Da Enxada à Cátedra [ 50 ]

O segundo semestre escolar de 1958 transcorreu sem grandes novidades, além do churrasco que acabei de mencionar. Em compensação as férias que seguiram a partir da metade de dezembro de 1958 e janeiro e fevereiro de 1959, foram bem movimentadas. Ainda antes do Natal o Pe. Balduino convidou-me para acompanhá-lo numa viagem no seu jeep” até Itapiranga. Fora convidado pelo Pe. Eugênio Rohr recém ordenado sacerdote para proferir o sermão festivo na sua primeira missa solene celebrada na comunidade natal na Linha Fortaleza. Aquela viagem mais de 400 quilômetros significava na época uma autêntica aventura. O asfalto terminava em Montenegro. De lá em diante só chão batido. Naquele remoto 1958 a Br. 386 – estrada da produção – constava apenas nas pranchetas dos engenheiros rodoviários, se é que constava. O trajeto até Lajeado seguia mais ou menos o traçado da estrada de hoje. Logo após a cidade de Lajeado dobrava-se para direita em direção a Arroio do Meio. De Arroio do Meio seguia-se até Encantado para depois subir a encosta do planalto pela estrada velha, uma sequência de curvas fechadas. Passando por Arvorezinha terminava-se finalmente em Soledade. Em vez de seguir para Carazinho dobramos para esquerda passando por Espumoso, Selbach, Tapera, Ibirubá até Ijui, seguindo depois até Palmeira das Missões, Frederico Weslphalen e Seberi para depois descer ao vale do Uruguai, passar por Pinheirinho até alcançar a barca que nos deixou em Sede Capela no lado catarinense. Hospedamo-nos no Seminário São Pedro Canísio logo adiante. Chegamos exaustos ao destino pelos três motivos combinados: A distância percorrida, mais de 400 quilômetros; as estradas de chão batido; o molejo do jeep projetado para enfrentar as vicissitudes de uma guerra. Na manhã seguinte vencemos os poucos quilômetros até a capela da Linha Fortaleza. Como costumava ser na época, a primeira missa solene do Pe. Eugênio Rohr foi um acontecimento que envolveu toda a comunidade local e em parte as comunidades vizinhas. Como sempre o Pe. Balduino esmerou- se na escolha do conteúdo e da linguagem que caía como feita sob medida nos ouvidos daqueles colonos, muitos deles ainda pioneiros desbravadores daquela fronteira de colonização, um povo que ele conhecia, compreendia e amava como nenhum outro.

Depois da cerimônia da missa solene os convidados da família do néo-sacerdote, entre eles obviamente o Pe. Balduino, encontraram-se no salão de festas da comunidade para o almoço. Eu reuni-me com meu irmão o Fridolino e filhos que participaram da solenidade vindos de São João poucos quilômetros mais adiante. Compramos um espeto de churrasco e uma bebida e acomodamo-nos na sombra de uma árvore para o almoço temperado com um bom papo como mandava o costume em tais ocasiões. À meia tarde retornamos a nossa a base no Seminário para pernoitar. Na manhã seguinte, depois da missa e do café percorremos os em torno de 15 quilômetros para passar o dia com a família do nosso irmão Fridolino em São João. Depois de 10 anos o assunto do reencontro girou em torno de novidades de ambos os lados, recordações da família acompanhadas de sonoras risadas quando o assunto o estimulava. No fim da tarde voltamos para o Seminário de Capela, para no dia seguinte visitarmos uma sobrinha que morava na Linha Santo Antônio, então fronteira de colonização. O marido, o Emílio Schneider e a Agnes moravam numa dessas típicas e precárias casas de madeira dos pioneiros da mata virgem, em meio a uma clareira rodeada de floresta fechada. Quase 10 anos antes, em 1949, encontrara o Fridolino praticamente na mesma situação quando como um dos pioneiros morava na mesma precariedade, nos fundos de São João do Oeste. No fim da tarde voltamos para o Seminário em Capela e na manhã seguinte carregamos os nossos pertences no jeep para enfrentar de novo os 400 quilômetros de chão batido de volta a Porto Alegre. A nossa sorte foi que a chuva não nos atrapalhou nem na ida nem na volta. Desta vez fizemos o trajeto em dois dias. Pernoitamos em Ibirubá na casa do pároco amigo do Pe. Balduino. Seu sobrenome Himmler” talvez cause surpresa, mas não tem nada a ver com o todo poderoso ministro de Hitler. Pelo meio da tarde do dia seguinte estacionamos o jeep no nosso “quartel general”, no Colégio Anchieta na rua Duque de Caxias. Essa viagem em companhia do meu irmão Balduino valeu para mim como uma experiência que não tem preço. Conversamos como irmãos e refletimos como intelectuais e cientistas sobre os mais diversos temas. Entre eles os desafios existenciais que os colonos descendentes dos imigrantes alemães enfrentavam em plena fase de desenraizamento entre o que foram como etnia e o inevitável enraizamento como cidadãos plenos e integrados na nacionalidade brasileira. Outro assunto que ocupou uma boa parte da nossa viagem relacionou- se com meu futuro como cientista. Ao me decidir pelo curso de Historia Natural a motivação veio da genética. Certa ocasião ele mesmo me sugeriu que me especializasse nessa área pioneira. Abandonei a ideia porque meus professores de genética a transformaram num cavalo de batalha para defender a visão materialista de Haekel, Julião Huxley e outros, numa época em que essa especialidade nem sequer tinha seus fundamentos científicos e metodológicos devidamente consolidados, fato que aconteceria somente com as conclusões de Dobizhansky na década de 1960 e, mais tarde com mapeamento do código genético em começos do terceiro milênio sob o comando de Francis Collins. Depois dessa virada comecei a flertar com a geologia ao ponto de o flerte se transformar em paixão especialmente com o convívio próximo com o prof. americano Patrik Delaney como já lembrei mais acima. Na verdade eu me interessava pelas Ciências Naturais, pela História Natural e o homem fazendo parte dela como uma grande síntese. Não me interessava em ser um especialista em serpentes, fanerógamos, fungos ou coisa que valha. Interessava-me o todo, o significado, a síntese e neste contexto o homem. Dessas conversas, balançando e pulando naquele jeep, sobra da segunda guerra mundial, desconfio que no Balduino catedrático de Etnografia e Etnologia da UFRGS, amadureceu a decisão de convidar-me para ser seu assistente e ministrar a disciplina de Antropologia Física, na verdade uma Introdução ao Estudo do Homem. Mais abaixo pretendo dar mais detalhes sobre essa disciplina.

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