Compreendo que após 6 décadas a Antropologia como disciplina acadêmica, como campo de pesquisa, como atividade profissional, tenha evoluído ao irreconhecível, tomando-se como referência o programa acima detalhado. Não me sinto em condições e nem me interessa emitir um juízo crítico sobre os rumos que a Antropologia seguiu, sua proposta acadêmica, o espaço que revindica no contesto das Ciências Humanas e sua postura político ideológica nas circunstâncias do começo da terceira década do terceiro milênio. Faço meu o princípio que me parece adequado em situações do gênero: “Louvar não posso, criticar não devo, por isso calo-me”.
Para o segundo semestre de 1960 ocorreu uma alteração na distribuição das tarefas docentes. O Pe. Balduino catedrático da cadeira de Etnografia e Etnologia recebera um convite do governo da RFA (República Federal da Alemanha) e do Instituto Ibero-Americano de Berlim, para passar 4 meses na Alemanha e outros países da Europa Central e do Norte: França, Inglaterra, Suécia, Holanda, Áustria e Suíça. Como soubera do convite em fevereiro ele adiantara em parte suas obrigações docentes na universidade. O Pe. Ignácio Schmitz, também seu assistente e eu repartimos o que tinha ficado para trás. Além disso segundo semestre letivo de 1960 transcorreu sem mais novidades. Em fins de outubro o Pe. Balduino voltou da sua viagem à Europa.
O evento decisivo para o meu futuro como docente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul aconteceu na primeira metade de dezembro daquele ano. Mais acima já lembrei que, na época, a carreira do docente universitário público começava com o convite do catedrático da respetiva disciplina e, nos primeiros dois semestres cumpria a sua tarefa na condição de “instrutor de ensino superior”, isto é, um estágio para avaliar o seu desempenho. O contrato que o vinculava à universidade tinha caráter temporário. A entrada no funcionalismo público federal e ser enquadrado no estatuto que o regia, pressupunha um ritual previsto no estatuto da universidade, frente a uma comissão examinadora, no meu caso, indicada pela Congregação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. O presidente costumava ser o catedrático da disciplina, no caso o Pe. Balduino. Os outros dois foram professores de história. O concurso consistiu numa prova escrita, numa prova oral cujas questões foram formuladas pela comissão e, por fim, uma aula prática. Não me lembro exatamente das questões das duas primeiras. Para a aula prática o tema escolhido foia “Dinâmica da ocupação da Ásia Oriental”. O resultado foi de todo em todo compensador. Fui aprovado com a média de 9,50. O Balduino, como ele mesmo me confidenciou mais tarde, foi o responsável por não ter alcançado a nota máxima. Compreendi perfeitamente a sua posição. Como catedrático, somado ao fato de ser meu irmão, não quis ser acusado de me ter protegido.
De qualquer forma estava plenamente habilitado para que meu nome fosse chancelado pelo ministério da educação e minha efetivação com professor universitário federal assinada pelo presidente da República, fato que se efetivou na segunda metade de janeiro de 1961. Com a efetivação passei à categoria de assistente e funcionalmente estável de acordo com o estatuto do funcionalismo público federal. De volta ao Colégio Cristo Rei, o reitor Pe. Arthur Bohnen, comunicou o bom resultado do concurso a toda a comunidade dos jesuítas reunida para o almoço no refeitório. Guardo esse reconhecimento público do meu superior religioso como uma grata recordação desse meu xará que não só sempre me apoiou como me defendeu contra os que estranhavam a minha condição de aluno de Teologia e, ao mesmo tempo, docente na universidade pública.
No sábado depois do concurso o Pe. Balduino buscou-me com o seu “jeep” para fazermos uma visita à nossa mãe em Harmonia, naquela altura com 76 anos morando com meu irmão Bertoldo e família. Daquela visita consta a última fotografia com o Balduino de que me lembro e guardo entre as minhas relíquias. Em meados de dezembro acompanhei meus colegas teólogos para duas semanas de férias na Casa de Retiro do Morro das Pedras no sul da ilha de Florianópolis. O ritual das férias naquele local, as caminhadas pela floresta que cobre a encosta do outro lado da lagoa do Pery, os morros da Armação, as praias adjacentes, já descrevi mais acima numa outra temporada de férias naquele local, na época com a paisagem praticamente intocada. Registro contudo três programações que merecem destaque. A primeira foi um passeio de barco de um dia à ilha do Campeche. Ao desembarcarmos na pequena praia tranquila do lado oposto do mar grosso, fomos recebidos por um bando de quatis que viviam na pequena floresta cobrindo a encosta da ilha do lado protegido do vento do oceano. O dia foi curto para observar e apreciar em detalhe a geomorfologia toda moldada em granito, a vegetação, a fauna e flora. Lembro com destaque especial a face da ilha que dá para o lado do alto mar com seus blocos de granito e sobre eles os vestígios entalhados deixados pelos índios dos tempos passados. Aquele cenário moldado por incontáveis milhões de anos fez-me sentar num bloco de granito voltado para o oceano que lá longe se confundia com a linha do horizonte e deixar correr livre a imaginação em busca de uma resposta como tudo aquilo começou, como evoluiu até receber os homens que deixaram as marcas da sua presença nas rochas, confiando aos arqueólogos a tarefa de tentar decifrar o xadrez da sua identidade. Em momentos de reflexão do gênero costuma aflorar na memória o que a lenda atribui ao monge inglês Cadmon, poeta e pastor de ovelhas, que numa noite solitária de vigília junto ao rebanho escutou uma voz vinda do fundo da noite: “Cadmon, canta-me a canção do começo de todas as coisas”. Nesse micro ecossistema que vem a ser a ilha do Campeche, assim com dezenas de outras ao longo da costa e Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e mais para o norte, poderiam muito bem servir de espaço para uma aula de ecologia ao ar livre para todos os níveis de ensino. Sem jaleco, sem quadro, negro, sem power point, sem qualquer outro equipamento além da capacidade de admirar, de ouvir, de sentir, de degustar e cheirar a natureza, de fareja-la na sua forma original e sem as inevitáveis distorções quando descrita nos livros, cantada pelos poetas, desenhada pelos artistas ou retratada em qualquer outra modalidade de representação.
Numa segunda saída, também de um dia, foi para a colônia de pescadores do Pantano do Sul. Na época aquela enseada paradisíaca emoldurada pelos morros cobertos de mata virgem, uma ilha a poucos quilômetros para dentro do oceano, ainda não fora profanada pela invasão do turismo. Lá vivia uma pacífica e laboriosa comunidade de pescadores. Chegamos de manhã na hora em que eles arrastavam as redes para a praia. O resultado daquela manhã não foi extraordinário, porém, recompensou o esforço dos valentes pescadores. Enchovas, alguns tubarões de porte relativamente modesto, garoupas, tainhas e outros mais. Para mim como antropólogo interessou naquela visita, antes de mais nada o tipo humano, homens mulheres e crianças, que compunham aquela comunidade, seus trajes, a organização das modestas moradias, os barcos de pesca e, sobretudo o ritual e as técnicas de manuseio dos barcos, das redes e, principalmente, a preparação dos peixes para serem comercializados e uma parte para o consumo diário das famílias dos pescadores. Para o almoço fomos brindados com um saboroso ensopado de enchova temperado com conversa amena, além de preciosas informações sobre a vida dos pescadores, úteis para ilustrar as preleções na universidade.
Um terceiro programa levou-nos até a ilha do Anhatomerim (Pequena Ilha do Diabo em Tupi) na entrada da baía norte da ilha de Florianópolis, bem próxima ao continente. A ilha toda não passa de uma fortaleza com uma área total de 4 hectares, sentinela e vigia da entrada da baía do norte das embarcações procedentes do “mar grosso”. Essa ilha entrou na história do Brasil a partir do século XVII como um ponto estratégico, junto a ilha de Santa Catarina, Ratones e outras, na rota de navegação para a região do Prata. Foi por essa razão que a coroa portuguesa decidiu implantar três fortificações nelas para evitar que os espanhóis se antecipassem. Foram três as fortificações mais importantes: São José da Ponta Grossa na ilha de Santa Catarina, Santo Antônio na ilha de Ratones e Santa Cruz na ilha de Anhatomerim. O forte de Santa Cruz mostrou-se totalmente inútil com bastião protetor da entrada de navios na baía do norte. Seus canhões tinham um alcance máximo de dois quilômetros e com isso navios espanhóis navegaram em grande número passando pela baia norte e sul deixando a ilha de Santa Catarina entregue à ocupação estrangeira. Posteriormente Anhatomerim passou por dois períodos pouco mencionados pelos historiadores. O primeiro deles aconteceu em 1894 sob a presidência de Floriano Peixoto. A ilha com suas instalações foi transformada em presídio político. Nela foram recolhidos 185 opositores ao regime e sumariamente fuzilados sem direito à defesa. No subsolo da sede do comando observei na parede inúmeros pontos de impacto das balas dos fuzilamentos. Durante a Revolução Constitucionalista de Vargas em 1930 Anhatomerim voltou a condição de presídio político. Para mim a visita àquela ilha serviu como uma imersão num passado que faz parte do fascinante lançamento das raízes e consolidação do Brasil como também dos países do Prata. Começa pela consolidação da soberania da Coroa de Portugal sobre aquele território no sul da Colônia Portuguesa, bem a meio caminho da rota dos navios que demandavam as colônias espanholas do Prata. Em resumo. Um importante ponto de apoio e abastecimento para os navegantes. Tanto assim que a ilha de Santa Catarina e ilhas menores como Anhatomerim e Ratones ficaram sob a possessão espanhola até o Tratado de Santo Ildefonso em 1777, quando do novo acerto de fronteiras, Portugal abriu mão da Província Cisplatina em troca de territórios mais ao sul, entre eles a ilha de Santa Catarina e as demais na sua adjacência. Percebe-se pois, que, para mim pelo menos não foi um simples piquenique num lugar muito peculiar, mas novamente um aprendizado fora da parafernália e do ritual asséptico de uma sala de aula ou de um auditório com os salamaleques rituais. Só sei que embarcamos no cais de Florianópolis num barco da Marinha e, costeando a ilha dos Ratones, desembarcamos na praia rasa da ilha do Inhatomerim. Fomos recebidos por cardumes de papa-terra antes de subir os poucos metros do topo da pequena ilha. Visitamos a casa do administrador, os alojamentos da guarnição, o recinto dos fuzilamentos do tempo de Peixoto, os canhões inúteis, dos quais afirma-se que nunca dispararam um tiro. Sempre gostei do formato de excursões em que o lazer vinha acompanhado de uma dose mais ou menos concentrada de aprendizagem longe de uma ambiente formal com seus rituais prescritos por regulamentos convencionados pelas respetivas instituições. Em outras palavras: combinar o agradável, o lazer, ao enriquecimento do conhecimento. Pela meia tarde o barco da Marinha nos deixou no ancoradouro de Florianópolis e de ônibus retornamos à casa de retiros do Morro das Pedras.
Seguiram-se mais alguns dias tranquilos para depois voltarmos ao nosso QG no Cristo Rei em São Leopoldo. Na segunda metade do janeiro o Pe. Gesa Kovecses, húngaro expulso do país pela ocupação comunista russa, nos pregou um inesquecível retiro de 8 dias. Num português pitoresco, porém, de um conteúdo doutrinário e humano profundo, sem apelar a conceitos ascéticos e místicos, muito menos a práticas discutíveis, que repercutiram e repercutem ainda hoje na minha postura perante a fé e a moral. Ocupei o restante do tempo disponível até começos de março com a preparação das preleções na universidade aperfeiçoando a “sebenta”, aprofundando os temas a serem abordados nas aulas, mapas ilustrativos da migração dos povos, etc. Passava dias inteiros ou no matinho na encosta à direita da subida da Avenida da Unisinos, no taquaral onde fica hoje a rodoviária da universidade ou na casinha da apicultura, todas já descritos mais acima.
No primeiro semestre as preleções correram dentro do normal e sem maiores contratempos. As terças feiras de tarde foram reservadas para o curso de Geografia com somente seis alunos; nas quartas feiras de manhã para os alunos de História; nas quartas feiras de tarde preleção para os alunos do curso de Ciências Sociais. Também na programação das preleções de Teologia não me lembro de algum evento que mereça destaque.