Da Enxada à Cátedra [ 52 ]

Docente na UFRGS e Estudante de Teologia

Observação introdutória

O ano de 1960 marcou o começo de uma nova fase importante na minha vida por dois motivos. Em primeiro lugar vencera mais uma etapa na minha formação como jesuíta, isto é, três anos de prática do magistério no Colégio Anchieta e, paralelamente, conquistara o bacharelado em História Natural e Geologia além de dar partida para uma trajetória de 50 anos como professor universitário e pesquisador. Esperava-me uma década em extremo movimentada, tanto no plano acadêmico quanto e, de modo especial, no plano existencial na condição de religioso jesuíta. Resumo o desafio a enfrentar na compatibilização entre entrar com pé direito na carreira de docente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, paralelamente, levar a sério a licenciatura em Teologia que demandaria 4 anos – 1960-1963. Não podia permitir-me que um dos dois compromissos prejudicasse o resultado do outro. Felizmente na época facultava-se ao docente na universidade federal optar pelo regime de 12, 20 ou 40 hora semanais. Decidi-me pelo de 12 horas, o que na prática significava arcar com 12 horas de aula em 3 turnos de 4 horas. Na distribuição dos dias e horários de aula coube-me a terça-feira de tarde e quarta de manhã e tarde. Como na Teologia não costumava ter preleções no turno da tarde, nem nas quartas de manhã e tarde, a assistência às preleções de Teologia não foi prejudicada. Mais acima já lembrei que me saíra muito bem no exame final de Filosofia, entrei no nível da “Teologia Maior”. Este conceito também já foi devidamente explicado. Decidi levar os dois compromissos no nível mais alto possível. Não resta dúvida que a condição de professor universitário federal e, ao mesmo tempo estudante de Teologia, configurava uma situação um tanto inusitada para aquele remoto ano de 1960. O Pe. Ignacio Schmitz encontrava-se na mesma situação. O Cristo Rei em São Leopoldo contava com mais de 100 estudantes de teologia procedentes de dentro e de fora o Brasil. Nós dois éramos vistos pela grande maioria dos colegas teólogos procedentes de todo o Brasil e de outros países com um ciúme nem sempre bem disfarçado por nossos colegas de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Nordeste, Canadá Francês, da Espanha, da Itália, da Bélgica e outros. Na imaginário de muitos deles o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e o Paraná não passavam de uma região de “colonos grossos”, descendentes de imigrantes alemães, italianos, poloneses, suíços, austríacos, teuto-russos e outros procedentes da Europa Central e do norte da Itália. Não cabia na cabeça de muitos que exatamente dois representantes desse meio, e mais estranho ainda filhos de colonos alemães, lecionando numa das melhores universidades federais do Brasil. E para completar o rescaldo da Segunda Guerra Mundial somado ao da Campanha de Nacionalização fazia-se ainda mais presente do que se possa imaginar. A suspeita de simpatia para com o nazismo não fora inteiramente superada e de quando em vez vinha à tona. Para não dar a impressão que estou exagerando cito apenas um exemplo a que já me referi mais acima. Fazia parte do acolhimento de uma nova turma na Teologia, organizar uma confraternização com os veteranos. Costumava-se colocar as fotos e o currículo dos novos teólogos num painel na entrada da sala de recreio. Fui surpreendido com uma suástica acompanhando minha foto como já lembrei mais acima. Entendi o recado. Não fiz nenhum comentário mas levei para o resto da vida a sensação de ter sido marcado com ferro em brasa, com um selo que me degradava a um cidadão de segunda categoria e um traidor em potencial e logo por coirmãos de ordem religiosa. Mau gosto ou safadeza, tanto faz. Pensei seriamente em não participar do churrasco de confraternização pois, senti-me posto à margem e na condição de poder contar com uma sincera amizade de apenas um grupo reduzido de teólogos. Observações com tempero de maldade como, “lá vem o catedrático” ou similares fizeram com que resolvesse levar uma vida talvez discreta demais voltada sobre mim mesmo e minhas obrigações como docente e, ao mesmo tempo, aluno de teologia. Decidi dar de mim o melhor para mergulhar nos meandros da teologia e, ao mesmo tempo, satisfazer ao máximo as exigências para firmar-me e aperfeiçoar-me como docente na universidade. Graças a Deus nenhum dos meus professores de Teologia demonstrou alguma reserva por levar uma vida paralela como professor. Entre eles o decano Pe. Godofredo Kessler apoiava-me abertamente.

Estudante de Teologia e Docente na UFRGS – 1960-1963.

As duas atividades iniciaram simultaneamente na primeira semana de março de 1960. As preleções de Teologia aconteciam na parte da manhã proferidas em latim, nas segundas, terças, quintas e sextas feiras. A programação do período da tarde vinha a ser de livre iniciativa dos estudantes, em princípio reservado para o aprofundamento dos conteúdos das preleções e estudos complementares. Como a programação estava entregue à livre escolha e não havendo obrigação de permanecer no quarto ou sala destinada par tais estudos, nem fiscalização, a escolha ficava ao gosto de cada um, tanto no que se referia ao conteúdo quanto ao lugar ou lugares escolhidos. Eu, da minha parte, passava a maioria das tardes isolado em três ambientes, dependendo da estação do ano ou do bom ou mau tempo. Nos dias chuvosos ou frios recolhia- me na casa das abelhas. Nos dias de tempo bom e temperatura agradável a preferência caía sobre o matinho de grandes árvores nativas na meia encosta, à direita da avenida Unisinos, subindo a partir da estação do trem, também já lembrado mais acima. Um terceiro ambiente, também em meio à natureza, igualmente já descrito, hoje se encontra sepultado debaixo da avenida Unisinos na altura da estação de ônibus da universidade. Aqueles lugares, espaços e caminhos ficaram gravados na minha memória como cenário em que tentei familiariza-me para valer, com os grandes temas e debates teológicos, com os formuladores das grandes vertentes daquele campo de conhecimento em pauta na época: São Tomás de Aquino, Suarez, Santo Agostinho, Karl Rahner e muitos outros. A Teologia da Libertação ainda não constava na pauta da programação do currículo pois, lembro que o vendaval do Concílio Vaticano II que fez tremer os pilares da Igreja, estava recém começando a apontar a direção em que os ventos da Igreja soprariam nas décadas seguintes. Paralelamente aos conteúdos centrados na doutrina propriamente dita previam-se no currículo preleções de Moral, Exegese, Direito Canônico e, o que me interessava de modo especial, a História da Igreja, com ênfase nos primeiros 4 séculos. Como se pode deduzir comecei e conclui os quatro anos da minha licenciatura em Teologia, ainda no formato tradicional, no qual o latim vinha a ser a língua oficial obrigatória nas preleções e demais atividades acadêmicas que faziam parte da base doutrinária, moral, ascética e disciplinar, consolidadas no Concílio de Trento e no Concílio Vaticano I. Programações complementares de natureza múltipla como cinema, literatura, espiritismo, psicologia, etnografia e etnologia além de outros mais, costumavam ser ministrados em português.

No final do primeiro ano submeti-me como os demais alunos da “Teologia Maior” a um rigoroso e exaustivo exame oral em latim, versando sobre as disciplinas tronco a que me referi há pouco, perante uma comissão dos professores titulares das mesmas. O resultado foi mais que satisfatório de maneira que fui aprovado para continuar em 1961 na nível da “Teologia Maior”. Um bom número dos meus colegas baixara para a “Teologia Menor”, não sem afetar a convivência com alguns deles. As razões têm muito a ver com o fato de lecionar numa universidade federal, fato a que já me referi mais acima. Porém, entrar mais a fundo nos meandros da situação criada por dividir o meu tempo entre a formação teológica e a de docente numa universidade federal, não acrescentaria muito às reflexões sobre a minha caminhada da “enxada à cátedra”.

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