Depois disso concluo as recordações que achei dignas de nota daqueles dias memoráveis, para não dizer homéricos e, por isso mesmo, épicos que tive a oportunidade de compartilhar com meu saudoso irmão, idealizador do Parque dos Aparados da Serra e com o Alcides Giehl, também “in memoriam”, meu amigo de muitos anos e parceiro inseparável e leal na montagem do projeto da futura Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Depois do retorno ao Colégio Anchieta foi a vez de começar a preparar as aulas de Ciências para a 3a série do ginásio, as de História Natural no Clássico e o começo do 1o semestre do segundo ano de História Natural e Geologia na UFRGS.
Sem grandes novidades ministrei minhas aulas de Ciências para a terceira série nas quartas feiras de manhã e as de História Natural para o Clássico nos sábados de manhã. Não tenho como registrar algum incidente maior. Os adolescentes da terceira série eram muito tranquilos e não me lembro de nenhum caso de indisciplina ou desrespeito de maior gravidade nem naquele ano de 1958, nem no de 1959. De vez em quando uma brincadeira até saborosa temperava a rotina das aulas. Lembro de uma que nunca vou esquecer. Num canto da sala de aula um esqueleto humano completo e de verdade, suspenso numa haste de metal, servia como peça didática prática para o estudo da estrutura óssea do corpo humano. Os alunos o apelidaram de “Alfredinho”. Certa manhã ao entrar na sala para dar minha aula, os alunos me receberam em pé como era praxe na época e o “Alfredino” no seu canto exibia um cigarro entre os dentes. É evidente que os meninos estavam curiosos por minha reação. Achei graça e fiz uma mesura ao esqueleto seguida de uma sonora gargalhada da turma.
Fazia parte da rotina diária das aulas em todas séries tanto do ginásio quanto do colégio uma breve oração seguida da chamada. Uma moldura inclinada sobre a mesa do professor continha o espelho da distribuição dos alunos com os respetivos nomes, (os lugares eram fixos), protegido com uma placa de vidro. Dessa forma o professor tinha um controle fácil sobre a movimentação durante a aula. Os recursos didáticos, além dos livros e cadernos não passavam naqueles idos de 1958 do quadro negro, mapas geográficos físicos e políticos do mundo, dos continentes e seus países, do Brasil também físico e político, um globo terrestre e, no caso das Ciências um esqueleto humano, mapas com a representação dos órgãos internos e a musculatura, mapas apresentando paisagens com plantas, animais e a respetiva geomorfologia, etc. De toda a parafernália de recursos didáticos de hoje facilitando sem dúvida a docência, como também criando problemas para o bom andamento das aulas, nem em sonho. A grande novidade da época foi a “régua de cálculo”. Não me atrevo dar uma ideia desse recurso porque fica difícil descrever de como era feito esse aparato e como se fazia uso dele. Permito-me apenas uma breve observação. Imagine- se alguém hoje uma sala de aula do ensino médio frequentado exclusivamente por meninos e rapazes, na qual os alunos recebem o professor em pé, fazem uma breve oração, respondem à chamada e ocupam um lugar fixo, são submetidos a sabatinas mensais, um exame no fim do primeiro semestre e outro no fim do ano letivo incluindo todo conteúdo ensinado durante o ano todo.
Nos sábados à tarde e domingos costumávamos passar na xácara do Colégio Anchieta no alto do morro da Glória ou na Casa da Juventude no morro do Sabiá em Ipanema. No Morro da Glória erguia-se uma ampla construção de dois andares e várias dezenas de quartos, cozinha e demais instalações dimensionadas para receber grupos de alunos do Anchieta e de outras procedências para fazerem Retiro. Por essa razão era conhecida como a “Casa de Retiros”. Localizada numa área de terra de seus 50 hectares, a metade mais ou menos coberta com mata nativa, uma boa parte do restante cultivada com hortaliças para abastecer o Colégio, pasto para vacas leiteiras e porcos, um córrego alimentando uma piscina de água cristalina cercada de mata nativa, ofereciam opções para desopilar as tensões acumulados durante uma semana de aulas e estudos. Um mirante erguido no ponto mais alto permitia uma visão sobre a maior parte de Porto Alegre, o Guaíba, os morros da outra margem e mais além a perder-se de vista em direção ao centro-sul do Estado. Esse cenário assumia as características do “Belo Grandioso” e, por vezes, “assustador” com o avanço das trovoadas de verão que se aproximavam a partir do sudoeste. Naquele recanto vivenciei momentos inesquecíveis em companhia dos meus colegas de estudo e parceiros de trabalho. Não tenho a mínima ideia no que deu esse paraíso na periferia de Porto Alegre com suas grandes figueiras, seus tarumãs gigantes, as cutias escondendo-se nas suas tocas, os pessegueiros vergados sob o peso dos frutos, a granja de vacas e porcos aos cuidados do irmão Kauling. Já se passaram mais de 60 anos desde que me hospedei pela última vez naquele local então ainda permeado pelo hálito e a sinfonia da natureza quase intocada.
O outro destino para relaxar os nervos nos fins da semana vinha a ser o “Morro do Sabiá”. Esse local foi planejado pelo Pe. Henrique Pauquet para oferecer um ambiente sadio e agradável para os alunos do Colégio Anchieta nos fins de semana. Punha à disposição alojamentos para passar a noite, galpão com churrasqueira, campos de exporte, um bom restaurante com uma sala de jogos de mesa anexo. Uma torre de observação permitia uma vista por sobre o Guaíba, os morros do outro lado e a planície a perder de vista para o sudoeste do estado. Passei inúmeros fins de semana naquele recanto com a água do Guaíba marulhando lá em baixo convidando para uma refrescada nas tardes de verão. Certa ocasião organizamos um mega churrasco para alunos do colégio e seus familiares. Em companhia do meu colega Alcides Giehl buscamos a carne diretamente no matadouro Link em Guaíba. Praticamente não dormimos nem no sábado nem no domingo para dar conta do volume do compromisso e satisfazer a extraordinária participação de alunos e familiares. Esse evento levou a um episódio engraçado na segunda-feira de manhã na aula de Biologia na faculdade. Não me aguentava de sono depois daquela jornada de dois dias sem dormir. Por cautela acomodei-me no fundo da sala e encostei a cabeça na parede. Não deu outra. Peguei no sono e por uma nada terminei no chão. Foi aquele reboliço entre meus colegas O prof. Mucillo, que era médico, percebeu logo o que estava acontecendo e mandou-me para casa descansar. Já se passaram mais de 60 anos que não visito o Morro do Sabiá e não tenho informações se ainda serve como local de lazer para os alunos do Colégio Anchieta, ou se também já foi vítima da expansão de Porto Alegre em direção ao sul, somado ao fato de o Colégio Anchieta ter aberto as portas para alunas e pelo rumo errático em que a educação em geral enveredou nas últimas décadas.