, principalmente, as terras planas de aluvião no curso médio e inferior dos grandes rios. Com a entrada triunfal da máquina em todas as suas modalidades, o homem foi invadindo, desfigurando e reconfigurando até ao irreconhecível não poucas paisagens naturais da “nossa casa”, ou então dando origem a ecossistemas humanizados de indiscutível beleza. As conquistas tecnológicas dos últimos 50 anos permitiram que a face original do nosso planeta se tornasse quase irreconhecível. Os sinais de perigo piscam e soam em todos os níveis chamando à reponsabilidade pequenos e grandes, ricos e pobres, poderosos e cidadãos comuns, a darem-se as mãos para evitar um colapso irreversível  da “nossa casa”, da “nossa mãe e pátria”.  “E isto exige sentar-se a pensar e discutir acerca das condições de vida e de sobrevivência duma sociedade, com a honestidade de por em questão modelos de desenvolvimento, produção e consumo”. (Laudato si, 138).


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 95

Montanhas, florestas, vales misteriosos, savanas, pradarias, campos naturais, estepes avançando para além da linha do horizonte, desertos, campos de gelo e neve eterna, lagos, rios e oceanos, fizeram vibrar, cada qual à sua maneira, os arcanos mais profundos da alma das pessoas dotadas de um mínimo de sensibilidade. Os depoimentos que acabamos de registrar são testemunhas desse fenômeno. Castro Alves um dos poetas clássicos da literatura brasileira  viu na configuração dos morros em torno do Rio de  Janeiro um “ gigante orgulhoso de fero semblante num leito de pedra jazes a dormir”. E, dado à sua importância, vamos buscar mais alguns exemplos em outros continentes. 

“A Beleza, o Belo sempre antigo e sempre novo” – a “Pulchritudo semper antigua et semper nova” de Santo Agostinho, tem uma das suas expressões mais emblemáticas nos Alpes. Suas montanhas que sobem até perto de 5.000 metros cobertas de neve, seus vales profundos, as florestas subindo até as meias encostas, os lagos silenciosos e as planícies de um verde juvenil impar, moldaram o perfil da Suíça, o norte da Itália e oeste da Áustria. O perfil dos habitantes das aldeias e pequenas cidades daqueles vales exprimidos entre gigantes que sobem para além das nuvens, perpetuaram na sua história uma simbiose única entre a alma humana e o chão que os abrigou como “casa”, como “mãe e pátria”. E o resultado dessa simbiose identifica-se de muitas formas. Os 24 cantões que, com suas aldeias e povoados formam a Federação Suíça, apesar das identidades regionais, desenvolveram uma consciência de unidade nacional, melhor talvez regional, dificilmente encontrável em outra parte do mundo. Neste pequeno território o falar francês, italiano ou alemão não impede que, acima de tudo, prevaleça a convicção do pertencimento à pátria que os une como cidadãos acompanhado de todas as consequências implícitas nessa condição. Todos se assumem apenas como suíços unidos num cenário geográfico único que os identifica a todos, apesar de zelarem com fervor pelas suas tradições próprias, de modo especial a língua.  Tanto assim que nos grandes conflitos que envolveram a França, a Alemanha e a Itália e a Europa toda no século XX, a Suíça nunca abriu mão da neutralidade. Não poucas das montanhas mais representativas dos Alpes foram contemplados com nomes simbólicos como “Materhorn”, “Mönch”, “Jungfrau”, “Joch”, “Mont Blanc” e outros. 

Nos Alpes orientais, o Tirol do norte fazendo parte da Áustria e o Tirol do sul da Itália, predominam as Dolomitas, montanhas de calcário de formato inconfundível privilegiadas para a cultura de vinhedos e pomares. A organização das comunidades, os povoados, as aldeias, as pequenas cidades não passam de uma extensão para dentro dos outros dois países como um prolongamento da Suíça.  Todo esse complexo único de montanhas com os cumes e pontas cobertas de neve eterna, as florestas de verde escuro, parecendo tropas de assalto, galgando as encostas, até onde uma árvore ou arbusto encontra um pouco de húmus para se agarrar. E nos flancos dos abismos quase inacessíveis cresce e floresce o “Edelweiss” e a “Rosa dos Alpes”. As cabras e cabritos monteses equilibram-se na beira dos precipícios e a majestosa águia o (Lämmergeier), plana de uma montanha para a outra. São os símbolos desse cenário único, desse “jardim” sem igual oferecido pelo Criador para ser cultivado pelas tribos e povos emigrados do Centro e do Norte da Europa.

A história dessa simbiose única entre a alma humana e “sua casa”, formada por aquele cenário de montanhas, escarpas, precipícios, vales e lagos silenciosos, arroios de montanha, florestas escuras com seus animais e flores, teve início com a migração dos Cimbros e Teutões no final do século II antes da nossa era. Partiram da Jutlândia, hoje Dinamarca e arredores e, em parte, contornaram os Alpes pelo Oeste e uma parte cruzou diretamente as montanhas invadindo o Império Romano pelo Norte. As inevitáveis batalhas travadas entre os romanos e os invasores entre 113-101 AC, terminaram com a derrota dos Cimbros e Teutões na batalha de Ravena na qual Otoacker e sua esposa morreram em combate.  Esses recuaram para o norte e fixaram-se nos vales das montanhas consolidando suas comunidades naquelas encostas do sul dos Alpes. Sua presença tornou-se tão definitiva que até hoje pode ser detectada pelos costumes e a língua de aldeias situadas em vales e encostas até pouco tempo isolados nas montanhas. 

Durante os séculos IV e IX, D.C., aconteceram as grandes migrações dos povos vindos do Norte e Centro da Europa e que terminaram por moldar, em grandes linhas, o perfil humano e cultural daquela parte do mundo. Os Ostrogodos contornaram os Alpes pelo Leste e o Visigodos e Vândalos pelo Oeste, fixando-se em parte nos vales entre as montanhas de ambas as extremidades. Alanos, Suevos, Vândalos, Francônios e outros terminaram por fim a ocupação de todos os espaços habitáveis nesse gigantesco complexo de montanhas hoje politicamente sob a jurisdição da Federação Suíça, Áustria com destaque para o Tirol do Norte, o Tirol do Sul, no Norte da Itália, a fronteira sul da Baviera e a fronteira leste da França. 

Escolhi os Alpes como exemplo para ilustrar como a presença permanente do homem e sua interferência no ambiente natural que o abriga, ou em outras palavras, quando cultiva e não depreda esse seu “jardim”, é capaz de afinar os estímulos oferecidos pelo chão em  que deitou raízes, com os apelos  mais profundos da alma, permitindo  dar vasão ao autenticamente humano. Cumpre-se dessa forma a tarefa dada à humanidade pelo Criador ao inseri-lo ontologicamente na Natureza, de cultivá-la e não espoliá-la e degradá-la. O conceito deixa claro que os recursos necessários para suprir as demandas adequadas da sobrevivência física dos indivíduos e da espécie humana, assim como os estímulos da vida espiritual disponíveis no “jardim”, configuram-se num bem comum. O “cultivar” significa aperfeiçoar, tornar mais produtivo, mais aconchegante, mais habitável, um “estar em casa”, um “Heimatgefühl”, cuja lembrança acompanha as pessoas como uma referência, por vezes subliminar, como também pode explodir como um grito de socorro em situações extremas. Quando nada mais faz sentido a pessoa pede, melhor, suplica para que seja levada “para casa” pois, naquele lugar único encontra-se a âncora que a manteve em pé, por todos os lugares que peregrinou e com as pequenas e grande alegrias e as pequenas e grandes adversidades encontrados ao longo do caminhar da vida. Há poucos dias assisti a um filme que mostrou um grupo de prisioneiros alemães, obrigados a desativar milhares de minas   enterradas na areia de uma praia da Suécia. Não passavam de quase adolescentes de 18 no máximo 20 anos. Um por um foi estraçalhado pela explosão de minas ao serem desativadas. O que me chocou de modo especial foi quando o filme deu destaque à explosão de uma mina deixando o jovem prisioneiro literalmente em frangalhos. Resgatado pelos companheiros e morrendo nos seus braços, não parava de suplicar: “levem-me para casa”. A última frase que gravei na memória de uma pessoa muito especial para mim, por sinal, minha esposa acometida pelo mal de Alzheirmer, foi a mesma do prisioneiro morrendo longe de casa: “Vamos para casa”. Não é por nada que pessoas desenganadas e com pouco tempo de vida pedem para morrerem “em casa”. Essa reflexão poderia servir de tema para um livro ou, quem sabe uma estante de uma biblioteca ou uma biblioteca inteira. Aliás, nas bibliotecas reunidas por séculos nas universidades de referência, em mosteiros, em centros de cultura importantes, o espaço reservado à apologia do “humano” no homem e sua manifestação pela literatura e a arte, ocupa um espaço privilegiado. 

E voltando para região dos Alpes - pode ser também em qualquer outra região do mundo onde montanhas  e demais panoramas geográficos moldaram a paisagem em que o homem decidiu abrigar o seu “Lar” – a sua “Heimat”, o “seu estar em Casa”, o seu “Zuhause”.  Em todos esses espaços, cada um à sua maneira, expressa de forma única, o estado de espírito peculiar, resultado do fluxo de estímulos presentes nas realidades naturais despertando os potenciais do humano no homem. Sob o aspecto biogeográfico não pode ser desconsiderado o perfil e a localização das aldeias e pequenas cidades, além das moradias dispersas e acomodadas harmonicamente no seu entorno natural, acrescentando um elemento a mais à estética da paisagem, em vez de agredi-la ou deformá-la. O mesmo se pode afirmar do traçado das estradas e trilhas pelas quais circulam e se comunicam as pessoas. Pertencem ao conjunto dos acréscimos frutos do cultivo do “jardim” adicionando-lhe elementos novos que reforçam a estética naturalmente presente na paisagem. Mas, o que mais cai em vista, são as manifestações artísticas embutidas na poética, na literatura, nas melodias, nos cantos e nos próprios instrumentos com que são executados. Um exemplo emblemático vem a ser o “Alphorn”. Numa tradução técnica literal falaríamos em “Chifre dos Alpes” ou “Trompa dos Alpes”.  Mas, na compreensão histórico-cultural, o conceito de “Trompa dos Alpes”, sem dúvida, define melhor na sua essência, de esse instrumento produzir sons e melodias. A origem desse instrumento único vem do recurso a um chifre pelo qual os moradores, os pastores de ovelhas e cabras e cuidadores de vacas se intercomunicavam. As respostas em forma de eco rebatido pelos paredões das montanhas deixaram de ser apenas um sinal de intercomunicação técnica como acontece com os nossos equipamentos eletrônicos, para significar uma das formas de música subliminar e sublime tecendo a urdidura das relações do humano do homem para com aqueles que a escutam. Os “chifres” foram substituídos e aperfeiçoados para a sua função, por instrumentos moldados em lâminas de madeira empregando técnicas as mais modernas e mais avançadas. Definiria como sublime uma sinfonia executada com esse instrumento, por uma dezena de artistas postados num patamar na encosta de uma montanha. 

Não por nada uma paisagem dessas serve de inspiração para poesias, cantos, romances, contos de fadas, escultores em madeira e outros mais. Para não me prolongar demais sugiro apreciar uma “Ave Maria das Montanhas” (Ave Maria der Berge), cantada ou executada por conjuntos de instrumentos em sintonia com vozes femininas e/ou masculinas. Uma canção que não me canso de degustar vem a ser “La Montanara – Trentino”, inspirada nas belezas naturais da região de Trento, norte da Itália. Apenas como amostra pinço alguns versos: “Escuta a canção das montanhas. As montanhas te saúdam – La longe ecoa uma cascata e os pinheiros verdes filtram os prateados raios de luz – Uma branca nuvem paira solitária sobre as eternas montanhas”. A religiosidade foi e ainda é uma marca do homem e das comunidades alpinas. O testemunho desse espírito são os emblemáticos cruzeiros de madeira que emprestam um toque todo peculiar à paisagem. O Cristo crucificado esculpido em madeira os torna únicos e deu origem a um artesão especializado nesse tipo de arte presente e fazendo parte da história do tipo humano moldado por essas montanhas, vales e florestas: o “Herrgottschnitzler” – mal traduzido o “Escultor de Deus”.


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 94

A Natureza como inspiradora

E para concluir as reflexões inspiradas nos três primeiros capítulos da Encíclica Verde, quero demorar-me mais um pouco num aspecto da Natureza, que para muitos passa despercebido. Faz parte do quotidiano de qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade e de percepção o que há de arte e de belo nas milhões de modalidades em que ela pode ser apreciada. Mais acima já chamei a atenção como os poetas, os músicos, os artistas plásticos e outros mais foram buscar a inspiração para se expressar nas suas peças artísticas, nas florestas, nos campos naturais, nas flores, nas montanhas, nos rios, nos mares e oceanos, nos fenômenos grandiosos e/ou assustadores, nos animais e plantas e em incontáveis outras  realidades  oferecidas pela natureza. Refiro-me ao potencial de obras de arte à espera da revelação pelo gênio dos artistas plásticos que, além da beleza e da perfeição dos traços em si, vem carregadas de simbolismos, significados históricos, cosmovisões, o imaginário despertado pelo transitório e, principalmente, pelo perene que perpassa a história da humanidade. Alguns exemplos para ilustrar. 

Os pedreiros que extraíram os blocos de mármore da montanha encomendados por Miguel Ângelo, provavelmente não tinham a menor ideia de que o artista esculpiria a famosa “Pietá”, o “Moisés” e o “Davi”. Vivi a experiência ímpar de ficar recolhido em silêncio em frente à “Pietá” protegida com vidro blindado no seu recanto no Vaticano. A música suave de fundo foi um estímulo a mais para despertar todo o sentido histórico e todo o simbolismo humano e religioso incarnado naquela obra de arte esculpida num bloco de rocha nobre oferecido pela mãe terra. Melhor, buscada no quintal da “nossa casa”. Os traços do rosto marcados pela dor, mas não pelo desespero, da mãe da cristandade, com o filho morto nos braços, o corpo massacrado e o rosto maltratado e, contudo, sereno depois de cumprida a missão da Redenção. Recolhido no canto do recinto, com esse cenário na minha frente e a música inspiradora de fundo, deixei correr livre a imaginação. Miguel Angelo foi capaz de desvelar de um bloco de mármore bruto, o cenário que marca o epicentro dos séculos e mais séculos da gênese da civilização judaico-cristã. Não menos significativo e sugestivo vem a ser a escultura de Moisés também revelada num monobloco de mármore pelo mesmo artista. A figura de Moisés impressiona por retratar o personagem que, segurando as tábuas do decálogo, simboliza a revelação do norte ético e moral que deveria orientar a conduta de qualquer ser humano que mereça este nome. Diz a tradição que, concluída a obra e observando a sua perfeição, o artista teria dado de leve uma martelada no joelho do personagem de sua obra e feita a provocação: “Parla Moises – Fala Moisés”. Não menos emblemático como simbolismo histórico, vem a ser o “Davi” do mesmo artista esculpido também num bloco de mármore. 

A arte e o belo à espera de serem desvelados pelos artistas podem ser encontrados nas realidades mais singelas como nas mais vistosas e mais impactantes que compõem os múltiplos e mais inusitados cenários da “nossa mãe e pátria”. Lembro mais algumas outras obras clássicas, além do mármore outros tipos de rochas tendo como matéria prima o granito. O artista português Noel Monteiro esculpiu num bloco de granito amarelo uma estátua de Nossa Senhora de Fátima de 3,50 m. de altura, uma de Nossa Senhora da Paz de 4,20 m. e uma terceira de Nossa Senhora Auxiliadora de 5,0 m. O obelisco na praça de São Pedro no Vaticano de granito vermelho mede 40 metros de altura. Igualmente monoblocos de granito são as colunas que sustentam a cúpula da catedral de Porto Alegre. Impressionantes são os rostos dos presidentes fundadores e consolidadores dos Estados Unidos da América do Norte, Washington, Jefferson, Th. Roosevelt e A. Lincoln, esculpidos diretamente na rocha no alto do monte Rushmore na Dakota do Sul. Medem 18 m. de altura e 5,5 na maior largura do rosto. Entre os monumentos historicamente famosos e mundialmente admirados não poderíamos omitir as pirâmides do Egito e junto a elas a grande esfinge que, com um olhar enigmático contempla há milhares de anos, a misteriosa vastidão do grande deserto. O basalto foi utilizado pelos escultores como matéria prima para inúmeras obras de arte que na sua mudez pétrea incarnam e contam a história de personagens e eventos que falam do perene e do transitório da marcha da história da humanidade através dos séculos e milênios. Merecem destaque o faraó Tutancamon, a rainha Nefredete, o Leão da Babilônia e muitos outros. Emblemáticas são também as estátuas da Ilha da Páscoa. Os artistas anônimos que as esculpiram na rocha vulcânica há séculos deixaram a ilha e até hoje não temos vestígios seguros da sua identidade e do seu destino. As enormes cabeças com o restante do corpo enterrado no chão, pesando toneladas, enfileiradas nas encostas da ilha, contemplam o oceano que, lá longe, se confunde com o horizonte. Parecem acompanhar com o olhar enigmático e nostálgico os últimos habitantes da ilha que partiram para uma terra que, até o momento, os arqueólogos, os etnógrafos e os historiadores não conseguiram localizar. E não podemos deixar a ocasião de lembrar o Aleijadinho o artista plástico brasileiro que marca toda uma época na arte da escultura valendo-se da “pedra sabão” como matéria prima.

Chamo a atenção à riqueza artística que nos oferecem os monumentos tumulares que podem ser apreciados em qualquer cemitério de toda e qualquer procedência étnica e religiosa. A natureza característica de cada local costuma oferecer a matéria prima, isto é, o tipo de rocha que foi utilizada pelos artífices para moldar os símbolos, entalhar as datas e perpetuar em prosa ou verso os valores cultivados pelos que aí estão sepultados. Os túmulos revestidos com mármore, basalto, granito, arenito, ou outra pedra qualquer, com seus símbolos, inscrições e formatos alertam o observador atento e dotado de um mínimo de sensibilidade humana, para o perene e o transitório da existência humana, como já lembramos mais acima. Os “campos santos” como também são chamados, significam incomparavelmente mais do que outras formas de perpetuar a memória da caminhada da humanidade, para intuir e compreender na sua essência ontológica o significado da profundidade do conceito do “humano no homem” – “die Menschlichkeit”. 

E, para fechar a série de reflexões feitas até aqui, inspiradas nos três primeiros capítulos da “Encíclica Verde”, falta a referência aos simbolismos inspirados pela natureza nas suas manifestações intocadas pelo homem. Mais acima já nos referimos em várias ocasiões de alguma forma a esse potencial que a “nossa casa”, oferece à nossa capacidade de percepção e intuição. Em linhas muitos gerais falamos dos monumentos naturais merecedores de proteção como componentes significativos nas paisagens naturais. Nesse conceito enquadram-se cadeias de montanhas, montanhas isoladas, florestas, árvores de grande porte e/ou beleza, quedas de água, cataratas, lagos, rios, desertos, campos naturais, cânions, precipícios, a imensidão dos oceanos e inúmeras outras manifestações que, de alguma forma, compõem o cenário em que a espécie humana moldou a sua história. 

A gênese histórica das civilizações trai em muitos dos seus aspectos e, por vezes, na própria identificação que distingue umas das outras, os significados culturais emprestados a fatos e fenômenos naturais. As formações geológicas no entorno do Grand Canyon do Colorado assumem personalidade pela forma e a perspectiva em que foram vistas pelos estudiosos do parque. Encontramos nelas as personificações, o encontro de figuras históricas e personagens mitológicos que, por assim dizer, incarnam a índole e a alma de culturas e civilizações que evoluíram em ambientes e situações completamente diferentes e vão encontrar-se, como que numa síntese, naquele cenário milhares de quilômetros longe da sua origem. Destacamos aí o Templo de Schiva, as figuras de Brahma e Buda e o Templo de Confúcio, representantes emblemáticos das civilizações do Oriente remoto; o Templo de Zaratustra da mitologia persa; o Walhalla dos deuses germânicos e o Trono de Siegfried, personagem épico da canção alemã. No parque nacional Sequoia localizamos a Pirâmide Quéops representante da cultura egípcia, o Nariz de Homero, representando as civilizações consolidadas em torno do Mediterrâneo. Este é um exemplo emblemático de como tradições culturais histórica e geograficamente tão distantes umas das outras encontraram-se em situação tão inusitada como nas formações geológicas do parque do Grand Canyon e outros parques nacionais. A explicação para entender que um encontro nesses moldes fosse possível é preciso recorrer a lei que criou os parques americanos. O objetivo fundamental, além de proteger esses monumentos naturais e declará-los patrimônio nacional foi, colocar à disposição das pessoas comuns, como operários, pequenos empresários, funcionários públicos, alunos das escolas, colégios e universidades e seus professores e responsáveis, um ambiente que oferecesse condições para usufruir um lazer barato e tranquilo e um deliciar-se sadio em meio à natureza. À noite costumam-se programar-se sessões conduzidas por professores e especialistas também em férias, informando o público sobre a história, a formação geológica, a vegetação, os animais e a importância da preservação desses verdadeiros santuários naturais. Ao lazer do cotidiano esses ambientes assumem também o papel de autênticas universidades ao ar livre. Nesses encontros o povo comum vem a ser informado sobre a razão de ser dos nomes dados a montanhas, vales, árvores, fontes, grutas, cavernas, lagos, fontes quentes, e por aí vai. Ao lazer sadio alia-se um usufruir importante também da ampliação dos conhecimentos e, com isso, a elevação cultural dos veranistas. Os parques, portanto, como escolas e/ou universidades ao ar livre contribuem para ampliar os conhecimentos e o nível cultural dos seus frequentadores.

No parque nacional “Sequoia” encontra-se outro exemplo de como o imaginário cultural e a memória histórica pode ser perpetuada em realidades naturais características oferecidas pelo parque. A sequoias gigantes daquele parque incorporaram personalidades de figuras importantes da história do país. Em uma decisão histórica carregada de significados simbólicos os administradores do parque deram nomes aquelas árvores gigantescas, entre as quais, algumas contam com mais de cinco mil anos e, se nada de anormal lhes acontecer, continuarão ainda firmes por séculos e, quem sabe, por milênios. A maior e a mais possante delas foi contemplada com o nome do general “Sherman”; a segunda em tamanho é “o President” e, ao lado do “President”, um terceiro gigante contempla o cacique Cherochee “Chief Sequoia”; uma outra ainda imortaliza o general “Grant”. As árvores chamam a atenção aos frequentadores do parque sobre os generais responsáveis pela consolidação do Estado, o presidente e o cacique cherochee que, apesar dos desencontros e, quem sabe, exatamente pelos desencontros históricos, entraram de alguma forma, na síntese da identidade americana em formação. Na mesma floresta o visitante pode passar em revista, simbolizados nos seus gigantes, personagens determinantes da história do País: Washington, Lincoln, Mac Kinley, o general Lee, Theodor Roosevelt, Cleveland e outros. Para não ficar insistindo demais na lembrança de uma fase histórica desagradável que foi a guerra civil  e para poupar os parques do clima de disputas político partidárias, a preferência centrou-se em denominações históricas como “as Colunas de Hércules” ou metáforas sugeridas  pela peculiaridades dos diversos gigantes: a Chaminé, a Flecha Quebrada, o Gigante fulminado pelo Raio, Árvore Janela, Árvore Buraco da Fechadura, os Trigêmeos, o Nursery, o emblemático Casal Fiel, dois gigantes concrescidos  na base até três metros acima do chão, as Três Graças, o Solteirão, o Urso Gigante, a Árvore Estrebaria, os Soldados Sentinelas, a Árvore Telescópio. O parque de Yosemite, reúne talvez mais que qualquer outro os elementos que põem em ebulição o humano no homem e resultam numa harmoniosa  sinfonia colocando o observador num panorama que vai do Belo sutil das flores das ervas rasteiras, passando pelo Belo tranquilo dos arbustos e árvores da floresta e o rio Merced povoado de trutas brincando na água cristalina, rumorejando sobre os escolhos deixados pelo eterno lapidar das forças telúricas de milhares e milhões de anos, para terminar no Belo majestoso e arrebatador da moldura das montanhas de granito esculpidas no inconfundível  formato de “U” pela passagem das geleiras da era glacial. Permito-me reproduzir o estado de espírito do Pe. Rambo ao passar pelo portal de entrada do “do mais belo vale do mundo”, como anotou em seu diário. Depois de descrever a viagem de ônibus de São Francisco, depois de descrever os pomares do vale da Califórnia, a subida da Sierra Nevada, lembrar a epopeia da exploração do ouro naquela encosta em meados do século XIX, anotou:

Acontece que não viajei para a Sierra Nevada a procura de ouro, mas em busca do mais belo vale do mundo, o Vale de Yosemite. As montanhas aproximam-se cada vez mais uma das outras. O rio troveja com crescente força sobre os escombros das pedras, por entre florestas escuras, cada vez mais fechadas. De súbito, abre-se o portal de rochas, a floresta permite a visão livre e eu contemplo um cenário de fadas, como não existe outro igual. O Merced aqui reduzido a um arroio largo, rumoreja aos meus pés. As águas são tão cristalinas que permitem contar as pedras no fundo e observar a dança das trutas. Mais para longe, abre-se um prado coberto de capim verde, de canas com pontas reluzentes na cor do ouro e, no meio delas, milhares de flores brancas, vermelhas, amarelas e azuis. Mais adiante, segue a floresta formada por árvores majestosas, cedros, pinheiros, pinheiros Douglas. À direita, precipita-se uma cascata, a partir de um vale de mil metros e se desfaz em neblina. É a cascata véu da noiva. À esquerda sobe, mil metros de altura, um bloco de granito tingido de vermelho pelo sol da tarde. Chama-se “el Capitán”. É o rochedo sentinela do portal da entrada do vale das maravilhas, E, bem no fundo do vale, o cume de outro rochedo sobressai às montanhas. É o mais famoso de toda a Sierra Nevada: o “Half Dome”. E, acima de tudo estende-se o céu azul e, sobre ele deslizam suavemente os brancos veleiros de Deus. (Rambo, 2015, p. 255-256).

Numa outra passagem do diário escrito no parque de Yosemity, deixou outra reflexão que deixa o observador atento e sensível, perplexo e, ao mesmo tempo empolgado, parecendo flagrar-se num mundo em que as ambições e os valores, melhor, desvalores vendidos pela grande mídia, reduzem-se a pó. É de Einstein, seguramente um dos físicos mais importantes do século XX como continua sendo até hoje, a afirmação surpreendente: “Quero conhecer a mente de Deus, o resto é detalhe” ou então: “As ideias que iluminaram o meu caminho são a bondade, a beleza e a verdade”. Em outras palavras Rambo externa a mesma sensação, acomodado no Glacier Point um rochedo na extremidade do vale de Yosemite:

Com certeza devem existir poucos lugares na Terra, de onde se descortinam paisagens tão deslumbrantes. Para a direita, a vista alonga-se por sobre as serras intocadas até os cumes cobertos de neve das montanhas mais altas. Do lago Merced sai o rio do mesmo nome, precipitando-se em duas cascatas: o Nevada Fall, de 160 metros, e o Vernal Fall, com 97 metros. Em frente, no lado oposto, ergue-se o maior bloco de granito do mundo, o Half Dome, 2.760 metros acima do nível do mar e 1.500 a prumo sobre o chão do vale. Para a esquerda, desfruta-se de uma visão de todo o vale e, mais adiante, dos altiplanos de ambos os lados. Milhares de pinheiros Jeffrey, isolados, em grupos ou em florestas fechadas se parecem com um exército de soldados, aprestando-se para o assalto aos cumes das montanhas. Onde quer que haja uma saliência, uma fenda, um lugar para um pé, os arbustos se agarram: carvalhos anões, castanheiras anãs, azaleias anãs. Essas últimas vestem na primavera os gigantes das montanhas com o manto real de púrpura de suas cores esplendorosas. Aos meus pés o paredão de rochas precipita-se perpendicularmente por 976 metros. As fitas de azul negro das estradas, com os carros multicoloridos se movimentando nelas; a faixa azul clara do rio, entre a floresta escura e prados cor de ouro; as cidades de barracas, ao pé da grande cascata; as multiformes rochas na beirada; o Domo Fendido, os Arcos Reais, o Pináculo das Águias, a Torre de Observação, as Torres da Catedral, o Capitão Sentinela – tudo compõe um quadro que somente um foi capaz de conceber: Aquele que, no canto de Habacuc, “caminha sobre as montanhas e as faz tremer sob o passo marcial de suas eternidades”. 

Depois do almoço, fomos até o Sentinel Dome, uma cúpula de granito que se eleva em muito acima da floresta. Em cima do cume, cresce agarrado a uma fenda um pinheiro Jeffrey. O vento constante dobrou-o, horizontalmente, a cinco metros de altura, símbolo da vida vitoriosa sobre o rochedo morto. Tenho na minha frente, uma grande fotografia a cores, que comprei em Yosemite. Jamais apreciei uma imagem mais bela de uma árvore. A luz clara da tarde cintila sobre esse sublime cenário de montanhas. Mais uma vez ecoa o canto de vitória de Habacuc: “O Eterno caminha como um caçador sobre as montanhas; o sol e a lua escondem-se em suas moradas perante o faiscar da sua flecha e do brilho de fogo refletido na lâmina da sua espada. Sobre o altar-mor do mundo das montanhas, sobre os pináculos do mundo ondula, flutua e se embala o reflexo daquela luz eterna, mais antiga que todas as auroras e mais jovem que todos os poentes do sol”. (Rambo, 2.015, p. 159-260)