“O bem morar”.
O conceito chave que perpassa como “Leitmotiv” o texto da “Encíclica Laudato si” e ao qual referenciamos as reflexões acima sobre a natureza e a relação ontológica da espécie humana com ela, vem a ser o entendimento de que ela vem a ser “a nossa a casa”. Parece-me que como fecho de tudo que vimos afirmando nas páginas que precederam cabe uma reflexão final no sentido de tentar dimensionar a riqueza e a densidade do “humano do homem” implícito nesse conceito, à primeira vista tão trivial e ao mesmo tempo tão óbvio. Em resumo parece importante chamar a atenção ao fato de que a casa é o local, o espaço no qual as pessoas moram. Portanto, uma casa no sentido que aqui emprestamos ao conceito, não pode deixar de oferecer as condições mínimas para um “bem morar”. Mais acima já lembramos que a única espécie viva na terra que “mora” é a humana. As demais, sem exceção, se abrigam, refugiam, se escondem, procuram proteção ou um recanto protegido para se reproduzir. Cavernas, ocos de árvores, tocas cavadas no chão, ninhos de sabiá, casinhas de João de Barro e por aí vai, não são “moradias” no sentido conceituado pela Encíclica. Com essa observação como pano de fundo pretendo dimensionar de alguma forma a importância do “bem morar”, para a satisfação das demandas existências do homem em todas as dimensões, tanto físicas, quanto psicológicas, sociais, artísticas e religiosas.
Embora o “morar” costume ocupar um lugar um tanto à margem das preocupações filosóficas, Hermann Schmitz, fundador da “Nova Fenomenologia”, citado por Zoborowski, chama atenção à importância do “morar”, na história da humanidade. Trata-se de um dos fatores determinantes na formatação da personalidade das pessoas e no sadio relacionamento com os demais integrantes de uma sociedade. Com a palavra o filósofo H. Schmitz:
Praticamente todas as pessoas acham que “estão morando”. O que significa isso? Para responder a essa pergunta entra em questão, em primeiro lugar, uma moradia convencional que oferece todas as condições de um “bem morar”: fazer as refeições, dormir, amar, criar e educar os filhos. Para atender a esses quesitos uma moderna moradia oferece todas as demandas: uma cozinha, sala de jantar, quartos de dormir e quartos para os filhos. Também não pode faltar uma sala de estar. O que acontece aí. “Mora-se”. E o que se entende com esse conceito? Praticamente todas as atividades indispensáveis à vida, menos as relações sexuais e as necessidades fisiológicas, para as quais requerem-se recintos discretos e privativos. De mais a mais incluem-se nos espaços normais um escritório, um local para jogar conversa fora, um local reservado só para a intimidade da família e recepção de convidados, inclusive um canto para não fazer nada. A natureza do “bem morar” não se esgota, porém, na enumeração dos espaços específicos e suas funções. Trata-se de um ambiente onde acontece a vida naturalmente, sem ter que prestar contas a quem quer que seja incluindo os motivos pelos quais pudesse ser exigido. (W. Schmitz, in Zoborowski, p. 213)
“A casa” onde acontece o “bem morar” materializa-se nos lugares, nos espaços e caminhos ou, resumindo, nas circunstâncias em que se localiza e configuram o cenário em que as pessoas se sentem em casa - “Zuhause”, onde vivenciam as delícias da intimidade do lar – “Heimatgefühl”, onde se abriga a morada – “das Haus” rodeada das árvores, plantas, arbustos e flores, onde se escuta a sinfonia dos pássaros e animais silvestres, onde os mais diversos animais e aves domésticas convivem com crianças e adultos. Os brinquedos e as diversões da infância inspiram-se nas dádivas da natureza que delimita o cenário que oferece os estímulos que despertam no ser humano desde o remoto despertar da consciência, muitos dos traços mais marcantes da personalidade adulta em toda a sua caminhada futura, mesmo que se prolongue até os 90 ou mais anos. Aquele cenário único, “o Hof”, mesmo desfeito fisicamente com o andar das décadas e sucessão das gerações, acompanha o caminhar da vida e, costuma em inúmeros casos, vir à tona e a ele se retorna na hora da despedida dela. E, para completar o cenário não se podem esquecer a importância dos caminhos que interligam os lugares e espaços. Não importa se são estradas, veredas, trilhas, picadas na floresta ou rios. Arriscando-se por elas como crianças fomos descobrindo os segredos e as surpresas escondidas atrás de cada pedra, na copa das árvores, no silêncio da floresta, nas flores do campo, na brisa da tarde, no assustador da aproximação das trovoadas nas tardes de verão. Depois de décadas, depois de peregrinar por outras veredas, em momentos de retorno ao passado, cruzamos na memória por essas trilhas, veredas e caminhos com os pais, irmãos, parentes, vizinhos, amigos e até forasteiros que há muito tempo já passaram para “outro lado do caminho”, no entender de Santo Agostinho.
Refletindo sobre as características em que acontece o “bem morar” que acabamos de enunciar e descrever, chega-se à conclusão que devido ao estado de agressão à natureza a que a atual civilização avançou, que a concretização desse conceito terminou num problema filosófico e, consequentemente num desafio prático. Ficou difícil encontrar lugares, espaços e caminhos para instalar um morada no sentido tradicional do conceito, isto é, um ambiente no qual as pessoas se sintam existencialmente inseridas, protegidas para dar vasão a todas as demandas do “humano” – “die Menschlikeit”, na qual, em última instância, radica a razão de ser da sua existência. Como causa e, ao mesmo tempo com consequência somam-se a esse cenário sempre novos espaços devorados pelo avanço da urbanização, na maioria dos casos carente de um planejamento adequado. As cidades vão estendendo seus tentáculos e muitas delas transformam-se em metrópoles e não poucas terminam em gigantescas megalópoles. Nas periferias multiplicam-se os bairros e favelas carentes de água tratada, de saneamento básico, de vias de circulação seguras e infestados por traficantes, assassinos e contraventores da lei de todas as matizes, abrigando uma população de subempregados e desempregados. Nessa dinâmica dissolvem-se os valores éticos, os valores familiares, os valores do convívio social levando a um comportamento individual e coletivo errático, sem regras, sem compromissos, terminando em rebanhos que se vendem por qualquer preço aos discurso de espertalhões se escrúpulos. A tudo isso soma-se a artificialização em praticamente todas as atividades humanas.
No contexto desse panorama o “morar” num dos grandes problemas do nosso tempo. Chegou a um ponto em que se pode afirmar que nessas situações as pessoas já não moram. No sentido metafórico perderam o chão debaixo dos pés e já não têm como deitar raízes existenciais. Pensando bem, afirmou Theodor Adorno, citado por Zoborowski, tornou-se impossível morar. Ainda segundo Zoborowski, Martin Heidegger, considerado o filósofo do “bem morar” imaginou e, de fato, concretizou o morar perdido no tempo, numa cabana que mandou construir numa encosta na Floresta Negra sem, entretanto, sugerir um retorno romântico para o passado. Quase diria que com sua cabana Heidegger sonhava com uma utopia. Zoborowski conclui com a observação: Foi preciso sentir com toda a crueza a falta, a carência daquilo que no passado foi realidade e enfrentar o sofrimento da ferida que o mundo de hoje impõe Á perda da “Querência” – “die Heimat”- a perda do “Lar” – “Heim”- a perda do “estar em Casa” – (“das zu Hause”), onde nos sentimos “Em Casa?” Será que existe aquele morar tranquilo onde nossas demandas existenciais se realizam. E Heideger pergunta: “Será que ainda se pode encontrar um local onde é dado ao homem viver entre o céu e a terra? Zoborowski conclui: Na melhor das hipóteses, nessa situação de perda, “da Querência” – “Heimat”, tem-se a impressão que ela não passa de uma súplica romântica de volta uma época que irremediavelmente ficou no passado ou objeto de uma esperança que não passa de uma utopia. Parece-me que entre esses dois extremos um meio termo é possível. Não só possível como em plena concretização avançando pelo mundo afora, dando razão ao lendário provérbio fruto da sabedoria romana: “in médio stat virtus”, na tradução literal: “a virtude encontra-se no meio termo”. Não se esquecendo que o “bem morar” não se resume numa morada bem planejada, confortável, ampla suficiente, repartições adequadas para atender aos rituais do bem viver de uma família mas, harmonicamente integrado nos lugares, caminhos e espaços que a interligam com as demais moradas. Conclui-se, portanto que “o bem morar” implica na harmonização das obras do homem com a paisagem natural. Em outro momento lembramos como exemplo dessa harmonização da presença do homem com a paisagem natural é possível com acontece no complexo dos Alpes da Suíça, Lichtenstein, norte da Itália e oeste da Áustria, com destaque para o emblemático Tirol do sul pertencente à primeira e o Tirol do Norte à segunda. Um fenômeno semelhante pode ser observado também no sul do Brasil, de maneira mais visível em áreas onde predomina a agricultura familiar. Mais acima já lembramos os cursos médios e superiores dos sete rios que formam a bacia do Guaíba. O mesmo vale, em termos, para as Missões, Alto Uruguai, centro oeste e leste de Santa Catarina, oeste do Paraná, além de muitas outras regiões do País. Já a harmonização da presença do homem nos complexos urbanos de médio e grande porte, a solução da organização dos lugares, espaços e caminhos oferece desafios difíceis de enfrentar. Quanto maior for a dimensão dessas cidades, metrópoles e ou megalópoles, tanto mais grave a situação. Neste caso realmente as pessoas tornaram-se reféns e vítimas da sua própria criatura. Nesses casos extremos não tem como não concordar com Adorno, Heidegger e Bolch, resumidos por Zoborowski: “a casa é coisa do passado”.
Depois de todas reflexões acima, inspiradas nos três primeiros três capítulos da Encíclica “Laudato Si”, parece pertinente concluir. Deus criou a natureza e nela inseriu ontolgicamente a espécie humana para viver e sobreviver com os recursos por ela oferecidos; entregou ao homem o “Jardim da Natureza” para cultivá-lo como sendo sua casa e assim torna-lo mais rico; o “cultivo” desandou nos últimos séculos em espoliação, exploração irracional, em agressão ao ponto de por em risco esse “jardim” e com ele a espécie humana; as sirenes de alerta fazem-se ouvir pelo planeta inteiro. Como contraponto a esse cenário nada animador percebe-se o despertar da consciência alertando para a catástrofe desenhando-se no horizonte. Iniciativas de todos tipos e em todos os níveis estão sendo posto em prática para reatar e reforçar os laços da simbiose que liga o homem com a natureza e, dessa forma, tratar essa “Sua Casa” inserida no contexto das circunstâncias do século XXI.