Montanhas, florestas, vales misteriosos, savanas, pradarias, campos naturais, estepes avançando para além da linha do horizonte, desertos, campos de gelo e neve eterna, lagos, rios e oceanos, fizeram vibrar, cada qual à sua maneira, os arcanos mais profundos da alma das pessoas dotadas de um mínimo de sensibilidade. Os depoimentos que acabamos de registrar são testemunhas desse fenômeno. Castro Alves um dos poetas clássicos da literatura brasileira viu na configuração dos morros em torno do Rio de Janeiro um “ gigante orgulhoso de fero semblante num leito de pedra jazes a dormir”. E, dado à sua importância, vamos buscar mais alguns exemplos em outros continentes.
“A Beleza, o Belo sempre antigo e sempre novo” – a “Pulchritudo semper antigua et semper nova” de Santo Agostinho, tem uma das suas expressões mais emblemáticas nos Alpes. Suas montanhas que sobem até perto de 5.000 metros cobertas de neve, seus vales profundos, as florestas subindo até as meias encostas, os lagos silenciosos e as planícies de um verde juvenil impar, moldaram o perfil da Suíça, o norte da Itália e oeste da Áustria. O perfil dos habitantes das aldeias e pequenas cidades daqueles vales exprimidos entre gigantes que sobem para além das nuvens, perpetuaram na sua história uma simbiose única entre a alma humana e o chão que os abrigou como “casa”, como “mãe e pátria”. E o resultado dessa simbiose identifica-se de muitas formas. Os 24 cantões que, com suas aldeias e povoados formam a Federação Suíça, apesar das identidades regionais, desenvolveram uma consciência de unidade nacional, melhor talvez regional, dificilmente encontrável em outra parte do mundo. Neste pequeno território o falar francês, italiano ou alemão não impede que, acima de tudo, prevaleça a convicção do pertencimento à pátria que os une como cidadãos acompanhado de todas as consequências implícitas nessa condição. Todos se assumem apenas como suíços unidos num cenário geográfico único que os identifica a todos, apesar de zelarem com fervor pelas suas tradições próprias, de modo especial a língua. Tanto assim que nos grandes conflitos que envolveram a França, a Alemanha e a Itália e a Europa toda no século XX, a Suíça nunca abriu mão da neutralidade. Não poucas das montanhas mais representativas dos Alpes foram contemplados com nomes simbólicos como “Materhorn”, “Mönch”, “Jungfrau”, “Joch”, “Mont Blanc” e outros.
Nos Alpes orientais, o Tirol do norte fazendo parte da Áustria e o Tirol do sul da Itália, predominam as Dolomitas, montanhas de calcário de formato inconfundível privilegiadas para a cultura de vinhedos e pomares. A organização das comunidades, os povoados, as aldeias, as pequenas cidades não passam de uma extensão para dentro dos outros dois países como um prolongamento da Suíça. Todo esse complexo único de montanhas com os cumes e pontas cobertas de neve eterna, as florestas de verde escuro, parecendo tropas de assalto, galgando as encostas, até onde uma árvore ou arbusto encontra um pouco de húmus para se agarrar. E nos flancos dos abismos quase inacessíveis cresce e floresce o “Edelweiss” e a “Rosa dos Alpes”. As cabras e cabritos monteses equilibram-se na beira dos precipícios e a majestosa águia o (Lämmergeier), plana de uma montanha para a outra. São os símbolos desse cenário único, desse “jardim” sem igual oferecido pelo Criador para ser cultivado pelas tribos e povos emigrados do Centro e do Norte da Europa.
A história dessa simbiose única entre a alma humana e “sua casa”, formada por aquele cenário de montanhas, escarpas, precipícios, vales e lagos silenciosos, arroios de montanha, florestas escuras com seus animais e flores, teve início com a migração dos Cimbros e Teutões no final do século II antes da nossa era. Partiram da Jutlândia, hoje Dinamarca e arredores e, em parte, contornaram os Alpes pelo Oeste e uma parte cruzou diretamente as montanhas invadindo o Império Romano pelo Norte. As inevitáveis batalhas travadas entre os romanos e os invasores entre 113-101 AC, terminaram com a derrota dos Cimbros e Teutões na batalha de Ravena na qual Otoacker e sua esposa morreram em combate. Esses recuaram para o norte e fixaram-se nos vales das montanhas consolidando suas comunidades naquelas encostas do sul dos Alpes. Sua presença tornou-se tão definitiva que até hoje pode ser detectada pelos costumes e a língua de aldeias situadas em vales e encostas até pouco tempo isolados nas montanhas.
Durante os séculos IV e IX, D.C., aconteceram as grandes migrações dos povos vindos do Norte e Centro da Europa e que terminaram por moldar, em grandes linhas, o perfil humano e cultural daquela parte do mundo. Os Ostrogodos contornaram os Alpes pelo Leste e o Visigodos e Vândalos pelo Oeste, fixando-se em parte nos vales entre as montanhas de ambas as extremidades. Alanos, Suevos, Vândalos, Francônios e outros terminaram por fim a ocupação de todos os espaços habitáveis nesse gigantesco complexo de montanhas hoje politicamente sob a jurisdição da Federação Suíça, Áustria com destaque para o Tirol do Norte, o Tirol do Sul, no Norte da Itália, a fronteira sul da Baviera e a fronteira leste da França.
Escolhi os Alpes como exemplo para ilustrar como a presença permanente do homem e sua interferência no ambiente natural que o abriga, ou em outras palavras, quando cultiva e não depreda esse seu “jardim”, é capaz de afinar os estímulos oferecidos pelo chão em que deitou raízes, com os apelos mais profundos da alma, permitindo dar vasão ao autenticamente humano. Cumpre-se dessa forma a tarefa dada à humanidade pelo Criador ao inseri-lo ontologicamente na Natureza, de cultivá-la e não espoliá-la e degradá-la. O conceito deixa claro que os recursos necessários para suprir as demandas adequadas da sobrevivência física dos indivíduos e da espécie humana, assim como os estímulos da vida espiritual disponíveis no “jardim”, configuram-se num bem comum. O “cultivar” significa aperfeiçoar, tornar mais produtivo, mais aconchegante, mais habitável, um “estar em casa”, um “Heimatgefühl”, cuja lembrança acompanha as pessoas como uma referência, por vezes subliminar, como também pode explodir como um grito de socorro em situações extremas. Quando nada mais faz sentido a pessoa pede, melhor, suplica para que seja levada “para casa” pois, naquele lugar único encontra-se a âncora que a manteve em pé, por todos os lugares que peregrinou e com as pequenas e grande alegrias e as pequenas e grandes adversidades encontrados ao longo do caminhar da vida. Há poucos dias assisti a um filme que mostrou um grupo de prisioneiros alemães, obrigados a desativar milhares de minas enterradas na areia de uma praia da Suécia. Não passavam de quase adolescentes de 18 no máximo 20 anos. Um por um foi estraçalhado pela explosão de minas ao serem desativadas. O que me chocou de modo especial foi quando o filme deu destaque à explosão de uma mina deixando o jovem prisioneiro literalmente em frangalhos. Resgatado pelos companheiros e morrendo nos seus braços, não parava de suplicar: “levem-me para casa”. A última frase que gravei na memória de uma pessoa muito especial para mim, por sinal, minha esposa acometida pelo mal de Alzheirmer, foi a mesma do prisioneiro morrendo longe de casa: “Vamos para casa”. Não é por nada que pessoas desenganadas e com pouco tempo de vida pedem para morrerem “em casa”. Essa reflexão poderia servir de tema para um livro ou, quem sabe uma estante de uma biblioteca ou uma biblioteca inteira. Aliás, nas bibliotecas reunidas por séculos nas universidades de referência, em mosteiros, em centros de cultura importantes, o espaço reservado à apologia do “humano” no homem e sua manifestação pela literatura e a arte, ocupa um espaço privilegiado.
E voltando para região dos Alpes - pode ser também em qualquer outra região do mundo onde montanhas e demais panoramas geográficos moldaram a paisagem em que o homem decidiu abrigar o seu “Lar” – a sua “Heimat”, o “seu estar em Casa”, o seu “Zuhause”. Em todos esses espaços, cada um à sua maneira, expressa de forma única, o estado de espírito peculiar, resultado do fluxo de estímulos presentes nas realidades naturais despertando os potenciais do humano no homem. Sob o aspecto biogeográfico não pode ser desconsiderado o perfil e a localização das aldeias e pequenas cidades, além das moradias dispersas e acomodadas harmonicamente no seu entorno natural, acrescentando um elemento a mais à estética da paisagem, em vez de agredi-la ou deformá-la. O mesmo se pode afirmar do traçado das estradas e trilhas pelas quais circulam e se comunicam as pessoas. Pertencem ao conjunto dos acréscimos frutos do cultivo do “jardim” adicionando-lhe elementos novos que reforçam a estética naturalmente presente na paisagem. Mas, o que mais cai em vista, são as manifestações artísticas embutidas na poética, na literatura, nas melodias, nos cantos e nos próprios instrumentos com que são executados. Um exemplo emblemático vem a ser o “Alphorn”. Numa tradução técnica literal falaríamos em “Chifre dos Alpes” ou “Trompa dos Alpes”. Mas, na compreensão histórico-cultural, o conceito de “Trompa dos Alpes”, sem dúvida, define melhor na sua essência, de esse instrumento produzir sons e melodias. A origem desse instrumento único vem do recurso a um chifre pelo qual os moradores, os pastores de ovelhas e cabras e cuidadores de vacas se intercomunicavam. As respostas em forma de eco rebatido pelos paredões das montanhas deixaram de ser apenas um sinal de intercomunicação técnica como acontece com os nossos equipamentos eletrônicos, para significar uma das formas de música subliminar e sublime tecendo a urdidura das relações do humano do homem para com aqueles que a escutam. Os “chifres” foram substituídos e aperfeiçoados para a sua função, por instrumentos moldados em lâminas de madeira empregando técnicas as mais modernas e mais avançadas. Definiria como sublime uma sinfonia executada com esse instrumento, por uma dezena de artistas postados num patamar na encosta de uma montanha.
Não por nada uma paisagem dessas serve de inspiração para poesias, cantos, romances, contos de fadas, escultores em madeira e outros mais. Para não me prolongar demais sugiro apreciar uma “Ave Maria das Montanhas” (Ave Maria der Berge), cantada ou executada por conjuntos de instrumentos em sintonia com vozes femininas e/ou masculinas. Uma canção que não me canso de degustar vem a ser “La Montanara – Trentino”, inspirada nas belezas naturais da região de Trento, norte da Itália. Apenas como amostra pinço alguns versos: “Escuta a canção das montanhas. As montanhas te saúdam – La longe ecoa uma cascata e os pinheiros verdes filtram os prateados raios de luz – Uma branca nuvem paira solitária sobre as eternas montanhas”. A religiosidade foi e ainda é uma marca do homem e das comunidades alpinas. O testemunho desse espírito são os emblemáticos cruzeiros de madeira que emprestam um toque todo peculiar à paisagem. O Cristo crucificado esculpido em madeira os torna únicos e deu origem a um artesão especializado nesse tipo de arte presente e fazendo parte da história do tipo humano moldado por essas montanhas, vales e florestas: o “Herrgottschnitzler” – mal traduzido o “Escultor de Deus”.