A Natureza como inspiradora
E para concluir as reflexões inspiradas nos três primeiros capítulos da Encíclica Verde, quero demorar-me mais um pouco num aspecto da Natureza, que para muitos passa despercebido. Faz parte do quotidiano de qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade e de percepção o que há de arte e de belo nas milhões de modalidades em que ela pode ser apreciada. Mais acima já chamei a atenção como os poetas, os músicos, os artistas plásticos e outros mais foram buscar a inspiração para se expressar nas suas peças artísticas, nas florestas, nos campos naturais, nas flores, nas montanhas, nos rios, nos mares e oceanos, nos fenômenos grandiosos e/ou assustadores, nos animais e plantas e em incontáveis outras realidades oferecidas pela natureza. Refiro-me ao potencial de obras de arte à espera da revelação pelo gênio dos artistas plásticos que, além da beleza e da perfeição dos traços em si, vem carregadas de simbolismos, significados históricos, cosmovisões, o imaginário despertado pelo transitório e, principalmente, pelo perene que perpassa a história da humanidade. Alguns exemplos para ilustrar.
Os pedreiros que extraíram os blocos de mármore da montanha encomendados por Miguel Ângelo, provavelmente não tinham a menor ideia de que o artista esculpiria a famosa “Pietá”, o “Moisés” e o “Davi”. Vivi a experiência ímpar de ficar recolhido em silêncio em frente à “Pietá” protegida com vidro blindado no seu recanto no Vaticano. A música suave de fundo foi um estímulo a mais para despertar todo o sentido histórico e todo o simbolismo humano e religioso incarnado naquela obra de arte esculpida num bloco de rocha nobre oferecido pela mãe terra. Melhor, buscada no quintal da “nossa casa”. Os traços do rosto marcados pela dor, mas não pelo desespero, da mãe da cristandade, com o filho morto nos braços, o corpo massacrado e o rosto maltratado e, contudo, sereno depois de cumprida a missão da Redenção. Recolhido no canto do recinto, com esse cenário na minha frente e a música inspiradora de fundo, deixei correr livre a imaginação. Miguel Angelo foi capaz de desvelar de um bloco de mármore bruto, o cenário que marca o epicentro dos séculos e mais séculos da gênese da civilização judaico-cristã. Não menos significativo e sugestivo vem a ser a escultura de Moisés também revelada num monobloco de mármore pelo mesmo artista. A figura de Moisés impressiona por retratar o personagem que, segurando as tábuas do decálogo, simboliza a revelação do norte ético e moral que deveria orientar a conduta de qualquer ser humano que mereça este nome. Diz a tradição que, concluída a obra e observando a sua perfeição, o artista teria dado de leve uma martelada no joelho do personagem de sua obra e feita a provocação: “Parla Moises – Fala Moisés”. Não menos emblemático como simbolismo histórico, vem a ser o “Davi” do mesmo artista esculpido também num bloco de mármore.
A arte e o belo à espera de serem desvelados pelos artistas podem ser encontrados nas realidades mais singelas como nas mais vistosas e mais impactantes que compõem os múltiplos e mais inusitados cenários da “nossa mãe e pátria”. Lembro mais algumas outras obras clássicas, além do mármore outros tipos de rochas tendo como matéria prima o granito. O artista português Noel Monteiro esculpiu num bloco de granito amarelo uma estátua de Nossa Senhora de Fátima de 3,50 m. de altura, uma de Nossa Senhora da Paz de 4,20 m. e uma terceira de Nossa Senhora Auxiliadora de 5,0 m. O obelisco na praça de São Pedro no Vaticano de granito vermelho mede 40 metros de altura. Igualmente monoblocos de granito são as colunas que sustentam a cúpula da catedral de Porto Alegre. Impressionantes são os rostos dos presidentes fundadores e consolidadores dos Estados Unidos da América do Norte, Washington, Jefferson, Th. Roosevelt e A. Lincoln, esculpidos diretamente na rocha no alto do monte Rushmore na Dakota do Sul. Medem 18 m. de altura e 5,5 na maior largura do rosto. Entre os monumentos historicamente famosos e mundialmente admirados não poderíamos omitir as pirâmides do Egito e junto a elas a grande esfinge que, com um olhar enigmático contempla há milhares de anos, a misteriosa vastidão do grande deserto. O basalto foi utilizado pelos escultores como matéria prima para inúmeras obras de arte que na sua mudez pétrea incarnam e contam a história de personagens e eventos que falam do perene e do transitório da marcha da história da humanidade através dos séculos e milênios. Merecem destaque o faraó Tutancamon, a rainha Nefredete, o Leão da Babilônia e muitos outros. Emblemáticas são também as estátuas da Ilha da Páscoa. Os artistas anônimos que as esculpiram na rocha vulcânica há séculos deixaram a ilha e até hoje não temos vestígios seguros da sua identidade e do seu destino. As enormes cabeças com o restante do corpo enterrado no chão, pesando toneladas, enfileiradas nas encostas da ilha, contemplam o oceano que, lá longe, se confunde com o horizonte. Parecem acompanhar com o olhar enigmático e nostálgico os últimos habitantes da ilha que partiram para uma terra que, até o momento, os arqueólogos, os etnógrafos e os historiadores não conseguiram localizar. E não podemos deixar a ocasião de lembrar o Aleijadinho o artista plástico brasileiro que marca toda uma época na arte da escultura valendo-se da “pedra sabão” como matéria prima.
Chamo a atenção à riqueza artística que nos oferecem os monumentos tumulares que podem ser apreciados em qualquer cemitério de toda e qualquer procedência étnica e religiosa. A natureza característica de cada local costuma oferecer a matéria prima, isto é, o tipo de rocha que foi utilizada pelos artífices para moldar os símbolos, entalhar as datas e perpetuar em prosa ou verso os valores cultivados pelos que aí estão sepultados. Os túmulos revestidos com mármore, basalto, granito, arenito, ou outra pedra qualquer, com seus símbolos, inscrições e formatos alertam o observador atento e dotado de um mínimo de sensibilidade humana, para o perene e o transitório da existência humana, como já lembramos mais acima. Os “campos santos” como também são chamados, significam incomparavelmente mais do que outras formas de perpetuar a memória da caminhada da humanidade, para intuir e compreender na sua essência ontológica o significado da profundidade do conceito do “humano no homem” – “die Menschlichkeit”.
E, para fechar a série de reflexões feitas até aqui, inspiradas nos três primeiros capítulos da “Encíclica Verde”, falta a referência aos simbolismos inspirados pela natureza nas suas manifestações intocadas pelo homem. Mais acima já nos referimos em várias ocasiões de alguma forma a esse potencial que a “nossa casa”, oferece à nossa capacidade de percepção e intuição. Em linhas muitos gerais falamos dos monumentos naturais merecedores de proteção como componentes significativos nas paisagens naturais. Nesse conceito enquadram-se cadeias de montanhas, montanhas isoladas, florestas, árvores de grande porte e/ou beleza, quedas de água, cataratas, lagos, rios, desertos, campos naturais, cânions, precipícios, a imensidão dos oceanos e inúmeras outras manifestações que, de alguma forma, compõem o cenário em que a espécie humana moldou a sua história.
A gênese histórica das civilizações trai em muitos dos seus aspectos e, por vezes, na própria identificação que distingue umas das outras, os significados culturais emprestados a fatos e fenômenos naturais. As formações geológicas no entorno do Grand Canyon do Colorado assumem personalidade pela forma e a perspectiva em que foram vistas pelos estudiosos do parque. Encontramos nelas as personificações, o encontro de figuras históricas e personagens mitológicos que, por assim dizer, incarnam a índole e a alma de culturas e civilizações que evoluíram em ambientes e situações completamente diferentes e vão encontrar-se, como que numa síntese, naquele cenário milhares de quilômetros longe da sua origem. Destacamos aí o Templo de Schiva, as figuras de Brahma e Buda e o Templo de Confúcio, representantes emblemáticos das civilizações do Oriente remoto; o Templo de Zaratustra da mitologia persa; o Walhalla dos deuses germânicos e o Trono de Siegfried, personagem épico da canção alemã. No parque nacional Sequoia localizamos a Pirâmide Quéops representante da cultura egípcia, o Nariz de Homero, representando as civilizações consolidadas em torno do Mediterrâneo. Este é um exemplo emblemático de como tradições culturais histórica e geograficamente tão distantes umas das outras encontraram-se em situação tão inusitada como nas formações geológicas do parque do Grand Canyon e outros parques nacionais. A explicação para entender que um encontro nesses moldes fosse possível é preciso recorrer a lei que criou os parques americanos. O objetivo fundamental, além de proteger esses monumentos naturais e declará-los patrimônio nacional foi, colocar à disposição das pessoas comuns, como operários, pequenos empresários, funcionários públicos, alunos das escolas, colégios e universidades e seus professores e responsáveis, um ambiente que oferecesse condições para usufruir um lazer barato e tranquilo e um deliciar-se sadio em meio à natureza. À noite costumam-se programar-se sessões conduzidas por professores e especialistas também em férias, informando o público sobre a história, a formação geológica, a vegetação, os animais e a importância da preservação desses verdadeiros santuários naturais. Ao lazer do cotidiano esses ambientes assumem também o papel de autênticas universidades ao ar livre. Nesses encontros o povo comum vem a ser informado sobre a razão de ser dos nomes dados a montanhas, vales, árvores, fontes, grutas, cavernas, lagos, fontes quentes, e por aí vai. Ao lazer sadio alia-se um usufruir importante também da ampliação dos conhecimentos e, com isso, a elevação cultural dos veranistas. Os parques, portanto, como escolas e/ou universidades ao ar livre contribuem para ampliar os conhecimentos e o nível cultural dos seus frequentadores.
No parque nacional “Sequoia” encontra-se outro exemplo de como o imaginário cultural e a memória histórica pode ser perpetuada em realidades naturais características oferecidas pelo parque. A sequoias gigantes daquele parque incorporaram personalidades de figuras importantes da história do país. Em uma decisão histórica carregada de significados simbólicos os administradores do parque deram nomes aquelas árvores gigantescas, entre as quais, algumas contam com mais de cinco mil anos e, se nada de anormal lhes acontecer, continuarão ainda firmes por séculos e, quem sabe, por milênios. A maior e a mais possante delas foi contemplada com o nome do general “Sherman”; a segunda em tamanho é “o President” e, ao lado do “President”, um terceiro gigante contempla o cacique Cherochee “Chief Sequoia”; uma outra ainda imortaliza o general “Grant”. As árvores chamam a atenção aos frequentadores do parque sobre os generais responsáveis pela consolidação do Estado, o presidente e o cacique cherochee que, apesar dos desencontros e, quem sabe, exatamente pelos desencontros históricos, entraram de alguma forma, na síntese da identidade americana em formação. Na mesma floresta o visitante pode passar em revista, simbolizados nos seus gigantes, personagens determinantes da história do País: Washington, Lincoln, Mac Kinley, o general Lee, Theodor Roosevelt, Cleveland e outros. Para não ficar insistindo demais na lembrança de uma fase histórica desagradável que foi a guerra civil e para poupar os parques do clima de disputas político partidárias, a preferência centrou-se em denominações históricas como “as Colunas de Hércules” ou metáforas sugeridas pela peculiaridades dos diversos gigantes: a Chaminé, a Flecha Quebrada, o Gigante fulminado pelo Raio, Árvore Janela, Árvore Buraco da Fechadura, os Trigêmeos, o Nursery, o emblemático Casal Fiel, dois gigantes concrescidos na base até três metros acima do chão, as Três Graças, o Solteirão, o Urso Gigante, a Árvore Estrebaria, os Soldados Sentinelas, a Árvore Telescópio. O parque de Yosemite, reúne talvez mais que qualquer outro os elementos que põem em ebulição o humano no homem e resultam numa harmoniosa sinfonia colocando o observador num panorama que vai do Belo sutil das flores das ervas rasteiras, passando pelo Belo tranquilo dos arbustos e árvores da floresta e o rio Merced povoado de trutas brincando na água cristalina, rumorejando sobre os escolhos deixados pelo eterno lapidar das forças telúricas de milhares e milhões de anos, para terminar no Belo majestoso e arrebatador da moldura das montanhas de granito esculpidas no inconfundível formato de “U” pela passagem das geleiras da era glacial. Permito-me reproduzir o estado de espírito do Pe. Rambo ao passar pelo portal de entrada do “do mais belo vale do mundo”, como anotou em seu diário. Depois de descrever a viagem de ônibus de São Francisco, depois de descrever os pomares do vale da Califórnia, a subida da Sierra Nevada, lembrar a epopeia da exploração do ouro naquela encosta em meados do século XIX, anotou:
Acontece que não viajei para a Sierra Nevada a procura de ouro, mas em busca do mais belo vale do mundo, o Vale de Yosemite. As montanhas aproximam-se cada vez mais uma das outras. O rio troveja com crescente força sobre os escombros das pedras, por entre florestas escuras, cada vez mais fechadas. De súbito, abre-se o portal de rochas, a floresta permite a visão livre e eu contemplo um cenário de fadas, como não existe outro igual. O Merced aqui reduzido a um arroio largo, rumoreja aos meus pés. As águas são tão cristalinas que permitem contar as pedras no fundo e observar a dança das trutas. Mais para longe, abre-se um prado coberto de capim verde, de canas com pontas reluzentes na cor do ouro e, no meio delas, milhares de flores brancas, vermelhas, amarelas e azuis. Mais adiante, segue a floresta formada por árvores majestosas, cedros, pinheiros, pinheiros Douglas. À direita, precipita-se uma cascata, a partir de um vale de mil metros e se desfaz em neblina. É a cascata véu da noiva. À esquerda sobe, mil metros de altura, um bloco de granito tingido de vermelho pelo sol da tarde. Chama-se “el Capitán”. É o rochedo sentinela do portal da entrada do vale das maravilhas, E, bem no fundo do vale, o cume de outro rochedo sobressai às montanhas. É o mais famoso de toda a Sierra Nevada: o “Half Dome”. E, acima de tudo estende-se o céu azul e, sobre ele deslizam suavemente os brancos veleiros de Deus. (Rambo, 2015, p. 255-256).
Numa outra passagem do diário escrito no parque de Yosemity, deixou outra reflexão que deixa o observador atento e sensível, perplexo e, ao mesmo tempo empolgado, parecendo flagrar-se num mundo em que as ambições e os valores, melhor, desvalores vendidos pela grande mídia, reduzem-se a pó. É de Einstein, seguramente um dos físicos mais importantes do século XX como continua sendo até hoje, a afirmação surpreendente: “Quero conhecer a mente de Deus, o resto é detalhe” ou então: “As ideias que iluminaram o meu caminho são a bondade, a beleza e a verdade”. Em outras palavras Rambo externa a mesma sensação, acomodado no Glacier Point um rochedo na extremidade do vale de Yosemite:
Com certeza devem existir poucos lugares na Terra, de onde se descortinam paisagens tão deslumbrantes. Para a direita, a vista alonga-se por sobre as serras intocadas até os cumes cobertos de neve das montanhas mais altas. Do lago Merced sai o rio do mesmo nome, precipitando-se em duas cascatas: o Nevada Fall, de 160 metros, e o Vernal Fall, com 97 metros. Em frente, no lado oposto, ergue-se o maior bloco de granito do mundo, o Half Dome, 2.760 metros acima do nível do mar e 1.500 a prumo sobre o chão do vale. Para a esquerda, desfruta-se de uma visão de todo o vale e, mais adiante, dos altiplanos de ambos os lados. Milhares de pinheiros Jeffrey, isolados, em grupos ou em florestas fechadas se parecem com um exército de soldados, aprestando-se para o assalto aos cumes das montanhas. Onde quer que haja uma saliência, uma fenda, um lugar para um pé, os arbustos se agarram: carvalhos anões, castanheiras anãs, azaleias anãs. Essas últimas vestem na primavera os gigantes das montanhas com o manto real de púrpura de suas cores esplendorosas. Aos meus pés o paredão de rochas precipita-se perpendicularmente por 976 metros. As fitas de azul negro das estradas, com os carros multicoloridos se movimentando nelas; a faixa azul clara do rio, entre a floresta escura e prados cor de ouro; as cidades de barracas, ao pé da grande cascata; as multiformes rochas na beirada; o Domo Fendido, os Arcos Reais, o Pináculo das Águias, a Torre de Observação, as Torres da Catedral, o Capitão Sentinela – tudo compõe um quadro que somente um foi capaz de conceber: Aquele que, no canto de Habacuc, “caminha sobre as montanhas e as faz tremer sob o passo marcial de suas eternidades”.
Depois do almoço, fomos até o Sentinel Dome, uma cúpula de granito que se eleva em muito acima da floresta. Em cima do cume, cresce agarrado a uma fenda um pinheiro Jeffrey. O vento constante dobrou-o, horizontalmente, a cinco metros de altura, símbolo da vida vitoriosa sobre o rochedo morto. Tenho na minha frente, uma grande fotografia a cores, que comprei em Yosemite. Jamais apreciei uma imagem mais bela de uma árvore. A luz clara da tarde cintila sobre esse sublime cenário de montanhas. Mais uma vez ecoa o canto de vitória de Habacuc: “O Eterno caminha como um caçador sobre as montanhas; o sol e a lua escondem-se em suas moradas perante o faiscar da sua flecha e do brilho de fogo refletido na lâmina da sua espada. Sobre o altar-mor do mundo das montanhas, sobre os pináculos do mundo ondula, flutua e se embala o reflexo daquela luz eterna, mais antiga que todas as auroras e mais jovem que todos os poentes do sol”. (Rambo, 2.015, p. 159-260)