Da Enxada à Cátedra [ 47 ]

Professor no Colégio Anchieta.

Já lembrei mais acima que paralelamente ao curso de História Natural na UFRGS exerci o magistério no Colégio Anchieta. Durante o ano de 1957 coube-me a disciplina de História e Geografia do Brasil no curso de Admissão preparatório para a matrícula no primeiro ano do Ginásio. Em resumo foi um ano tranquilo com meus alunos meninos e 10 ou 11 anos. Na época o Anchieta só matriculava meninos, a grande maioria da classe média ou classe média alta mas aceitava um número considerável de filhos de famílias pobres sem cobrar anuidade. A direção tomava o cuidado de não revelar quem frequentava o colégio gratuitamente para evitar qualquer tipo de discriminação e/ou rotulação. Não tenho muito a comentar sobre aquele meu primeiro ano de magistério no Anchieta. Só sei que não enfrentei nenhuma dificuldade maior. Consegui tornar- me, além de professor, amigo da maioria deles. Nunca me vou esquecer de um episódio acontecido durante a aula de história do Brasil ao falar da introdução da cana de açúcar no Brasil por Tomé de Souza. Passei um trabalho enorme para explicar o que é uma cana de açúcar. Desenhei no quadro negro, recorri a todas comparações ilustrações que me vieram à mente e nada. A essa altura um aluno levantou a mão e falou. Meu pai é dono de um xácara lá no Ipanema e lá ele cultiva alguns tufos de cana. Hoje de tarde vou com ele até a xácara e amanhã prometo trazer uma cana para aula e assim todos vão conhecer uma cana de verdade. De fato, na manhã seguinte o menino apareceu na aula com um vistosa cana de açúcar com folhas, raiz e tudo trazida no bonde. Foi uma festa quando na hora do recreio aquele aluno ensinou os colegas como descascar e mascar a cana. Não guardo outras recordações de maior importância do ano que lecionei no Admissão.

Naquela época o Colégio Anchieta oferecia uma opção noturna gratuita no nível do Primário e Admissão para garis, engraxates, guardas noturnos, vendedores ambulantes e qualquer pessoa, meninos, adolescentes e mesmo adultos sem condições de frequentar uma escola diurna regular. Uma noite por semana coube-me dar geografia e história para aquele público. Foi uma das experiências mais gratificantes de toda a minha vida de magistério. Mais acima já lembrei que comecei a vida de professor em 1949 no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul com um público noturno mais ou menos nos mesmos moldes daquele do que estou falando. Chegava a me comover observando aqueles meninos, adolescentes e mesmo guardas civis adultos cansados e lutando contra o sono mas, na medida do possível atentos. Não raro cochilavam para em seguida retomarem a atenção. Não tenho a mínima ideia de quantos deles tiveram condições de avançarem para níveis de formação mais avançados.

A previsão para 1958 foi que eu assumisse as aulas de Ciências nas terceiras séries do ginásio. Havia, entretanto, um obstáculo no caminho. Como aluno do Curso de História Natural não concluído, faltava-me o credenciamento para lecionar no nível do ginásio. Havia, porém, uma saída para o impasse. A Secretaria da Educação oferecia no mês de janeiro um curso intensivo de “Suficiência” para os não portadores de credenciais para lecionar no ginásio e colégio, isto é, no nível médio. O Pe. Emílio Hartmann na condição de Prefeito Geral, isto é, responsável pelo bom andamento dos estudos do Anchieta, procurou-me para me sondar se estava disposto sacrificar um mês de férias e me submeter ao curso intensivo e respetivo exame de “suficiência” que seria ministrado no Colégio São José dos Irmãos Lassalistas em Caxias do Sul. Deixou claro que não era obrigado a aceitar pois, a primeira razão de morar no Colégio Anchieta era dar conta do curso de História Natural. Se me negasse não haveria nenhuma consequência, apenas continuaria dando aulas no primário e no admissão. Aceitei na hora por dois motivos. Primeiro porque não quis deixar escapar da oportunidade de dar aulas em nível mais adiantado relacionadas com o curso acadêmico em andamento na universidade. Em segundo lugar pela maneira, diria, quase num tom de pedido do Pe. Emílio, além de superior um amigo inclusive de carteados nos sábados à noite. Tudo acertado viajei de ônibus a Caxias do Sul no começo de janeiro em companhia do meu colega Alcides Giehl que faria a “suficiência” em língua portuguesa. Para minha surpresa meu professor de Ciências foi o Ely Denhardt, da mineralogia e cristalografia da UFRGS. O curso foi de fato intensivo e por isso mesmo cansativo com aulas no turno da manhã e da tarde. Não poucas vezes varava madrugada adentro para dar conta dos conteúdos. Saí-me a contento no exame final tanto no escrito quanto no oral e credenciado para lecionar Ciências no ginásio e no colegial, isto é, em todos os níveis do ensino médio. Ao voltarmos para casa o Pe. Emílio nos recebeu agradecendo por termos sacrificado metade das férias em favor do colégio sem termos sido obrigados para tanto. Depois levou-nos para o refeitório onde nos esperava um prato de guloseimas e uma cerveja bem no ponto. Conversamos por um bom tempo e fizemos planos para o ano letivo de 1958. Ficou acertado que assumiria as aulas de Ciências da terceira série e eventualmente, em caso de afastamento temporário do Pe. Balduino com seus múltiplos compromissos, História Natural no Curso Clássico e Científico.

O que sobrou das férias, isto é, o mês de fevereiro foi memorável. O Pe. Balduino planejou uma viagem de mais ou menos uma semana ao Taimbézinho em Cambará. Desde o seu retorno da viagem aos Estados Unidos e a visita aos parques daquele país, principalmente os do oeste americano consolidara, quase como que uma obsessão, implantar algo similar no sul do Brasil. Ele conhecia o Rio Grande do Sul como ninguém, em 1938 sobrevoou todo estado percorrendo 60.000 quilômetros num Master Brasília” da base aérea de Canoas, a serviço do Serviço Geográfico do Exército. As observações feitas naquele sobrevoo sistemático serviram como subsídio para publicar a sua obra clássica “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” que, até hoje, serve de referência para quem pretende estudar algum aspeto da História Natural do Estado. Desde então cultivava uma autêntica paixão pelo planalto do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, com seus campos, capões, os Aparados da Serra com suas florestas descendo até perto do oceano e as milhões de araucárias, copa encostando em copa, formando com que um guarda- chuva ou guarda-sol, 5 ou mais metros acima do mato branco. Numa só frase ele registrou o sentimento e a emoção que o animavam quando perambulava por aquele cenário meditando e colhendo plantas: “Se tenho uma pátria na terra, ela se encontra no planalto calmo e sereno, na sombra dos pinheirais”. Preocupava-o a devastação dos pinheirais há 10 anos implacavelmente dizimados pela fúria dos madeireiros. Decidiu fazer valer todo o seu potencial de convencimento como catedrático da UFRGS, botânico internacionalmente reconhecido e, somando a tudo isso, como diretor do Museu de História Natural subordinado à Secretaria da Cultura do Estado para realizar esse sonho. Convidou-me a mim e o Alcides Giehl para acompanha-lo sem informar a verdadeira finalidade daquele acampamento na entrada do Taimbézinho. Supus que seu objetivo se resumia em colecionar plantas para enriquecer o Herbário Anchieta. Durante os dias que estivemos acampados e nas caminhadas pelo campo e por trilhas da mata foi informando que o motivo real fora inteirar-se do tamanho da agressão em andamento com a exploração das araucárias além dos danos secundários causados à floresta pela forma predatória como os madeireiros conduziam a devastação. Numa dessas caminhadas pelo campo ele parou e sugeriu que observássemos a paisagem em volta do Taimbézinho. Por toda a parte sobressaiam as feridas causadas à vegetação nativa resultado da fúria dos madeireiros, agravada por um incêndio que devastara toda a floresta na margem oriental do canion. Depois falou no tom que lhe era peculiar ao se referir a algo muito sério: “Está na vigésima quinta hora para dar um fim a esse crime! Depois de voltarmos a Porto Alegre vou ter uma conversa com o Xavier”! (O Xavier vinha ser seu superior na Secretária da Cultura). Mais abaixo prometo detalhar o que resultou daquela decisão tomada naquele momento. Apenas adianto que acabava de ser gerado o embrião do Parque dos Aparados da Serra e, depois de mais de 60 anos passados, sinto uma satisfação enorme por ter sido testemunha desse memorável momento, somado ao orgulho de que o protagonista desse feito foi meu irmão mais velho, um exemplo para mim como não há obstáculo que impeça o partir da “enxada ocupar a cátedra de uma Universidade”, no meu caso de duas.

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