Archive for outubro 2024

Da Enxada à Cátedra [ 54 ]

Compreendo que após 6 décadas a Antropologia como disciplina acadêmica, como campo de pesquisa, como atividade profissional, tenha evoluído ao irreconhecível, tomando-se como referência o programa acima detalhado. Não me sinto em condições e nem me interessa emitir um juízo crítico sobre os rumos que a Antropologia seguiu, sua proposta acadêmica, o espaço que revindica no contesto das Ciências Humanas e sua postura político ideológica nas circunstâncias do começo da terceira década do terceiro milênio. Faço meu o princípio que me parece adequado em situações do gênero: “Louvar não posso, criticar não devo, por isso calo-me”.

Para o segundo semestre de 1960 ocorreu uma alteração na distribuição das tarefas docentes. O Pe. Balduino catedrático da cadeira de Etnografia e Etnologia recebera um convite do governo da RFA (República Federal da Alemanha) e do Instituto Ibero-Americano de Berlim, para passar 4 meses na Alemanha e outros países da Europa Central e do Norte: França, Inglaterra, Suécia, Holanda, Áustria e Suíça. Como soubera do convite em fevereiro ele adiantara em parte suas obrigações docentes na universidade. O Pe. Ignácio Schmitz, também seu assistente e eu repartimos o que tinha ficado para trás. Além disso segundo semestre letivo de 1960 transcorreu sem mais novidades. Em fins de outubro o Pe. Balduino voltou da sua viagem à Europa.

O evento decisivo para o meu futuro como docente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul aconteceu na primeira metade de dezembro daquele ano. Mais acima já lembrei que, na época, a carreira do docente universitário público começava com o convite do catedrático da respetiva disciplina e, nos primeiros dois semestres cumpria a sua tarefa na condição de “instrutor de ensino superior”, isto é, um estágio para avaliar o seu desempenho. O contrato que o vinculava à universidade tinha caráter temporário. A entrada no funcionalismo público federal e ser enquadrado no estatuto que o regia, pressupunha um ritual previsto no estatuto da universidade, frente a uma comissão examinadora, no meu caso, indicada pela Congregação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. O presidente costumava ser o catedrático da disciplina, no caso o Pe. Balduino. Os outros dois foram professores de história. O concurso consistiu numa prova escrita, numa prova oral cujas questões foram formuladas pela comissão e, por fim, uma aula prática. Não me lembro exatamente das questões das duas primeiras. Para a aula prática o tema escolhido foia “Dinâmica da ocupação da Ásia Oriental”. O resultado foi de todo em todo compensador. Fui aprovado com a média de 9,50. O Balduino, como ele mesmo me confidenciou mais tarde, foi o responsável por não ter alcançado a nota máxima. Compreendi perfeitamente a sua posição. Como catedrático, somado ao fato de ser meu irmão, não quis ser acusado de me ter protegido.

De qualquer forma estava plenamente habilitado para que meu nome fosse chancelado pelo ministério da educação e minha efetivação com professor universitário federal assinada pelo presidente da República, fato que se efetivou na segunda metade de janeiro de 1961. Com a efetivação passei à categoria de assistente e funcionalmente estável de acordo com o estatuto do funcionalismo público federal. De volta ao Colégio Cristo Rei, o reitor Pe. Arthur Bohnen, comunicou o bom resultado do concurso a toda a comunidade dos jesuítas reunida para o almoço no refeitório. Guardo esse reconhecimento público do meu superior religioso como uma grata recordação desse meu xará que não só sempre me apoiou como me defendeu contra os que estranhavam a minha condição de aluno de Teologia e, ao mesmo tempo, docente na universidade pública.

No sábado depois do concurso o Pe. Balduino buscou-me com o seu jeep” para fazermos uma visita à nossa mãe em Harmonia, naquela altura com 76 anos morando com meu irmão Bertoldo e família. Daquela visita consta a última fotografia com o Balduino de que me lembro e guardo entre as minhas relíquias. Em meados de dezembro acompanhei meus colegas teólogos para duas semanas de férias na Casa de Retiro do Morro das Pedras no sul da ilha de Florianópolis. O ritual das férias naquele local, as caminhadas pela floresta que cobre a encosta do outro lado da lagoa do Pery, os morros da Armação, as praias adjacentes, já descrevi mais acima numa outra temporada de férias naquele local, na época com a paisagem praticamente intocada. Registro contudo três programações que merecem destaque. A primeira foi um passeio de barco de um dia à ilha do Campeche. Ao desembarcarmos na pequena praia tranquila do lado oposto do mar grosso, fomos recebidos por um bando de quatis que viviam na pequena floresta cobrindo a encosta da ilha do lado protegido do vento do oceano. O dia foi curto para observar e apreciar em detalhe a geomorfologia toda moldada em granito, a vegetação, a fauna e flora. Lembro com destaque especial a face da ilha que dá para o lado do alto mar com seus blocos de granito e sobre eles os vestígios entalhados deixados pelos índios dos tempos passados. Aquele cenário moldado por incontáveis milhões de anos fez-me sentar num bloco de granito voltado para o oceano que lá longe se confundia com a linha do horizonte e deixar correr livre a imaginação em busca de uma resposta como tudo aquilo começou, como evoluiu até receber os homens que deixaram as marcas da sua presença nas rochas, confiando aos arqueólogos a tarefa de tentar decifrar o xadrez da sua identidade. Em momentos de reflexão do gênero costuma aflorar na memória o que a lenda atribui ao monge inglês Cadmon, poeta e pastor de ovelhas, que numa noite solitária de vigília junto ao rebanho escutou uma voz vinda do fundo da noite: “Cadmon, canta-me a canção do começo de todas as coisas”. Nesse micro ecossistema que vem a ser a ilha do Campeche, assim com dezenas de outras ao longo da costa e Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e mais para o norte, poderiam muito bem servir de espaço para uma aula de ecologia ao ar livre para todos os níveis de ensino. Sem jaleco, sem quadro, negro, sem power point, sem qualquer outro equipamento além da capacidade de admirar, de ouvir, de sentir, de degustar e cheirar a natureza, de fareja-la na sua forma original e sem as inevitáveis distorções quando descrita nos livros, cantada pelos poetas, desenhada pelos artistas ou retratada em qualquer outra modalidade de representação.

Numa segunda saída, também de um dia, foi para a colônia de pescadores do Pantano do Sul. Na época aquela enseada paradisíaca emoldurada pelos morros cobertos de mata virgem, uma ilha a poucos quilômetros para dentro do oceano, ainda não fora profanada pela invasão do turismo. Lá vivia uma pacífica e laboriosa comunidade de pescadores. Chegamos de manhã na hora em que eles arrastavam as redes para a praia. O resultado daquela manhã não foi extraordinário, porém, recompensou o esforço dos valentes pescadores. Enchovas, alguns tubarões de porte relativamente modesto, garoupas, tainhas e outros mais. Para mim como antropólogo interessou naquela visita, antes de mais nada o tipo humano, homens mulheres e crianças, que compunham aquela comunidade, seus trajes, a organização das modestas moradias, os barcos de pesca e, sobretudo o ritual e as técnicas de manuseio dos barcos, das redes e, principalmente, a preparação dos peixes para serem comercializados e uma parte para o consumo diário das famílias dos pescadores. Para o almoço fomos brindados com um saboroso ensopado de enchova temperado com conversa amena, além de preciosas informações sobre a vida dos pescadores, úteis para ilustrar as preleções na universidade.

Um terceiro programa levou-nos até a ilha do Anhatomerim (Pequena Ilha do Diabo em Tupi) na entrada da baía norte da ilha de Florianópolis, bem próxima ao continente. A ilha toda não passa de uma fortaleza com uma área total de 4 hectares, sentinela e vigia da entrada da baía do norte das embarcações procedentes do “mar grosso”. Essa ilha entrou na história do Brasil a partir do século XVII como um ponto estratégico, junto a ilha de Santa Catarina, Ratones e outras, na rota de navegação para a região do Prata. Foi por essa razão que a coroa portuguesa decidiu implantar três fortificações nelas para evitar que os espanhóis se antecipassem. Foram três as fortificações mais importantes: São José da Ponta Grossa na ilha de Santa Catarina, Santo Antônio na ilha de Ratones e Santa Cruz na ilha de Anhatomerim. O forte de Santa Cruz mostrou-se totalmente inútil com bastião protetor da entrada de navios na baía do norte. Seus canhões tinham um alcance máximo de dois quilômetros e com isso navios espanhóis navegaram em grande número passando pela baia norte e sul deixando a ilha de Santa Catarina entregue à ocupação estrangeira. Posteriormente Anhatomerim passou por dois períodos pouco mencionados pelos historiadores. O primeiro deles aconteceu em 1894 sob a presidência de Floriano Peixoto. A ilha com suas instalações foi transformada em presídio político. Nela foram recolhidos 185 opositores ao regime e sumariamente fuzilados sem direito à defesa. No subsolo da sede do comando observei na parede inúmeros pontos de impacto das balas dos fuzilamentos. Durante a Revolução Constitucionalista de Vargas em 1930 Anhatomerim voltou a condição de presídio político. Para mim a visita àquela ilha serviu como uma imersão num passado que faz parte do fascinante lançamento das raízes e consolidação do Brasil como também dos países do Prata. Começa pela consolidação da soberania da Coroa de Portugal sobre aquele território no sul da Colônia Portuguesa, bem a meio caminho da rota dos navios que demandavam as colônias espanholas do Prata. Em resumo. Um importante ponto de apoio e abastecimento para os navegantes. Tanto assim que a ilha de Santa Catarina e ilhas menores como Anhatomerim e Ratones ficaram sob a possessão espanhola até o Tratado de Santo Ildefonso em 1777, quando do novo acerto de fronteiras, Portugal abriu mão da Província Cisplatina em troca de territórios mais ao sul, entre eles a ilha de Santa Catarina e as demais na sua adjacência. Percebe-se pois, que, para mim pelo menos não foi um simples piquenique num lugar muito peculiar, mas novamente um aprendizado fora da parafernália e do ritual asséptico de uma sala de aula ou de um auditório com os salamaleques rituais. Só sei que embarcamos no cais de Florianópolis num barco da Marinha e, costeando a ilha dos Ratones, desembarcamos na praia rasa da ilha do Inhatomerim. Fomos recebidos por cardumes de papa-terra antes de subir os poucos metros do topo da pequena ilha. Visitamos a casa do administrador, os alojamentos da guarnição, o recinto dos fuzilamentos do tempo de Peixoto, os canhões inúteis, dos quais afirma-se que nunca dispararam um tiro. Sempre gostei do formato de excursões em que o lazer vinha acompanhado de uma dose mais ou menos concentrada de aprendizagem longe de uma ambiente formal com seus rituais prescritos por regulamentos convencionados pelas respetivas instituições. Em outras palavras: combinar o agradável, o lazer, ao enriquecimento do conhecimento. Pela meia tarde o barco da Marinha nos deixou no ancoradouro de Florianópolis e de ônibus retornamos à casa de retiros do Morro das Pedras.

Seguiram-se mais alguns dias tranquilos para depois voltarmos ao nosso QG no Cristo Rei em São Leopoldo. Na segunda metade do janeiro o Pe. Gesa Kovecses, húngaro expulso do país pela ocupação comunista russa, nos pregou um inesquecível retiro de 8 dias. Num português pitoresco, porém, de um conteúdo doutrinário e humano profundo, sem apelar a conceitos ascéticos e místicos, muito menos a práticas discutíveis, que repercutiram e repercutem ainda hoje na minha postura perante a fé e a moral. Ocupei o restante do tempo disponível até começos de março com a preparação das preleções na universidade aperfeiçoando a “sebenta”, aprofundando os temas a serem abordados nas aulas, mapas ilustrativos da migração dos povos, etc. Passava dias inteiros ou no matinho na encosta à direita da subida da Avenida da Unisinos, no taquaral onde fica hoje a rodoviária da universidade ou na casinha da apicultura, todas já descritos mais acima.

No primeiro semestre as preleções correram dentro do normal e sem maiores contratempos. As terças feiras de tarde foram reservadas para o curso de Geografia com somente seis alunos; nas quartas feiras de manhã para os alunos de História; nas quartas feiras de tarde preleção para os alunos do curso de Ciências Sociais. Também na programação das preleções de Teologia não me lembro de algum evento que mereça destaque.

Da Enxada à Cátedra [ 53 ]

Passo agora a registrar como foi a minha estreia como docente na UFRGS. Na Unisinos comecei a lecionar já em 1959 a disciplina de Geologia no Curso de História Natural. Só para lembrar. Em 1960 na estrutura acadêmica das universidades vigorava ainda o regime de “cátedra” regida pelos catedráticos ocupando o topo da carreira docente. A eles cabia a responsabilidade e a autoridade para propor e impor o currículo da disciplina pela qual respondia. A eles cabia também o privilégio de indicar os assistentes. Foi nesse formato da constituição do corpo docente que o catedrático de Etnografia e Etnologia, por sinal meu irmão Pe. Balduino, me convidou para ser seu assistente. A primeira impressão que se pode ter é que se tratava de um decisão próxima ao nepotismo. Não o foi por uma razão, melhor por várias razões. A etnografia e a etnologia demandavam como ponto de partida, como fundamento uma “introdução ao estudo e conhecimento do homem”. No programa da disciplinam constavam a dimensão do homem como espécie biológica como as demais espécies vivas; a morfologia e a fisiologia humana; a inserção simbiótica do homem no seu meio ambiente geográfico; as raças humanas e sua dispersão pelos continentes e ilhas do planeta, enfim os conhecimentos sobre a espécie humana então reunidos sob o conceito de Antropologia Física. Já que para dar conta desse perfil de programação exigiam-se conhecimentos de biologia, zoologia, botânica, geologia, geografia, genética, em resumo de Ciências Naturais e eu conquistara o bacharelado nessa área em 1959, fui convidado para assumir a Antropologia Física a partir de março de 1960.

Na liturgia do ingresso e progressão como docente nas universidades federais da época constava uma ano de experiência que conferia o título de “instrutor de ensino superior”. Ao término desse período o “instrutor” era submetido ao um exame, melhor concurso e, se aprovado, efetivado como professor instrutor, depois assistente, com a sanção do ministério da educação e da chancela do Presidente da República e enquadrado como funcionário federal nos termos do estatuto do servidor público. Mais adiante irei detalhar esse ritual.

Acontece que há sessenta anos passados a literatura cobrindo as diversas dimensões contempladas pelo conceito de Antropologia Física era quase exclusivamente de procedência alemã, francesa ou inglesa. Foi essa a preocupação que me levou a elaborar um texto básico, em outras palavras, uma “Introdução ao Estudo do Homem”, como subsídio para os alunos. Guardo como uma relíquia um exemplar do original desse manual, na época carinhosamente conhecido como “sebenta” no jargão da universidade pois, passava de mão em mão por gerações. Nos meus planos está uma revisão daquele texto, atualizá-lo e publicá-lo no formato de um livro.

A primeira terça-feira de tarde de março de 1960 marcou o momento da ocasião inesquecível de retornar à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, não como aluno, mas como professor. Submeti-me naquela tarde ao exame médico e acertei na secretaria da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, comandada com competência, eficiência e visível orgulho do cargo pelo qual respondia, a Sra. Mafalda, os detalhes da rotina burocrática. Ela entregou-me o caderno contendo os conteúdos a serem ministrados e o registro dos tópicos ministrados em cada semana. Tudo acertado minha primeira preleção aconteceria na manhã seguinte. Pernoitei no Colégio Anchieta, na época ainda na rua Duque de Caxias. Lá recebi as últimas instruções e recomendações do Pe. Balduino, meu catedrático na universidade. Na manhã seguinte caminhei até o prédio da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras na rua Paulo Gama com a esquina Osvaldo Aranha. É bom lembrar que estamos no ano de 1960, portanto, antes de começar o Concílio Vaticano II. Apresentei-me para dar a primeira aula na universidade no traje clerical da época: batina preta e calçados combinando. Hoje, 60 anos passados, alguém circulando nas ruas de Porto Alegre e, mais ainda, nas dependências da universidade assustaria a qualquer um como um personagem saído dum baú guardado em algum museu. Na época ninguém estranhava pois, todos os religiosos circulavam nos mais diversos ambientes, também públicos, trajando os hábitos das respetivas ordens e congregações. Os jesuítas, ordem a quem pertencia naquele momento, vestiam uma batina preta, sapatos pretos. Não costumava usar o chapéu clerical que fazia parte da indumentária. Com esse traje apresentei-me na manhã da primeira quarta-feira de março de 1960 na sala de aula para a estreia de uma jornada acadêmica que se estenderia por 30 anos ininterruptos. Deparei-me com uma turma de cerca de 20 alunos, a maioria alunas. Fui recebido sem estranheza pois, para os alunos procedentes das confissões religiosas diversas, inclusive ateus e marxistas, sabiam que eu era jesuíta e, por isso, era óbvio que me apresentaria com a indumentária clerical usual e obrigatória e familiar a todos. Pelo que me lembro não percebi nenhuma estranheza, menos ainda manifestações de hostilidade da parte dos alunos. Na minha frente, na primeira fila sentavam três alunos, o Deodoro Martins, o Werner Altmann e Arno Kern que, anos depois, seriam meus colegas de docência na UFRGS e na Unisinos. No final daquela primeira aula entreguei aos alunos uma cópia datilografada do texto, a “sebenta” de 113 páginas que elaborara para que eles fizessem as cópias que fossem necessárias para subsidiar as preleções. Guardo até hoje o original todo a amarelecido como uma relíquia sempre bem à vista na minha modesta biblioteca, lembrando-me cada vez que entre no meu escritório, daquela memorável primeira quarta-feira de março de 1960. Como já lembrei pretendo dar uma revisada na ortografia e na estrutura técnica daquele texto, sem tirar nem acrescentar nada e, quem sabe publicá-lo para que os interessados pela Antropologia do terceiro milênio, possam fazer uma ideia dos conteúdos oferecidos aos estudantes na disciplina sob minha responsabilidade que, torno a repetir, pelo conteúdo programático, merece o título de “Uma Introdução ao Estudo do Homem”.Resumo em grandes linhas o conteúdo apresentado aos alunos sob o guarda-chuva desse conceito. Depois de uma contextualização introdutória com destaque para a conceituação histórica, sua evolução acompanhando a compreensão do homem, da humanidade sugerido pelo o avanço das Ciências Naturais, das Ciências Humanas, das Letras e Artes, da Filosofia, inclusive da Teologia. O primeiro capítulo foi reservado para a “Biologia Humana”, isto é, o homem ontologicamente ou existencialmente inserido na natureza, dela fazendo parte e sujeito às suas leis como qualquer outra espécie de seres vivos. Num segundo momento entram os fundamentos da genética: a base biológica da hereditariedade, a estrutura do DNA e sua dinâmica, sua importância na evolução dos seres vivos, as leis de Mendel, as mutações e suas repercussões negativas ou positivas sobre todas espécies vivas incluindo o homem, os grupos sanguíneos, caracteres físicos normais e patológicos de natureza hereditária e, por fim, a discussão sobre um tema sempre atual: a Eugenia pela manipulação genética com seu potencial positivo e negativo como instrumento de melhoria ou manipulação irresponsável do homem. O capítulo II, por assim dizer complementa e amplia o anterior, mas agora tendo com objeto exclusivamente o homem, com o título: “A Miscigenação Humana”. A temática foi subdividida nos seguintes subcapítulos: Primeiro. Os contatos humanos e seus mecanismos como: a migração dos campos para as cidades - a substituição por diferença e natalidade - áreas cultas – pontos de dispersão – colonialismo – migrações – vizinhança geográfica – povos nômades – povos de alta natalidade; Segundo. Comportamento quanto à miscigenação; Terceiro. Miscigenação e humanidade de hoje; Quarto. Exemplos de miscigenação; Quinto. Resultados da miscigenação. O capítulo terceiro: Adaptação e aclimatação do homem: A seleção natural – Teoria da evolução – o clima – umidade do ar – pressão atmosférica – composição química do ar – a irradiação do sol – altitude e latitude – os ventos – a carga elétrica – doenças equatoriais ou de regiões frias – a natureza do solo – mecanismos de adaptação. Capítulo quarto. As raças humanas. Alguns conceitos – Como surge uma raça – quando surgiram as raças humanas – características raciais - Classificações raciais: Lineu, Blumenbach, Deniker, Fritsch, Stratz, Montandon, Weinert, Fischer, Eikstedt, Bernatzik. Nas preleções adotei a classificação de Eickstedt, inclusive valendo-me de slides de personagens típicos de cada grupo maior.

A segunda parte da programação do semestre foi dedicada à história, características físicas, culturais e localização geográfica das raças humanas historicamente conhecidas. Adotando a terminologia de Eickstedt, comecei com os Európidos: a) O ambiente geográfico – b) Os európidos primitivos – c). Características gerais dos európidos; os Mongólidos: características gerais – as raças mongólidas – o ambiente geográfico – características gerais dos mongólidos; Os Négridos: a Pré-história – a Situação atual dos négridos africanos: os Etíopes e o Sahara – b) contatos e reação no Sudão – c) a fuga dos Coisânidos e a conquista da floresta – d) populações da floresta do Congo; os Sibíridos – a) os Sibíridos originais – b) os Sibíridos Túngidos; os Esquímidos: a) características – b). Cultura; Os Túngidas: a). Localização geográfica – b) Centro dinâmico – c) Expansão racial – d) migrações históricas – e) características; Os Sínidos_ a) localização geográfica – b) divisão – c) expansão – características – d) cultura – e) sociedade – d) organização política; O reino de Anam_ a) posição geográfica – b) habitantes – c) conquista - características – sociedade – cultura. A Coreia: a) país de transição – b) geografia – c) habitantes – d) características – e) história – f) língua – g) cultura; Japão: a) geografia – b) origem e divisão dos habitantes – c) características – d) vestuário, habitação, alimentação, agricultura, pesca – e) cultura, sociedade, religião; Paleomomgólidos: a) localização geográfica – b) expansão – c) características; Indiândidos: a) origem – b) divisão – c) localização geográfica – d) cultura.

Naquele remoto ano de 1960 os recursos didáticos não passavam do quadro negro, de mapas convencionais, mapas desenhados por mim para ilustrar tópicos específicos, como por ex., a dispersão histórica dos povos africanos, a dinâmica da ocupação do oriente remoto, etc., projetor de slides, um crânio humano com os instrumentos de medição para determinar as características cefálicas, fundamentais para identificar e diferenciar as raças. Para não perder o fio condutor das preleções organizei o esquema datilografado em cartões 15x28 e na medida em que a preleção progredia escrevia o esquema no quadro negro. Guardo até hoje parte desses cartões como relíquia junto com o manuscrito original da “sebenta”.

Da Enxada à Cátedra [ 52 ]

Docente na UFRGS e Estudante de Teologia

Observação introdutória

O ano de 1960 marcou o começo de uma nova fase importante na minha vida por dois motivos. Em primeiro lugar vencera mais uma etapa na minha formação como jesuíta, isto é, três anos de prática do magistério no Colégio Anchieta e, paralelamente, conquistara o bacharelado em História Natural e Geologia além de dar partida para uma trajetória de 50 anos como professor universitário e pesquisador. Esperava-me uma década em extremo movimentada, tanto no plano acadêmico quanto e, de modo especial, no plano existencial na condição de religioso jesuíta. Resumo o desafio a enfrentar na compatibilização entre entrar com pé direito na carreira de docente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, paralelamente, levar a sério a licenciatura em Teologia que demandaria 4 anos – 1960-1963. Não podia permitir-me que um dos dois compromissos prejudicasse o resultado do outro. Felizmente na época facultava-se ao docente na universidade federal optar pelo regime de 12, 20 ou 40 hora semanais. Decidi-me pelo de 12 horas, o que na prática significava arcar com 12 horas de aula em 3 turnos de 4 horas. Na distribuição dos dias e horários de aula coube-me a terça-feira de tarde e quarta de manhã e tarde. Como na Teologia não costumava ter preleções no turno da tarde, nem nas quartas de manhã e tarde, a assistência às preleções de Teologia não foi prejudicada. Mais acima já lembrei que me saíra muito bem no exame final de Filosofia, entrei no nível da “Teologia Maior”. Este conceito também já foi devidamente explicado. Decidi levar os dois compromissos no nível mais alto possível. Não resta dúvida que a condição de professor universitário federal e, ao mesmo tempo estudante de Teologia, configurava uma situação um tanto inusitada para aquele remoto ano de 1960. O Pe. Ignacio Schmitz encontrava-se na mesma situação. O Cristo Rei em São Leopoldo contava com mais de 100 estudantes de teologia procedentes de dentro e de fora o Brasil. Nós dois éramos vistos pela grande maioria dos colegas teólogos procedentes de todo o Brasil e de outros países com um ciúme nem sempre bem disfarçado por nossos colegas de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Nordeste, Canadá Francês, da Espanha, da Itália, da Bélgica e outros. Na imaginário de muitos deles o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e o Paraná não passavam de uma região de “colonos grossos”, descendentes de imigrantes alemães, italianos, poloneses, suíços, austríacos, teuto-russos e outros procedentes da Europa Central e do norte da Itália. Não cabia na cabeça de muitos que exatamente dois representantes desse meio, e mais estranho ainda filhos de colonos alemães, lecionando numa das melhores universidades federais do Brasil. E para completar o rescaldo da Segunda Guerra Mundial somado ao da Campanha de Nacionalização fazia-se ainda mais presente do que se possa imaginar. A suspeita de simpatia para com o nazismo não fora inteiramente superada e de quando em vez vinha à tona. Para não dar a impressão que estou exagerando cito apenas um exemplo a que já me referi mais acima. Fazia parte do acolhimento de uma nova turma na Teologia, organizar uma confraternização com os veteranos. Costumava-se colocar as fotos e o currículo dos novos teólogos num painel na entrada da sala de recreio. Fui surpreendido com uma suástica acompanhando minha foto como já lembrei mais acima. Entendi o recado. Não fiz nenhum comentário mas levei para o resto da vida a sensação de ter sido marcado com ferro em brasa, com um selo que me degradava a um cidadão de segunda categoria e um traidor em potencial e logo por coirmãos de ordem religiosa. Mau gosto ou safadeza, tanto faz. Pensei seriamente em não participar do churrasco de confraternização pois, senti-me posto à margem e na condição de poder contar com uma sincera amizade de apenas um grupo reduzido de teólogos. Observações com tempero de maldade como, “lá vem o catedrático” ou similares fizeram com que resolvesse levar uma vida talvez discreta demais voltada sobre mim mesmo e minhas obrigações como docente e, ao mesmo tempo, aluno de teologia. Decidi dar de mim o melhor para mergulhar nos meandros da teologia e, ao mesmo tempo, satisfazer ao máximo as exigências para firmar-me e aperfeiçoar-me como docente na universidade. Graças a Deus nenhum dos meus professores de Teologia demonstrou alguma reserva por levar uma vida paralela como professor. Entre eles o decano Pe. Godofredo Kessler apoiava-me abertamente.

Estudante de Teologia e Docente na UFRGS – 1960-1963.

As duas atividades iniciaram simultaneamente na primeira semana de março de 1960. As preleções de Teologia aconteciam na parte da manhã proferidas em latim, nas segundas, terças, quintas e sextas feiras. A programação do período da tarde vinha a ser de livre iniciativa dos estudantes, em princípio reservado para o aprofundamento dos conteúdos das preleções e estudos complementares. Como a programação estava entregue à livre escolha e não havendo obrigação de permanecer no quarto ou sala destinada par tais estudos, nem fiscalização, a escolha ficava ao gosto de cada um, tanto no que se referia ao conteúdo quanto ao lugar ou lugares escolhidos. Eu, da minha parte, passava a maioria das tardes isolado em três ambientes, dependendo da estação do ano ou do bom ou mau tempo. Nos dias chuvosos ou frios recolhia- me na casa das abelhas. Nos dias de tempo bom e temperatura agradável a preferência caía sobre o matinho de grandes árvores nativas na meia encosta, à direita da avenida Unisinos, subindo a partir da estação do trem, também já lembrado mais acima. Um terceiro ambiente, também em meio à natureza, igualmente já descrito, hoje se encontra sepultado debaixo da avenida Unisinos na altura da estação de ônibus da universidade. Aqueles lugares, espaços e caminhos ficaram gravados na minha memória como cenário em que tentei familiariza-me para valer, com os grandes temas e debates teológicos, com os formuladores das grandes vertentes daquele campo de conhecimento em pauta na época: São Tomás de Aquino, Suarez, Santo Agostinho, Karl Rahner e muitos outros. A Teologia da Libertação ainda não constava na pauta da programação do currículo pois, lembro que o vendaval do Concílio Vaticano II que fez tremer os pilares da Igreja, estava recém começando a apontar a direção em que os ventos da Igreja soprariam nas décadas seguintes. Paralelamente aos conteúdos centrados na doutrina propriamente dita previam-se no currículo preleções de Moral, Exegese, Direito Canônico e, o que me interessava de modo especial, a História da Igreja, com ênfase nos primeiros 4 séculos. Como se pode deduzir comecei e conclui os quatro anos da minha licenciatura em Teologia, ainda no formato tradicional, no qual o latim vinha a ser a língua oficial obrigatória nas preleções e demais atividades acadêmicas que faziam parte da base doutrinária, moral, ascética e disciplinar, consolidadas no Concílio de Trento e no Concílio Vaticano I. Programações complementares de natureza múltipla como cinema, literatura, espiritismo, psicologia, etnografia e etnologia além de outros mais, costumavam ser ministrados em português.

No final do primeiro ano submeti-me como os demais alunos da “Teologia Maior” a um rigoroso e exaustivo exame oral em latim, versando sobre as disciplinas tronco a que me referi há pouco, perante uma comissão dos professores titulares das mesmas. O resultado foi mais que satisfatório de maneira que fui aprovado para continuar em 1961 na nível da “Teologia Maior”. Um bom número dos meus colegas baixara para a “Teologia Menor”, não sem afetar a convivência com alguns deles. As razões têm muito a ver com o fato de lecionar numa universidade federal, fato a que já me referi mais acima. Porém, entrar mais a fundo nos meandros da situação criada por dividir o meu tempo entre a formação teológica e a de docente numa universidade federal, não acrescentaria muito às reflexões sobre a minha caminhada da “enxada à cátedra”.

Da Enxada à Cátedra [ 51 ]

Como já lembrei mais acima o Pe. Henrique Pauquet, encarregado da assistência aos alunos do Anchieta, mandara construir uma Casa da Juventude no Morro do Sabiá no sul de Porto Alegre e uma segunda em Vila Oliva. A primeira destinava-se, como já anotei para alunos e professores do colégio passarem os fins de semana e feriados. As instalações da casa de Vila Oliva foram projetadas para oferecer uma ambiente sadio de férias a uma turma em janeiro e outra em fevereiro. Coube-me a mim acompanhar o grupo de janeiro de 1959 sob o comando do Pe. Armando Marocco e do Pe. Pauquet. O local oferecia múltiplas oportunidades para os rapazes da cidade grande gozarem de um mês em contato íntimo e permanente com a natureza. A minha tarefa consistia em acompanhá-los nessas mais variadas experiências. Às diversas modalidades de diversões diárias como natação na piscina, futebol de campo e de salão, basquete, tênis de mesa, outras programações, normalmente para grupos pequenos, complementavam o diário dessas férias. Foi essa parte que me coube acompanhar e cuidar para não acontecerem imprevistos comuns com rapazes não familiarizados com uma ambiente tão diferente do dia a dia que viviam na cidade. Um destino obrigatório vinha a ser a fábrica de celulose localizada poucos quilômetros de distância. Estava instalada no fundo de um vale na margem de um arroio de bom tamanho que descia do campo. Se não me falha a memória a trilha da descida consistia de em torno de 300 degraus de madeira. Descer e, principalmente, subir essa escada tirava o fôlego de qualquer atleta. A paisagem em volta daquela fábrica não podia ser mais exuberante e rica. A mata virgem cobria aquela encosta como na borda do campo em toda aquela região onde o rio Caí tem suas nascentes. Acontece, entretanto, que aquela usina de celulose devorara o que de mais imponente e mais simbólico aquele planalto emblemático oferecia: as araucárias. Cá e lá numa canhada inacessível podia-se admirar ainda um ou outro exemplar de maior porte. No demais só sobrevivera o mato branco.

Numa outra ocasião alguns rapazes sugeriram uma cavalgada até a localidade do “Bem-te-vi” alguns quilômetros distante. O Pe. Marocco encarregou-me de acompanhá-los. Vizinhos e amigos da casa de férias emprestaram os cavalos. No dia marcado pegamos cedo a estrada e, munidos com os comes e bebes indispensáveis para o dia, troteamos embalados pela brisa do campo coberto de orvalho, as gotas refletindo os primeiros raios do sol da manhã, parecendo cristais semeados no meio do capim. Em alguns pontos mais elevados no campo apareciam no barranco da estrada de chão, logo abaixo das raízes do capim, belos exemplares de ametistas. Até hoje arrependo-me de não ter desmontado para recolher alguns exemplares e guardá-los como lembrança. Resumindo. Nunca vou esquecer aquela cavalgada em companhia daqueles rapazes, filhos de famílias de classe média alta de Porto Alegre, despojados como se fossem peões de fazenda, longe da zoeira da cidade grande, enchendo os pulmões com o ar perfumado do planalto em vez da atmosfera poluída pelo odor do asfalto. Sabendo que eu estudava História Natural na universidade aproveitaram para se informar sobre as realidades naturais que compunham aquele cenário em estado ainda próximo do original. A um interessava a vegetação das manchas e capões de mato, a outro os animais silvestres da região, a outro ainda a história da origem e evolução das fazendas de criação de gado, a outro ainda a história geomorfológica daquele planalto. Chegados no Bem-te-vi acomodamo-nos na sombra de um belo capão, deixamos os cavalos pastar, almoçamos pão com linguiça regados com a água cristalina de um riacho rumorejando sobre seu leito de pedras. Em inúmeras ocasiões, ao repassar as muitas décadas da minha jornada, lembro-me daquela cavalgada e, sobretudo, daqueles rapazes cheios de sonhos. Não me lembro de mais tarde ter cruzado com algum deles assim como não guardei o nome de nenhum. De qualquer maneira todos eles vinham munidos com um potencial humano respeitável para fazê-los exímios em qualquer profissão, missão ou carreira que exigisse como pressuposto uma formação de nível superior somada a uma personalidade norteada por uma sólida consciência ética, cada vez mais rara nos dias de hoje.

Uma outra vivência marcante, agora em companhia do grupo todo de rapazes em férias, do Pe. Pauquet e Pe. Marocco, foi um acampamento na entrada de um pedaço de mata nativa à margem de um arroio, quase rio pulando de uma cascata de seus 10 metros perto do local. Passamos dois dias e uma noite acampados neste pedaço de paraíso. Até uma tatu assustado com a invasão do seu território, cruzou pelo acampamento e por pouco não encontrou sua toca que ficava sob as raízes de uma árvore secular logo ao lado do acampamento. Pouco aproveitei daquele acampamento. Durante a noite comecei a sentir febre, acompanhada de todos os incômodos que a costumam acompanhar: dor nas juntas, mal estar e por aí vai. O Pe. Marocco levou-me até a nossa sede na Casa da Juventude. A febre não cedeu. Pelo contrário subiu até 39o. Na outra manhã o mesmo o Pe. Maroco levou-me até o hospital “dal Mesi” em Caxias do Sul. O diagnóstico acusou uma nefrite aguda. Resultado. Fiquei internado durante uma semana no hospital. Depois da alta no hospital o Pe. Marocco foi buscar-me e passei os poucos dias que sobravam da temporada na casa de Vila Oliva. Neste meio tempo fui protagonista de uma episódio que ilustra bem a distância que o morar numa grande cidade significa em termos de distanciamento, senão rompimento das raízes do homem com seu chão. O abastecimento da piscina da Casa da Juventude vinha de um córrego de bom volume que descia da encosta. Certo dia, com a piscina transbordando, chamei dois rapazes e pedi que fossem fechar a torneira do córrego um pouco encosta acima no meio do mato. Seguiram o curso da água e embrenharam-se no mato. Depois de uma boa demora voltaram para comunicar que não tinha localizado a torneira. Ficaram desapontados ao se darem conta da obviedade de que não havia torneira alguma para interromper o fluxo de um córrego no meio do mato.

Com o término do mês de janeiro encerrou também o período de férias na Cassa da Juventude. Reunimos os nossos pertences e fomos pegar o trem em Caxias do Sul e voltar a Porto Alegre. Esqueci-me de lembrar que também a viagem de ida para o começo das férias foi de trem de Porto Alegre a Caxias do Sul e de lá na carroceria aberta de um caminhão de carga até Vila Oliva, passando por Ana Rech e Fazenda Souza.

Para o mês de fevereiro o Pe. Balduino convidou-me para passar uma semana acampado no Itaimbezinho na companhia do Pe. Luiz Sehnem e do meu colega Reinholdo Ullmann. Como no ano anterior viajamos no jeep do Balduino. Acampamos numa serraria desativada bem próxima ao canion, um pouco adiante da atual sede do parque. Desta vez não programamos nenhuma descida. Exploramos as redondezas de ambas as margens, evitando a aproximação com as serrarias pois, elas tinham sido intimadas a encerrar as atividades devido ao decreto de utilidade pública daquela área e a consequente proibição de continuar derrubando araucárias. Eles sabiam muito bem que o empenho do Pe. Balduino junto ao governo do Estado fora o responsável decisivo pela desapropriação. Portanto, a prudência aconselhava manter distância dos madeireiros em fase de encerramento das atividades na área do futuro parque. O Ullmann e eu nos revezávamos, ora acompanhando o Pe. Sehnem ou o Pe. Balduino nas suas incursões de coleta de musgos o primeiro e de fanerógamos o segundo. Passamos dias tranquilos, sem chuva e sem qualquer outro incidente de maior importância. Terminada a temporada de aproximadamente 10 dias retornamos a Porto Alegre em meados de fevereiro. Antes do começo do semestre letivo em março, aproveitei junto com outros professores do Anchieta para preparar-me para as aulas no Colégio e o começo do último ano do bacharelado em História Natural na UFRGS, na casa de retiros da Vila Manresa no morro da Glória.

Todo o ano de 1959 transcorreu sem maiores tropeços nem na atividade docente no Colégio Anchieta, nem como estudante de História Natural na Universidade Federal. Em fins de novembro submeti-me com êxito aos exames finais na Faculdade e a solenidade da formatura como bacharel em História Natural ocorreu no começo de dezembro no salão de atos da Reitoria já lembrada mais acima.

Não posso deixar branco em branco uma série de tarefas paralelas à docência no Colégio Anchieta e à frequência das preleções no curso de História Natural na universidade. Em 1957 o Pe. Urbano Thiesen diretor da Faculdade de Filosofia de São Leopoldo, acrescida do curso de Letras Clássicas e Pedagogia, até então privativos a membros da Ordem, anunciou numa sessão solene da câmara de vereadores de São Leopoldo, a decisão tomada pelos superiores maiores dos jesuítas, de abrir ao público leigo o acesso à faculdade e criar novos cursos e faculdades. A programação previa a implantação os cursos de Ciências Sociais e História Natural em 1958 e em 1959 a Faculdade de Ciências Econômicas. Acontece que, como já lembrei mais acima, o embrião da História Natural já fora criado pelo Pe. Hauser e por mim ainda no Cristo Rei em 1955. Bastava dar-lhe o formato de acordo com a legislação então em vigor, ampliar suas instalações e equipamentos, transferi-los para um dos prédios do antigo Seminário Central, vagos pela transferência dos seminaristas para Viamão e sendo preparados para receber a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras e novas faculdades que deveriam ser criadas sucessivamente. O Pe. Thiesen assumiu a coordenação do conjunto de providências legais e burocráticas no nível acadêmico. Em resumo tratava-se de estruturar os cursos novos atendendo ao figurino exigido pelo Ministério da Educação e reunir um corpo docente de alto nível. Na minha condição de aluno de História Natural na UFRGS, além de professor de Ciências no Colégio Anchieta, mantinha um bom e amplo relacionamento com professores e especialistas nos diversos campos dessa área. Foi por isso que o Pe. Thiesen pediu a minha colaboração no projeto físico da instalação dos laboratórios na nova sede do curso e, o que foi mais importante, sugerir nomes capacitados para serem convidados e comporem o corpo docente e orientar a pesquisa nas diversas especialidades. A responsabilidade pela área da botânica coube ou Pe. Luiz Sehnem com o nome consolidado como especialista em musgos. Como zoólogo especializado em serpentes entrou o Pe. Ernesto Mauermann. Para as demais áreas foi preciso recorrer a docentes e pesquisadores leigos. Foi dessa tarefa que o Pe. Thiesen me encarregou. Falei com meu professor de Mineralogia da UFRGS, prof. Ely Denhardt que aceitou com visível prazer o convite. Outro prof. meu, Eugênio Gruman e prof. Paulo Lacerda e Ruben G. Dantas aceitaram o convite. Com o Pe. Hauser como coordenador onipresente e incansável, este foi o corpo docente fundador do Curso de História Natural da Unisinos. Já em 1959 comecei a lecionar Geologia.

A pedido do Pe. Thiesen colaborei com a estruturação acadêmica e recrutamento do corpo docente e implantação do curso de Ciências sociais, também em 1958.

Em 1959, ainda sob a responsabilidade do Pe. Thiesen com a assessória e colaboração do Dr. Armando Câmara foi implantada a faculdade de Ciências Econômicas. A minha participação do projeto resumiu-se em localizar e convidar o prof. Alexandre Vertes, imigrante húngaro com doutorado em Budapest. Localizei-o na Avenida Otávio Rocha como chefe do escritório de representação dos “colchões Epeda”. Aceitou o convite na hora. Naquele primeiro encontro nasceu uma grande amizade entre mim, um jovem estudante e estreando como docente no ensino superior e aquele senhor de mais de 50 anos, veterano da Segunda Guerra Mundial, integrante das tropas alemãs no famoso cerco frustrado a Stalingrado.

Para maiores detalhes sobre esse lapso de tempo da História da sucessiva consolidação da Unisinos na segunda metade da década de 1950, recomendo meu livro sobre o Projeto Educacional dos Jesuítas no Sul do Brasil, editado em 2009 pela editora daquela universidade com o título “Um sonho e uma Realidade”

Da Enxada à Cátedra [ 50 ]

O segundo semestre escolar de 1958 transcorreu sem grandes novidades, além do churrasco que acabei de mencionar. Em compensação as férias que seguiram a partir da metade de dezembro de 1958 e janeiro e fevereiro de 1959, foram bem movimentadas. Ainda antes do Natal o Pe. Balduino convidou-me para acompanhá-lo numa viagem no seu jeep” até Itapiranga. Fora convidado pelo Pe. Eugênio Rohr recém ordenado sacerdote para proferir o sermão festivo na sua primeira missa solene celebrada na comunidade natal na Linha Fortaleza. Aquela viagem mais de 400 quilômetros significava na época uma autêntica aventura. O asfalto terminava em Montenegro. De lá em diante só chão batido. Naquele remoto 1958 a Br. 386 – estrada da produção – constava apenas nas pranchetas dos engenheiros rodoviários, se é que constava. O trajeto até Lajeado seguia mais ou menos o traçado da estrada de hoje. Logo após a cidade de Lajeado dobrava-se para direita em direção a Arroio do Meio. De Arroio do Meio seguia-se até Encantado para depois subir a encosta do planalto pela estrada velha, uma sequência de curvas fechadas. Passando por Arvorezinha terminava-se finalmente em Soledade. Em vez de seguir para Carazinho dobramos para esquerda passando por Espumoso, Selbach, Tapera, Ibirubá até Ijui, seguindo depois até Palmeira das Missões, Frederico Weslphalen e Seberi para depois descer ao vale do Uruguai, passar por Pinheirinho até alcançar a barca que nos deixou em Sede Capela no lado catarinense. Hospedamo-nos no Seminário São Pedro Canísio logo adiante. Chegamos exaustos ao destino pelos três motivos combinados: A distância percorrida, mais de 400 quilômetros; as estradas de chão batido; o molejo do jeep projetado para enfrentar as vicissitudes de uma guerra. Na manhã seguinte vencemos os poucos quilômetros até a capela da Linha Fortaleza. Como costumava ser na época, a primeira missa solene do Pe. Eugênio Rohr foi um acontecimento que envolveu toda a comunidade local e em parte as comunidades vizinhas. Como sempre o Pe. Balduino esmerou- se na escolha do conteúdo e da linguagem que caía como feita sob medida nos ouvidos daqueles colonos, muitos deles ainda pioneiros desbravadores daquela fronteira de colonização, um povo que ele conhecia, compreendia e amava como nenhum outro.

Depois da cerimônia da missa solene os convidados da família do néo-sacerdote, entre eles obviamente o Pe. Balduino, encontraram-se no salão de festas da comunidade para o almoço. Eu reuni-me com meu irmão o Fridolino e filhos que participaram da solenidade vindos de São João poucos quilômetros mais adiante. Compramos um espeto de churrasco e uma bebida e acomodamo-nos na sombra de uma árvore para o almoço temperado com um bom papo como mandava o costume em tais ocasiões. À meia tarde retornamos a nossa a base no Seminário para pernoitar. Na manhã seguinte, depois da missa e do café percorremos os em torno de 15 quilômetros para passar o dia com a família do nosso irmão Fridolino em São João. Depois de 10 anos o assunto do reencontro girou em torno de novidades de ambos os lados, recordações da família acompanhadas de sonoras risadas quando o assunto o estimulava. No fim da tarde voltamos para o Seminário de Capela, para no dia seguinte visitarmos uma sobrinha que morava na Linha Santo Antônio, então fronteira de colonização. O marido, o Emílio Schneider e a Agnes moravam numa dessas típicas e precárias casas de madeira dos pioneiros da mata virgem, em meio a uma clareira rodeada de floresta fechada. Quase 10 anos antes, em 1949, encontrara o Fridolino praticamente na mesma situação quando como um dos pioneiros morava na mesma precariedade, nos fundos de São João do Oeste. No fim da tarde voltamos para o Seminário em Capela e na manhã seguinte carregamos os nossos pertences no jeep para enfrentar de novo os 400 quilômetros de chão batido de volta a Porto Alegre. A nossa sorte foi que a chuva não nos atrapalhou nem na ida nem na volta. Desta vez fizemos o trajeto em dois dias. Pernoitamos em Ibirubá na casa do pároco amigo do Pe. Balduino. Seu sobrenome Himmler” talvez cause surpresa, mas não tem nada a ver com o todo poderoso ministro de Hitler. Pelo meio da tarde do dia seguinte estacionamos o jeep no nosso “quartel general”, no Colégio Anchieta na rua Duque de Caxias. Essa viagem em companhia do meu irmão Balduino valeu para mim como uma experiência que não tem preço. Conversamos como irmãos e refletimos como intelectuais e cientistas sobre os mais diversos temas. Entre eles os desafios existenciais que os colonos descendentes dos imigrantes alemães enfrentavam em plena fase de desenraizamento entre o que foram como etnia e o inevitável enraizamento como cidadãos plenos e integrados na nacionalidade brasileira. Outro assunto que ocupou uma boa parte da nossa viagem relacionou- se com meu futuro como cientista. Ao me decidir pelo curso de Historia Natural a motivação veio da genética. Certa ocasião ele mesmo me sugeriu que me especializasse nessa área pioneira. Abandonei a ideia porque meus professores de genética a transformaram num cavalo de batalha para defender a visão materialista de Haekel, Julião Huxley e outros, numa época em que essa especialidade nem sequer tinha seus fundamentos científicos e metodológicos devidamente consolidados, fato que aconteceria somente com as conclusões de Dobizhansky na década de 1960 e, mais tarde com mapeamento do código genético em começos do terceiro milênio sob o comando de Francis Collins. Depois dessa virada comecei a flertar com a geologia ao ponto de o flerte se transformar em paixão especialmente com o convívio próximo com o prof. americano Patrik Delaney como já lembrei mais acima. Na verdade eu me interessava pelas Ciências Naturais, pela História Natural e o homem fazendo parte dela como uma grande síntese. Não me interessava em ser um especialista em serpentes, fanerógamos, fungos ou coisa que valha. Interessava-me o todo, o significado, a síntese e neste contexto o homem. Dessas conversas, balançando e pulando naquele jeep, sobra da segunda guerra mundial, desconfio que no Balduino catedrático de Etnografia e Etnologia da UFRGS, amadureceu a decisão de convidar-me para ser seu assistente e ministrar a disciplina de Antropologia Física, na verdade uma Introdução ao Estudo do Homem. Mais abaixo pretendo dar mais detalhes sobre essa disciplina.

Da Enxada à Cátedra [ 49 ]

Depois disso concluo as recordações que achei dignas de nota daqueles dias memoráveis, para não dizer homéricos e, por isso mesmo, épicos que tive a oportunidade de compartilhar com meu saudoso irmão, idealizador do Parque dos Aparados da Serra e com o Alcides Giehl, também “in memoriam”, meu amigo de muitos anos e parceiro inseparável e leal na montagem do projeto da futura Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Depois do retorno ao Colégio Anchieta foi a vez de começar a preparar as aulas de Ciências para a 3a série do ginásio, as de História Natural no Clássico e o começo do 1o semestre do segundo ano de História Natural e Geologia na UFRGS.

Sem grandes novidades ministrei minhas aulas de Ciências para a terceira série nas quartas feiras de manhã e as de História Natural para o Clássico nos sábados de manhã. Não tenho como registrar algum incidente maior. Os adolescentes da terceira série eram muito tranquilos e não me lembro de nenhum caso de indisciplina ou desrespeito de maior gravidade nem naquele ano de 1958, nem no de 1959. De vez em quando uma brincadeira até saborosa temperava a rotina das aulas. Lembro de uma que nunca vou esquecer. Num canto da sala de aula um esqueleto humano completo e de verdade, suspenso numa haste de metal, servia como peça didática prática para o estudo da estrutura óssea do corpo humano. Os alunos o apelidaram de “Alfredinho”. Certa manhã ao entrar na sala para dar minha aula, os alunos me receberam em pé como era praxe na época e o “Alfredino” no seu canto exibia um cigarro entre os dentes. É evidente que os meninos estavam curiosos por minha reação. Achei graça e fiz uma mesura ao esqueleto seguida de uma sonora gargalhada da turma.

Fazia parte da rotina diária das aulas em todas séries tanto do ginásio quanto do colégio uma breve oração seguida da chamada. Uma moldura inclinada sobre a mesa do professor continha o espelho da distribuição dos alunos com os respetivos nomes, (os lugares eram fixos), protegido com uma placa de vidro. Dessa forma o professor tinha um controle fácil sobre a movimentação durante a aula. Os recursos didáticos, além dos livros e cadernos não passavam naqueles idos de 1958 do quadro negro, mapas geográficos físicos e políticos do mundo, dos continentes e seus países, do Brasil também físico e político, um globo terrestre e, no caso das Ciências um esqueleto humano, mapas com a representação dos órgãos internos e a musculatura, mapas apresentando paisagens com plantas, animais e a respetiva geomorfologia, etc. De toda a parafernália de recursos didáticos de hoje facilitando sem dúvida a docência, como também criando problemas para o bom andamento das aulas, nem em sonho. A grande novidade da época foi a “régua de cálculo”. Não me atrevo dar uma ideia desse recurso porque fica difícil descrever de como era feito esse aparato e como se fazia uso dele. Permito-me apenas uma breve observação. Imagine- se alguém hoje uma sala de aula do ensino médio frequentado exclusivamente por meninos e rapazes, na qual os alunos recebem o professor em pé, fazem uma breve oração, respondem à chamada e ocupam um lugar fixo, são submetidos a sabatinas mensais, um exame no fim do primeiro semestre e outro no fim do ano letivo incluindo todo conteúdo ensinado durante o ano todo.

Nos sábados à tarde e domingos costumávamos passar na xácara do Colégio Anchieta no alto do morro da Glória ou na Casa da Juventude no morro do Sabiá em Ipanema. No Morro da Glória erguia-se uma ampla construção de dois andares e várias dezenas de quartos, cozinha e demais instalações dimensionadas para receber grupos de alunos do Anchieta e de outras procedências para fazerem Retiro. Por essa razão era conhecida como a “Casa de Retiros”. Localizada numa área de terra de seus 50 hectares, a metade mais ou menos coberta com mata nativa, uma boa parte do restante cultivada com hortaliças para abastecer o Colégio, pasto para vacas leiteiras e porcos, um córrego alimentando uma piscina de água cristalina cercada de mata nativa, ofereciam opções para desopilar as tensões acumulados durante uma semana de aulas e estudos. Um mirante erguido no ponto mais alto permitia uma visão sobre a maior parte de Porto Alegre, o Guaíba, os morros da outra margem e mais além a perder-se de vista em direção ao centro-sul do Estado. Esse cenário assumia as características do Belo Grandioso” e, por vezes, assustador” com o avanço das trovoadas de verão que se aproximavam a partir do sudoeste. Naquele recanto vivenciei momentos inesquecíveis em companhia dos meus colegas de estudo e parceiros de trabalho. Não tenho a mínima ideia no que deu esse paraíso na periferia de Porto Alegre com suas grandes figueiras, seus tarumãs gigantes, as cutias escondendo-se nas suas tocas, os pessegueiros vergados sob o peso dos frutos, a granja de vacas e porcos aos cuidados do irmão Kauling. Já se passaram mais de 60 anos desde que me hospedei pela última vez naquele local então ainda permeado pelo hálito e a sinfonia da natureza quase intocada.

O outro destino para relaxar os nervos nos fins da semana vinha a ser o “Morro do Sabiá”. Esse local foi planejado pelo Pe. Henrique Pauquet para oferecer um ambiente sadio e agradável para os alunos do Colégio Anchieta nos fins de semana. Punha à disposição alojamentos para passar a noite, galpão com churrasqueira, campos de exporte, um bom restaurante com uma sala de jogos de mesa anexo. Uma torre de observação permitia uma vista por sobre o Guaíba, os morros do outro lado e a planície a perder de vista para o sudoeste do estado. Passei inúmeros fins de semana naquele recanto com a água do Guaíba marulhando lá em baixo convidando para uma refrescada nas tardes de verão. Certa ocasião organizamos um mega churrasco para alunos do colégio e seus familiares. Em companhia do meu colega Alcides Giehl buscamos a carne diretamente no matadouro Link em Guaíba. Praticamente não dormimos nem no sábado nem no domingo para dar conta do volume do compromisso e satisfazer a extraordinária participação de alunos e familiares. Esse evento levou a um episódio engraçado na segunda-feira de manhã na aula de Biologia na faculdade. Não me aguentava de sono depois daquela jornada de dois dias sem dormir. Por cautela acomodei-me no fundo da sala e encostei a cabeça na parede. Não deu outra. Peguei no sono e por uma nada terminei no chão. Foi aquele reboliço entre meus colegas O prof. Mucillo, que era médico, percebeu logo o que estava acontecendo e mandou-me para casa descansar. Já se passaram mais de 60 anos que não visito o Morro do Sabiá e não tenho informações se ainda serve como local de lazer para os alunos do Colégio Anchieta, ou se também já foi vítima da expansão de Porto Alegre em direção ao sul, somado ao fato de o Colégio Anchieta ter aberto as portas para alunas e pelo rumo errático em que a educação em geral enveredou nas últimas décadas.

Da Enxada à Cátedra [ 48 ]

Reunimos os pertences necessários para acampar por duas ou três noites. Como era verão não levamos barracas mas redes de dormir, mantimentos, roupas e calçados adequados para a empreitada. Embarcamos tudo no jeep do Pe. Balduino e enfrentamos os perto de 170 quilômetros de estrada, a partir de Gravatai toda ela de chão batido. Chegamos no final da tarde no Taimbézinho. Na época não se passava pela cidade de Cambará pois, o acesso ao canion se dava por uma estrada de campo que entrava à direita uns 8 a 10 quilômetros antes da cidade. Armamos as rede de dormir e acomodamos os demais pertences do acampamento sob as árvores onde hoje se encontram as instalações da sede do parque. Tomamos um banho na água cristalina e fria do rio ao lado, preparamos a janta e depois de um bom papo deitamos nas redes, as árvores como cobertura e as estrelas espiando por entre as frestas das copas. O silêncio eloquente à beira do abismo, o rumor da cascata a ecoar há milhões de anos naquela solidão abençoada então em processo rápido de profanação pelos madeireiros, o cri-cri dos grilos, o grito de alguma coruja solitária, o latido roco de algum lobo guará, o ar puro e perfumado ventilando os pulmões, inspirou os sonhos daquela noite balançando nas redes de exploradores. Ao clarear do dia recolhemos as redes e as acomodamos no jeep junto com demais pertences. Tomamos o café da manhã e nos aprontamos para passar o dia dentro do canion, fazer observações e principalmente tirar fotografias. Nenhuma nuvem no céu e nenhuma neblina naquele abismo ainda escuro. Só para lembrar. Naqueles idos de 1958 não havia nenhuma restrição para descer e percorrer o leito do rio no fundo. Cada qual com sua mochila nas costas contendo as provisões para passar o dia, aparelhos fotográficos e uma corda para vencer uma altura de cerca de 30 metros logo na entrada e mais uma corda para alguma eventualidade. Contornamos a piscina formada pela cascata do rio que se precipita por várias dezenas de metros do alto do paredão da direita e outra menor da mesma altura do lado esquerdo. Parecia estarmos num outro mundo. Dos dois lados os paredões de basalto subiam a 700 metros para o alto separados por apenas 600 metros. Lá do fundo a ilusão ótica sugeria a convergência da borda do campo da direita com a borda de mata nativa da esquerda. Os escolhos das rochas entre os quais se esgueirava a água do rio vistos do alto pareciam cascalhos um pouco maiores, eram blocos por vezes de um ou dois metros de altura. Foi preciso contorná-los ou passar por cima. Pelo meio dia tínhamos percorrido os cerca de 4 quilômetros até o ponto em que o canion dobra para esquerda e também coincide com a maior altura dos paredões. Acomodamo-nos sob uma saliência da rocha para o almoço para depois de um breve descanso enfrentar a volta para o acampamento.

Acomodados ao pé de um paredão de basalto de cerca de 700 metros a prumo, o rio murmurando aos pés, as copas das araucárias lá em cima a poucos metros da margem do precipício, a vegetação arbórea agarrada nas frestas dos encontros dos diversos derrames de lava e as nuvens parecendo brancos veleiros de Deus navegando lá no alto, foi um local perfeito para deixar correr livre a imaginação, ainda mais para um apaixonado pela “nossa casa”. Lá estávamos acomodados tomando um frugal almoço, bem no formato de exploradores e atrás de nós subindo à prumo um paredão de basalto moldado há 190 milhões de anos pelo fluxo e refluxo do magma fluido e pastoso das entranhas do nosso planeta. Mergulhado numa reflexão de milhões, dezenas de milhões anos, semestres, meses e semanas submergem na sua pequenez e insignificância na macro história da gênese do chão do qual surgimos, passamos a nossa existência e ao qual um dia retornaremos. Os noticiários que preocupam, neurotizam e/ou preenchem o diário das pessoas, reduzem-se a marolas que se desfazem na areia da praia. A dinâmica do imenso oceano, do “imenso mar do belo” de Homero, a história da “nossa casa”, “da nossa mãe e pátria”, segue seu ritmo inexorável, colocando no seu devido lugar a vaidade e a arrogância megalômana dos humanos que se julgam donos da verdade e criaturas superiores, acima do bem e do mal. Não passam, na verdade, como qualquer agricultor, varredor de rua, faxineira, dona de casa, operário de fábrica, feirante, etc., etc., de “Adam”, “Nascidoda Terra” e à qual voltarão, queiram ou não queiram, “porque são pó e ao pó retornarão,” como adverte a liturgia da quarta-feira de cinzas.

Lá pelas 14h o céu começou a nublar. Recolhemos os nossos pertences e começamos o caminho de volta pulando de pedra em pedra, contornando as maiores ou até passando por cima em casos em que o contorno foi impossível. As nuvens lá no alto escureciam cada vez mais. Trovões surdos e isolados no começo e mais frequentes com o entardecer prenunciavam chuva pesada. Uma densa camada de nevoeiro desceu até a meia altura dos paredões. Parecia que estávamos presos na penumbra de um túnel sem saída. Ao contornar a última dobra do canion antes de alcançar a cascata que se precipitava logo em frente à atual sede do parque, o tempo engrossou de vez. Os trovões faziam tremer os paredões acompanhados de uma chuva pesada. Pedras despencavam do alto e desfaziam-se em pedaços ao baterem nos escolhos do leito do rio. Escurecia rapidamente e a grande cascata aumentava assustadoramente de volume e saltava além da metade da piscina natural quase emendando com a outra que se precipitava do lado oposto. Petardos vindos do alto a cada trovão mais forte, a piscina natural ocupando toda a largura, o rio subindo e a escuridão tomando conta daquele túnel assustador, desaconselhavam qualquer tentativa de subir até o acampamento. À esquerda, perto da cascata uma saliência da rocha um pouco acima do nível do rio ofereceu abrigo contra a chuva e proteção contra as pedras que vinham do alto. Havia espaço mais que suficiente para abrigar os três exploradores e ascender um fogo com os galhos secos acumulados no local. Jantamos o que sobrara do almoço e nos conformamos em passar uma noite longa e desconfortável naquele fim de mundo. Para nossa sorte a temperatura não caiu muito. Não me lembro de termos passado frio. O Pe. Balduino acomodou-se no fundo e, pelo que me lembro chegou a dormir, valendo-se da mochila como travesseiro. Naquele ano de 1958 ele já não estava bem fisicamente embora com apenas 53 anos. Sofria de pressão alta somado a um considerável sobrepeso. O Alcides e eu passamos a noite praticamente em claro sentados no abrigo natural e um ou dois metros na nossa frente o rio subindo lentamente. Felizmente a chuva foi diminuindo e pela meia noite cessou de vez e com isso o nível do rio se estabilizou e ao clarear do dia começou a cair. A neblina sumira e com ela o túnel em que se transformara na noite anterior o fundo do canion. Fomos obrigados a esperar até depois do meio dia pois, o volume das duas cascatas em queda livre daquela altura desaconselhavam atravessar a nado a enorme piscina formada pelo grande volume de água. Não havia como contorna-las. Conclusão. Esperar até a diminuição do volume das quedas e seu recuo deixando espaço para passar a nado. Pela meia tarde atravessei a nado ida e volta a imensa piscina e decidimos sair daquela situação nada agradável. O Balduino avaliou a situação e chegou à conclusão que ele não teria fôlego para arriscar a travessia a nado. Felizmente a solução veio com uma corda de 30 metros que tínhamos levado para alguma eventualidade. Passamos um laço na altura do seu peito, atravessamos a nado levando a ponta da corda. Uma vez do doutro lado o Balduino entrou na água e nós como que o arrastamos para o lado oposto. Mas, as peripécias ainda não tinham terminado. Faltava vencer a subida. Quem conhece o parque lembra- se que o canion começa perto da sede atual do parque com um arroio que vem do campo e desce até uma certa altura onde o declive é interrompido por um degrau de rocha quase a prumo. Para descer ou subir só com uma corda. Na descida havíamos deixado uma corda amarrada numa árvore acima do degrau para facilitar a subida na volta. O Balduino molhado e exausto não tinha como subir sozinho. Firmamos a corda avulsa no peito abaixo dos seus braços. O Alcides e eu subimos pela outra corda para depois ajuda-lo a vencer o paredão de rocha. Uma vez em cima vencemos com facilidade a última rampa antes de chegar no acampamento. Depois da muita chuva da noite anterior tudo estava encharcado. Só me lembro que ele se sentou encostado numa árvore sem dizer uma palavra. Lembrei-me da garrafa de cachaça na mochila e ofereci-lhe um trago reforçado. Depois disso entregou os pontos. Tínhamos trancado no jeep com cabine de aço nossos pertences, roupas de reserva, mantimentos etc. Trocamos a roupa molhada e suja e, enquanto planejávamos como passar a noite naquela situação, apareceu um morador da vizinhança para informar-se sobre o nosso estado e convidou-nos para passar a noite numa casa perto do acampamento. Ele e alguns moradores da vizinhança sabiam da nossa descida para dentro do canion no dia anterior e que havíamos passado a noite retidos lá dentro. Ofereceu pernoite numa casa de madeira localizada mais ou menos onde hoje se encontra guarita da entrada do parque. Acomodamos a bagagem no jeep e nos apresentamos naquela casa. Uma senhora de meia idade nos recebeu e nos convidou para entrar. Era uma casa de madeira grande com vários quartos. Ela nos ofereceu dois deles para passar a noite, um menor para o Balduino e um maior para nós dois. O Balduino insistia em rezar o breviário e passei um bom trabalho para convence-lo de que no estado de exaustão em que se encontrava estava mais do que dispensado. Por fim, cedeu, acomodou-se na cama e dormiu um sono só até o clarear do dia na manhã seguinte. A dona da casa parecia ser viúva morando com duas filhas de seus 20 e poucos anos. O Alcides e eu ficamos conversando por algum tempo com as três mulheres detalhando a nossa aventura de dois dias e uma noite no fundo daquele “buraco”. Dormimos depois a noite inteira. Lembro-me apenas que antes de adormecer escutei conversas mas, sem desconfiar de nada, dormi a noite toda. Um céu sem nuvens nos brindou ao clarear o dia. Deixamos uma boa gorjeta para a dona da casa e uma caixa de uvas que tínhamos comprada numa tenda na estrada. Ela agradeceu e fez questão de deixar claro que ela nos tinha abrigado sem pedir nada em troca. No verão seguinte, visitamos novamente o taimbezinho, desta vez o Pe. Balduino, o Pe. Sehnem, o Reinoldo Ullmann e eu e acampamos numa serraria abandonada perto da atual sede do parque. Um senhor, não me lembro do nome, amigo do Balduino de outras visitas nos ofereceu uma galinhada por ele preparada no nosso acampamento. No meio da conversa não podiam faltar referências à aventura da noite passada no fundo do canion no verão anterior. Com um sorriso um tanto maroto perguntou. E vocês tem ideia do que foi a casa em que passaram a noite. Nada mais nada menos do que um “chineiro”, aquela senhora a dona e as meninas à espera dos clientes, peões e madeireiros da redondeza. Aí me dei conta do motivo da movimentação dentro daquela casa até altas horas da noite, além do grau de ingenuidade da minha parte e do Alcides de não ter desconfiado de nada. De qualquer maneira a justiça manda deixar o registro póstumo de reconhecimento àquela senhora que naquela situação fez valer a brasa da solidariedade ardendosob as cinzas de uma “profissão” presente em toda história humana. Não é aqui o lugar para uma avaliação antropológica, histórica, sociológica, filosófica, teológica e moral do fenômeno da prostituição. Limito-me a essa altura invocar o provérbio imortal deixado pelos antigos romanos: “De mortuis nihil nisi bonum” – “Dos mortos lembre-se apenas o bem que praticaram”.

Da Enxada à Cátedra [ 47 ]

Professor no Colégio Anchieta.

Já lembrei mais acima que paralelamente ao curso de História Natural na UFRGS exerci o magistério no Colégio Anchieta. Durante o ano de 1957 coube-me a disciplina de História e Geografia do Brasil no curso de Admissão preparatório para a matrícula no primeiro ano do Ginásio. Em resumo foi um ano tranquilo com meus alunos meninos e 10 ou 11 anos. Na época o Anchieta só matriculava meninos, a grande maioria da classe média ou classe média alta mas aceitava um número considerável de filhos de famílias pobres sem cobrar anuidade. A direção tomava o cuidado de não revelar quem frequentava o colégio gratuitamente para evitar qualquer tipo de discriminação e/ou rotulação. Não tenho muito a comentar sobre aquele meu primeiro ano de magistério no Anchieta. Só sei que não enfrentei nenhuma dificuldade maior. Consegui tornar- me, além de professor, amigo da maioria deles. Nunca me vou esquecer de um episódio acontecido durante a aula de história do Brasil ao falar da introdução da cana de açúcar no Brasil por Tomé de Souza. Passei um trabalho enorme para explicar o que é uma cana de açúcar. Desenhei no quadro negro, recorri a todas comparações ilustrações que me vieram à mente e nada. A essa altura um aluno levantou a mão e falou. Meu pai é dono de um xácara lá no Ipanema e lá ele cultiva alguns tufos de cana. Hoje de tarde vou com ele até a xácara e amanhã prometo trazer uma cana para aula e assim todos vão conhecer uma cana de verdade. De fato, na manhã seguinte o menino apareceu na aula com um vistosa cana de açúcar com folhas, raiz e tudo trazida no bonde. Foi uma festa quando na hora do recreio aquele aluno ensinou os colegas como descascar e mascar a cana. Não guardo outras recordações de maior importância do ano que lecionei no Admissão.

Naquela época o Colégio Anchieta oferecia uma opção noturna gratuita no nível do Primário e Admissão para garis, engraxates, guardas noturnos, vendedores ambulantes e qualquer pessoa, meninos, adolescentes e mesmo adultos sem condições de frequentar uma escola diurna regular. Uma noite por semana coube-me dar geografia e história para aquele público. Foi uma das experiências mais gratificantes de toda a minha vida de magistério. Mais acima já lembrei que comecei a vida de professor em 1949 no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul com um público noturno mais ou menos nos mesmos moldes daquele do que estou falando. Chegava a me comover observando aqueles meninos, adolescentes e mesmo guardas civis adultos cansados e lutando contra o sono mas, na medida do possível atentos. Não raro cochilavam para em seguida retomarem a atenção. Não tenho a mínima ideia de quantos deles tiveram condições de avançarem para níveis de formação mais avançados.

A previsão para 1958 foi que eu assumisse as aulas de Ciências nas terceiras séries do ginásio. Havia, entretanto, um obstáculo no caminho. Como aluno do Curso de História Natural não concluído, faltava-me o credenciamento para lecionar no nível do ginásio. Havia, porém, uma saída para o impasse. A Secretaria da Educação oferecia no mês de janeiro um curso intensivo de “Suficiência” para os não portadores de credenciais para lecionar no ginásio e colégio, isto é, no nível médio. O Pe. Emílio Hartmann na condição de Prefeito Geral, isto é, responsável pelo bom andamento dos estudos do Anchieta, procurou-me para me sondar se estava disposto sacrificar um mês de férias e me submeter ao curso intensivo e respetivo exame de “suficiência” que seria ministrado no Colégio São José dos Irmãos Lassalistas em Caxias do Sul. Deixou claro que não era obrigado a aceitar pois, a primeira razão de morar no Colégio Anchieta era dar conta do curso de História Natural. Se me negasse não haveria nenhuma consequência, apenas continuaria dando aulas no primário e no admissão. Aceitei na hora por dois motivos. Primeiro porque não quis deixar escapar da oportunidade de dar aulas em nível mais adiantado relacionadas com o curso acadêmico em andamento na universidade. Em segundo lugar pela maneira, diria, quase num tom de pedido do Pe. Emílio, além de superior um amigo inclusive de carteados nos sábados à noite. Tudo acertado viajei de ônibus a Caxias do Sul no começo de janeiro em companhia do meu colega Alcides Giehl que faria a “suficiência” em língua portuguesa. Para minha surpresa meu professor de Ciências foi o Ely Denhardt, da mineralogia e cristalografia da UFRGS. O curso foi de fato intensivo e por isso mesmo cansativo com aulas no turno da manhã e da tarde. Não poucas vezes varava madrugada adentro para dar conta dos conteúdos. Saí-me a contento no exame final tanto no escrito quanto no oral e credenciado para lecionar Ciências no ginásio e no colegial, isto é, em todos os níveis do ensino médio. Ao voltarmos para casa o Pe. Emílio nos recebeu agradecendo por termos sacrificado metade das férias em favor do colégio sem termos sido obrigados para tanto. Depois levou-nos para o refeitório onde nos esperava um prato de guloseimas e uma cerveja bem no ponto. Conversamos por um bom tempo e fizemos planos para o ano letivo de 1958. Ficou acertado que assumiria as aulas de Ciências da terceira série e eventualmente, em caso de afastamento temporário do Pe. Balduino com seus múltiplos compromissos, História Natural no Curso Clássico e Científico.

O que sobrou das férias, isto é, o mês de fevereiro foi memorável. O Pe. Balduino planejou uma viagem de mais ou menos uma semana ao Taimbézinho em Cambará. Desde o seu retorno da viagem aos Estados Unidos e a visita aos parques daquele país, principalmente os do oeste americano consolidara, quase como que uma obsessão, implantar algo similar no sul do Brasil. Ele conhecia o Rio Grande do Sul como ninguém, em 1938 sobrevoou todo estado percorrendo 60.000 quilômetros num Master Brasília” da base aérea de Canoas, a serviço do Serviço Geográfico do Exército. As observações feitas naquele sobrevoo sistemático serviram como subsídio para publicar a sua obra clássica “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” que, até hoje, serve de referência para quem pretende estudar algum aspeto da História Natural do Estado. Desde então cultivava uma autêntica paixão pelo planalto do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, com seus campos, capões, os Aparados da Serra com suas florestas descendo até perto do oceano e as milhões de araucárias, copa encostando em copa, formando com que um guarda- chuva ou guarda-sol, 5 ou mais metros acima do mato branco. Numa só frase ele registrou o sentimento e a emoção que o animavam quando perambulava por aquele cenário meditando e colhendo plantas: “Se tenho uma pátria na terra, ela se encontra no planalto calmo e sereno, na sombra dos pinheirais”. Preocupava-o a devastação dos pinheirais há 10 anos implacavelmente dizimados pela fúria dos madeireiros. Decidiu fazer valer todo o seu potencial de convencimento como catedrático da UFRGS, botânico internacionalmente reconhecido e, somando a tudo isso, como diretor do Museu de História Natural subordinado à Secretaria da Cultura do Estado para realizar esse sonho. Convidou-me a mim e o Alcides Giehl para acompanha-lo sem informar a verdadeira finalidade daquele acampamento na entrada do Taimbézinho. Supus que seu objetivo se resumia em colecionar plantas para enriquecer o Herbário Anchieta. Durante os dias que estivemos acampados e nas caminhadas pelo campo e por trilhas da mata foi informando que o motivo real fora inteirar-se do tamanho da agressão em andamento com a exploração das araucárias além dos danos secundários causados à floresta pela forma predatória como os madeireiros conduziam a devastação. Numa dessas caminhadas pelo campo ele parou e sugeriu que observássemos a paisagem em volta do Taimbézinho. Por toda a parte sobressaiam as feridas causadas à vegetação nativa resultado da fúria dos madeireiros, agravada por um incêndio que devastara toda a floresta na margem oriental do canion. Depois falou no tom que lhe era peculiar ao se referir a algo muito sério: “Está na vigésima quinta hora para dar um fim a esse crime! Depois de voltarmos a Porto Alegre vou ter uma conversa com o Xavier”! (O Xavier vinha ser seu superior na Secretária da Cultura). Mais abaixo prometo detalhar o que resultou daquela decisão tomada naquele momento. Apenas adianto que acabava de ser gerado o embrião do Parque dos Aparados da Serra e, depois de mais de 60 anos passados, sinto uma satisfação enorme por ter sido testemunha desse memorável momento, somado ao orgulho de que o protagonista desse feito foi meu irmão mais velho, um exemplo para mim como não há obstáculo que impeça o partir da “enxada ocupar a cátedra de uma Universidade”, no meu caso de duas.