Da Enxada à Cátedra [ 48 ]

Reunimos os pertences necessários para acampar por duas ou três noites. Como era verão não levamos barracas mas redes de dormir, mantimentos, roupas e calçados adequados para a empreitada. Embarcamos tudo no jeep do Pe. Balduino e enfrentamos os perto de 170 quilômetros de estrada, a partir de Gravatai toda ela de chão batido. Chegamos no final da tarde no Taimbézinho. Na época não se passava pela cidade de Cambará pois, o acesso ao canion se dava por uma estrada de campo que entrava à direita uns 8 a 10 quilômetros antes da cidade. Armamos as rede de dormir e acomodamos os demais pertences do acampamento sob as árvores onde hoje se encontram as instalações da sede do parque. Tomamos um banho na água cristalina e fria do rio ao lado, preparamos a janta e depois de um bom papo deitamos nas redes, as árvores como cobertura e as estrelas espiando por entre as frestas das copas. O silêncio eloquente à beira do abismo, o rumor da cascata a ecoar há milhões de anos naquela solidão abençoada então em processo rápido de profanação pelos madeireiros, o cri-cri dos grilos, o grito de alguma coruja solitária, o latido roco de algum lobo guará, o ar puro e perfumado ventilando os pulmões, inspirou os sonhos daquela noite balançando nas redes de exploradores. Ao clarear do dia recolhemos as redes e as acomodamos no jeep junto com demais pertences. Tomamos o café da manhã e nos aprontamos para passar o dia dentro do canion, fazer observações e principalmente tirar fotografias. Nenhuma nuvem no céu e nenhuma neblina naquele abismo ainda escuro. Só para lembrar. Naqueles idos de 1958 não havia nenhuma restrição para descer e percorrer o leito do rio no fundo. Cada qual com sua mochila nas costas contendo as provisões para passar o dia, aparelhos fotográficos e uma corda para vencer uma altura de cerca de 30 metros logo na entrada e mais uma corda para alguma eventualidade. Contornamos a piscina formada pela cascata do rio que se precipita por várias dezenas de metros do alto do paredão da direita e outra menor da mesma altura do lado esquerdo. Parecia estarmos num outro mundo. Dos dois lados os paredões de basalto subiam a 700 metros para o alto separados por apenas 600 metros. Lá do fundo a ilusão ótica sugeria a convergência da borda do campo da direita com a borda de mata nativa da esquerda. Os escolhos das rochas entre os quais se esgueirava a água do rio vistos do alto pareciam cascalhos um pouco maiores, eram blocos por vezes de um ou dois metros de altura. Foi preciso contorná-los ou passar por cima. Pelo meio dia tínhamos percorrido os cerca de 4 quilômetros até o ponto em que o canion dobra para esquerda e também coincide com a maior altura dos paredões. Acomodamo-nos sob uma saliência da rocha para o almoço para depois de um breve descanso enfrentar a volta para o acampamento.

Acomodados ao pé de um paredão de basalto de cerca de 700 metros a prumo, o rio murmurando aos pés, as copas das araucárias lá em cima a poucos metros da margem do precipício, a vegetação arbórea agarrada nas frestas dos encontros dos diversos derrames de lava e as nuvens parecendo brancos veleiros de Deus navegando lá no alto, foi um local perfeito para deixar correr livre a imaginação, ainda mais para um apaixonado pela “nossa casa”. Lá estávamos acomodados tomando um frugal almoço, bem no formato de exploradores e atrás de nós subindo à prumo um paredão de basalto moldado há 190 milhões de anos pelo fluxo e refluxo do magma fluido e pastoso das entranhas do nosso planeta. Mergulhado numa reflexão de milhões, dezenas de milhões anos, semestres, meses e semanas submergem na sua pequenez e insignificância na macro história da gênese do chão do qual surgimos, passamos a nossa existência e ao qual um dia retornaremos. Os noticiários que preocupam, neurotizam e/ou preenchem o diário das pessoas, reduzem-se a marolas que se desfazem na areia da praia. A dinâmica do imenso oceano, do “imenso mar do belo” de Homero, a história da “nossa casa”, “da nossa mãe e pátria”, segue seu ritmo inexorável, colocando no seu devido lugar a vaidade e a arrogância megalômana dos humanos que se julgam donos da verdade e criaturas superiores, acima do bem e do mal. Não passam, na verdade, como qualquer agricultor, varredor de rua, faxineira, dona de casa, operário de fábrica, feirante, etc., etc., de “Adam”, “Nascidoda Terra” e à qual voltarão, queiram ou não queiram, “porque são pó e ao pó retornarão,” como adverte a liturgia da quarta-feira de cinzas.

Lá pelas 14h o céu começou a nublar. Recolhemos os nossos pertences e começamos o caminho de volta pulando de pedra em pedra, contornando as maiores ou até passando por cima em casos em que o contorno foi impossível. As nuvens lá no alto escureciam cada vez mais. Trovões surdos e isolados no começo e mais frequentes com o entardecer prenunciavam chuva pesada. Uma densa camada de nevoeiro desceu até a meia altura dos paredões. Parecia que estávamos presos na penumbra de um túnel sem saída. Ao contornar a última dobra do canion antes de alcançar a cascata que se precipitava logo em frente à atual sede do parque, o tempo engrossou de vez. Os trovões faziam tremer os paredões acompanhados de uma chuva pesada. Pedras despencavam do alto e desfaziam-se em pedaços ao baterem nos escolhos do leito do rio. Escurecia rapidamente e a grande cascata aumentava assustadoramente de volume e saltava além da metade da piscina natural quase emendando com a outra que se precipitava do lado oposto. Petardos vindos do alto a cada trovão mais forte, a piscina natural ocupando toda a largura, o rio subindo e a escuridão tomando conta daquele túnel assustador, desaconselhavam qualquer tentativa de subir até o acampamento. À esquerda, perto da cascata uma saliência da rocha um pouco acima do nível do rio ofereceu abrigo contra a chuva e proteção contra as pedras que vinham do alto. Havia espaço mais que suficiente para abrigar os três exploradores e ascender um fogo com os galhos secos acumulados no local. Jantamos o que sobrara do almoço e nos conformamos em passar uma noite longa e desconfortável naquele fim de mundo. Para nossa sorte a temperatura não caiu muito. Não me lembro de termos passado frio. O Pe. Balduino acomodou-se no fundo e, pelo que me lembro chegou a dormir, valendo-se da mochila como travesseiro. Naquele ano de 1958 ele já não estava bem fisicamente embora com apenas 53 anos. Sofria de pressão alta somado a um considerável sobrepeso. O Alcides e eu passamos a noite praticamente em claro sentados no abrigo natural e um ou dois metros na nossa frente o rio subindo lentamente. Felizmente a chuva foi diminuindo e pela meia noite cessou de vez e com isso o nível do rio se estabilizou e ao clarear do dia começou a cair. A neblina sumira e com ela o túnel em que se transformara na noite anterior o fundo do canion. Fomos obrigados a esperar até depois do meio dia pois, o volume das duas cascatas em queda livre daquela altura desaconselhavam atravessar a nado a enorme piscina formada pelo grande volume de água. Não havia como contorna-las. Conclusão. Esperar até a diminuição do volume das quedas e seu recuo deixando espaço para passar a nado. Pela meia tarde atravessei a nado ida e volta a imensa piscina e decidimos sair daquela situação nada agradável. O Balduino avaliou a situação e chegou à conclusão que ele não teria fôlego para arriscar a travessia a nado. Felizmente a solução veio com uma corda de 30 metros que tínhamos levado para alguma eventualidade. Passamos um laço na altura do seu peito, atravessamos a nado levando a ponta da corda. Uma vez do doutro lado o Balduino entrou na água e nós como que o arrastamos para o lado oposto. Mas, as peripécias ainda não tinham terminado. Faltava vencer a subida. Quem conhece o parque lembra- se que o canion começa perto da sede atual do parque com um arroio que vem do campo e desce até uma certa altura onde o declive é interrompido por um degrau de rocha quase a prumo. Para descer ou subir só com uma corda. Na descida havíamos deixado uma corda amarrada numa árvore acima do degrau para facilitar a subida na volta. O Balduino molhado e exausto não tinha como subir sozinho. Firmamos a corda avulsa no peito abaixo dos seus braços. O Alcides e eu subimos pela outra corda para depois ajuda-lo a vencer o paredão de rocha. Uma vez em cima vencemos com facilidade a última rampa antes de chegar no acampamento. Depois da muita chuva da noite anterior tudo estava encharcado. Só me lembro que ele se sentou encostado numa árvore sem dizer uma palavra. Lembrei-me da garrafa de cachaça na mochila e ofereci-lhe um trago reforçado. Depois disso entregou os pontos. Tínhamos trancado no jeep com cabine de aço nossos pertences, roupas de reserva, mantimentos etc. Trocamos a roupa molhada e suja e, enquanto planejávamos como passar a noite naquela situação, apareceu um morador da vizinhança para informar-se sobre o nosso estado e convidou-nos para passar a noite numa casa perto do acampamento. Ele e alguns moradores da vizinhança sabiam da nossa descida para dentro do canion no dia anterior e que havíamos passado a noite retidos lá dentro. Ofereceu pernoite numa casa de madeira localizada mais ou menos onde hoje se encontra guarita da entrada do parque. Acomodamos a bagagem no jeep e nos apresentamos naquela casa. Uma senhora de meia idade nos recebeu e nos convidou para entrar. Era uma casa de madeira grande com vários quartos. Ela nos ofereceu dois deles para passar a noite, um menor para o Balduino e um maior para nós dois. O Balduino insistia em rezar o breviário e passei um bom trabalho para convence-lo de que no estado de exaustão em que se encontrava estava mais do que dispensado. Por fim, cedeu, acomodou-se na cama e dormiu um sono só até o clarear do dia na manhã seguinte. A dona da casa parecia ser viúva morando com duas filhas de seus 20 e poucos anos. O Alcides e eu ficamos conversando por algum tempo com as três mulheres detalhando a nossa aventura de dois dias e uma noite no fundo daquele “buraco”. Dormimos depois a noite inteira. Lembro-me apenas que antes de adormecer escutei conversas mas, sem desconfiar de nada, dormi a noite toda. Um céu sem nuvens nos brindou ao clarear o dia. Deixamos uma boa gorjeta para a dona da casa e uma caixa de uvas que tínhamos comprada numa tenda na estrada. Ela agradeceu e fez questão de deixar claro que ela nos tinha abrigado sem pedir nada em troca. No verão seguinte, visitamos novamente o taimbezinho, desta vez o Pe. Balduino, o Pe. Sehnem, o Reinoldo Ullmann e eu e acampamos numa serraria abandonada perto da atual sede do parque. Um senhor, não me lembro do nome, amigo do Balduino de outras visitas nos ofereceu uma galinhada por ele preparada no nosso acampamento. No meio da conversa não podiam faltar referências à aventura da noite passada no fundo do canion no verão anterior. Com um sorriso um tanto maroto perguntou. E vocês tem ideia do que foi a casa em que passaram a noite. Nada mais nada menos do que um “chineiro”, aquela senhora a dona e as meninas à espera dos clientes, peões e madeireiros da redondeza. Aí me dei conta do motivo da movimentação dentro daquela casa até altas horas da noite, além do grau de ingenuidade da minha parte e do Alcides de não ter desconfiado de nada. De qualquer maneira a justiça manda deixar o registro póstumo de reconhecimento àquela senhora que naquela situação fez valer a brasa da solidariedade ardendosob as cinzas de uma “profissão” presente em toda história humana. Não é aqui o lugar para uma avaliação antropológica, histórica, sociológica, filosófica, teológica e moral do fenômeno da prostituição. Limito-me a essa altura invocar o provérbio imortal deixado pelos antigos romanos: “De mortuis nihil nisi bonum” – “Dos mortos lembre-se apenas o bem que praticaram”.

This entry was posted on quinta-feira, 24 de outubro de 2024. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.