Da Enxada à Cátedra [ 51 ]

Como já lembrei mais acima o Pe. Henrique Pauquet, encarregado da assistência aos alunos do Anchieta, mandara construir uma Casa da Juventude no Morro do Sabiá no sul de Porto Alegre e uma segunda em Vila Oliva. A primeira destinava-se, como já anotei para alunos e professores do colégio passarem os fins de semana e feriados. As instalações da casa de Vila Oliva foram projetadas para oferecer uma ambiente sadio de férias a uma turma em janeiro e outra em fevereiro. Coube-me a mim acompanhar o grupo de janeiro de 1959 sob o comando do Pe. Armando Marocco e do Pe. Pauquet. O local oferecia múltiplas oportunidades para os rapazes da cidade grande gozarem de um mês em contato íntimo e permanente com a natureza. A minha tarefa consistia em acompanhá-los nessas mais variadas experiências. Às diversas modalidades de diversões diárias como natação na piscina, futebol de campo e de salão, basquete, tênis de mesa, outras programações, normalmente para grupos pequenos, complementavam o diário dessas férias. Foi essa parte que me coube acompanhar e cuidar para não acontecerem imprevistos comuns com rapazes não familiarizados com uma ambiente tão diferente do dia a dia que viviam na cidade. Um destino obrigatório vinha a ser a fábrica de celulose localizada poucos quilômetros de distância. Estava instalada no fundo de um vale na margem de um arroio de bom tamanho que descia do campo. Se não me falha a memória a trilha da descida consistia de em torno de 300 degraus de madeira. Descer e, principalmente, subir essa escada tirava o fôlego de qualquer atleta. A paisagem em volta daquela fábrica não podia ser mais exuberante e rica. A mata virgem cobria aquela encosta como na borda do campo em toda aquela região onde o rio Caí tem suas nascentes. Acontece, entretanto, que aquela usina de celulose devorara o que de mais imponente e mais simbólico aquele planalto emblemático oferecia: as araucárias. Cá e lá numa canhada inacessível podia-se admirar ainda um ou outro exemplar de maior porte. No demais só sobrevivera o mato branco.

Numa outra ocasião alguns rapazes sugeriram uma cavalgada até a localidade do “Bem-te-vi” alguns quilômetros distante. O Pe. Marocco encarregou-me de acompanhá-los. Vizinhos e amigos da casa de férias emprestaram os cavalos. No dia marcado pegamos cedo a estrada e, munidos com os comes e bebes indispensáveis para o dia, troteamos embalados pela brisa do campo coberto de orvalho, as gotas refletindo os primeiros raios do sol da manhã, parecendo cristais semeados no meio do capim. Em alguns pontos mais elevados no campo apareciam no barranco da estrada de chão, logo abaixo das raízes do capim, belos exemplares de ametistas. Até hoje arrependo-me de não ter desmontado para recolher alguns exemplares e guardá-los como lembrança. Resumindo. Nunca vou esquecer aquela cavalgada em companhia daqueles rapazes, filhos de famílias de classe média alta de Porto Alegre, despojados como se fossem peões de fazenda, longe da zoeira da cidade grande, enchendo os pulmões com o ar perfumado do planalto em vez da atmosfera poluída pelo odor do asfalto. Sabendo que eu estudava História Natural na universidade aproveitaram para se informar sobre as realidades naturais que compunham aquele cenário em estado ainda próximo do original. A um interessava a vegetação das manchas e capões de mato, a outro os animais silvestres da região, a outro ainda a história da origem e evolução das fazendas de criação de gado, a outro ainda a história geomorfológica daquele planalto. Chegados no Bem-te-vi acomodamo-nos na sombra de um belo capão, deixamos os cavalos pastar, almoçamos pão com linguiça regados com a água cristalina de um riacho rumorejando sobre seu leito de pedras. Em inúmeras ocasiões, ao repassar as muitas décadas da minha jornada, lembro-me daquela cavalgada e, sobretudo, daqueles rapazes cheios de sonhos. Não me lembro de mais tarde ter cruzado com algum deles assim como não guardei o nome de nenhum. De qualquer maneira todos eles vinham munidos com um potencial humano respeitável para fazê-los exímios em qualquer profissão, missão ou carreira que exigisse como pressuposto uma formação de nível superior somada a uma personalidade norteada por uma sólida consciência ética, cada vez mais rara nos dias de hoje.

Uma outra vivência marcante, agora em companhia do grupo todo de rapazes em férias, do Pe. Pauquet e Pe. Marocco, foi um acampamento na entrada de um pedaço de mata nativa à margem de um arroio, quase rio pulando de uma cascata de seus 10 metros perto do local. Passamos dois dias e uma noite acampados neste pedaço de paraíso. Até uma tatu assustado com a invasão do seu território, cruzou pelo acampamento e por pouco não encontrou sua toca que ficava sob as raízes de uma árvore secular logo ao lado do acampamento. Pouco aproveitei daquele acampamento. Durante a noite comecei a sentir febre, acompanhada de todos os incômodos que a costumam acompanhar: dor nas juntas, mal estar e por aí vai. O Pe. Marocco levou-me até a nossa sede na Casa da Juventude. A febre não cedeu. Pelo contrário subiu até 39o. Na outra manhã o mesmo o Pe. Maroco levou-me até o hospital “dal Mesi” em Caxias do Sul. O diagnóstico acusou uma nefrite aguda. Resultado. Fiquei internado durante uma semana no hospital. Depois da alta no hospital o Pe. Marocco foi buscar-me e passei os poucos dias que sobravam da temporada na casa de Vila Oliva. Neste meio tempo fui protagonista de uma episódio que ilustra bem a distância que o morar numa grande cidade significa em termos de distanciamento, senão rompimento das raízes do homem com seu chão. O abastecimento da piscina da Casa da Juventude vinha de um córrego de bom volume que descia da encosta. Certo dia, com a piscina transbordando, chamei dois rapazes e pedi que fossem fechar a torneira do córrego um pouco encosta acima no meio do mato. Seguiram o curso da água e embrenharam-se no mato. Depois de uma boa demora voltaram para comunicar que não tinha localizado a torneira. Ficaram desapontados ao se darem conta da obviedade de que não havia torneira alguma para interromper o fluxo de um córrego no meio do mato.

Com o término do mês de janeiro encerrou também o período de férias na Cassa da Juventude. Reunimos os nossos pertences e fomos pegar o trem em Caxias do Sul e voltar a Porto Alegre. Esqueci-me de lembrar que também a viagem de ida para o começo das férias foi de trem de Porto Alegre a Caxias do Sul e de lá na carroceria aberta de um caminhão de carga até Vila Oliva, passando por Ana Rech e Fazenda Souza.

Para o mês de fevereiro o Pe. Balduino convidou-me para passar uma semana acampado no Itaimbezinho na companhia do Pe. Luiz Sehnem e do meu colega Reinholdo Ullmann. Como no ano anterior viajamos no jeep do Balduino. Acampamos numa serraria desativada bem próxima ao canion, um pouco adiante da atual sede do parque. Desta vez não programamos nenhuma descida. Exploramos as redondezas de ambas as margens, evitando a aproximação com as serrarias pois, elas tinham sido intimadas a encerrar as atividades devido ao decreto de utilidade pública daquela área e a consequente proibição de continuar derrubando araucárias. Eles sabiam muito bem que o empenho do Pe. Balduino junto ao governo do Estado fora o responsável decisivo pela desapropriação. Portanto, a prudência aconselhava manter distância dos madeireiros em fase de encerramento das atividades na área do futuro parque. O Ullmann e eu nos revezávamos, ora acompanhando o Pe. Sehnem ou o Pe. Balduino nas suas incursões de coleta de musgos o primeiro e de fanerógamos o segundo. Passamos dias tranquilos, sem chuva e sem qualquer outro incidente de maior importância. Terminada a temporada de aproximadamente 10 dias retornamos a Porto Alegre em meados de fevereiro. Antes do começo do semestre letivo em março, aproveitei junto com outros professores do Anchieta para preparar-me para as aulas no Colégio e o começo do último ano do bacharelado em História Natural na UFRGS, na casa de retiros da Vila Manresa no morro da Glória.

Todo o ano de 1959 transcorreu sem maiores tropeços nem na atividade docente no Colégio Anchieta, nem como estudante de História Natural na Universidade Federal. Em fins de novembro submeti-me com êxito aos exames finais na Faculdade e a solenidade da formatura como bacharel em História Natural ocorreu no começo de dezembro no salão de atos da Reitoria já lembrada mais acima.

Não posso deixar branco em branco uma série de tarefas paralelas à docência no Colégio Anchieta e à frequência das preleções no curso de História Natural na universidade. Em 1957 o Pe. Urbano Thiesen diretor da Faculdade de Filosofia de São Leopoldo, acrescida do curso de Letras Clássicas e Pedagogia, até então privativos a membros da Ordem, anunciou numa sessão solene da câmara de vereadores de São Leopoldo, a decisão tomada pelos superiores maiores dos jesuítas, de abrir ao público leigo o acesso à faculdade e criar novos cursos e faculdades. A programação previa a implantação os cursos de Ciências Sociais e História Natural em 1958 e em 1959 a Faculdade de Ciências Econômicas. Acontece que, como já lembrei mais acima, o embrião da História Natural já fora criado pelo Pe. Hauser e por mim ainda no Cristo Rei em 1955. Bastava dar-lhe o formato de acordo com a legislação então em vigor, ampliar suas instalações e equipamentos, transferi-los para um dos prédios do antigo Seminário Central, vagos pela transferência dos seminaristas para Viamão e sendo preparados para receber a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras e novas faculdades que deveriam ser criadas sucessivamente. O Pe. Thiesen assumiu a coordenação do conjunto de providências legais e burocráticas no nível acadêmico. Em resumo tratava-se de estruturar os cursos novos atendendo ao figurino exigido pelo Ministério da Educação e reunir um corpo docente de alto nível. Na minha condição de aluno de História Natural na UFRGS, além de professor de Ciências no Colégio Anchieta, mantinha um bom e amplo relacionamento com professores e especialistas nos diversos campos dessa área. Foi por isso que o Pe. Thiesen pediu a minha colaboração no projeto físico da instalação dos laboratórios na nova sede do curso e, o que foi mais importante, sugerir nomes capacitados para serem convidados e comporem o corpo docente e orientar a pesquisa nas diversas especialidades. A responsabilidade pela área da botânica coube ou Pe. Luiz Sehnem com o nome consolidado como especialista em musgos. Como zoólogo especializado em serpentes entrou o Pe. Ernesto Mauermann. Para as demais áreas foi preciso recorrer a docentes e pesquisadores leigos. Foi dessa tarefa que o Pe. Thiesen me encarregou. Falei com meu professor de Mineralogia da UFRGS, prof. Ely Denhardt que aceitou com visível prazer o convite. Outro prof. meu, Eugênio Gruman e prof. Paulo Lacerda e Ruben G. Dantas aceitaram o convite. Com o Pe. Hauser como coordenador onipresente e incansável, este foi o corpo docente fundador do Curso de História Natural da Unisinos. Já em 1959 comecei a lecionar Geologia.

A pedido do Pe. Thiesen colaborei com a estruturação acadêmica e recrutamento do corpo docente e implantação do curso de Ciências sociais, também em 1958.

Em 1959, ainda sob a responsabilidade do Pe. Thiesen com a assessória e colaboração do Dr. Armando Câmara foi implantada a faculdade de Ciências Econômicas. A minha participação do projeto resumiu-se em localizar e convidar o prof. Alexandre Vertes, imigrante húngaro com doutorado em Budapest. Localizei-o na Avenida Otávio Rocha como chefe do escritório de representação dos “colchões Epeda”. Aceitou o convite na hora. Naquele primeiro encontro nasceu uma grande amizade entre mim, um jovem estudante e estreando como docente no ensino superior e aquele senhor de mais de 50 anos, veterano da Segunda Guerra Mundial, integrante das tropas alemãs no famoso cerco frustrado a Stalingrado.

Para maiores detalhes sobre esse lapso de tempo da História da sucessiva consolidação da Unisinos na segunda metade da década de 1950, recomendo meu livro sobre o Projeto Educacional dos Jesuítas no Sul do Brasil, editado em 2009 pela editora daquela universidade com o título “Um sonho e uma Realidade”

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