Da Enxada à Cátedra [ 53 ]

Passo agora a registrar como foi a minha estreia como docente na UFRGS. Na Unisinos comecei a lecionar já em 1959 a disciplina de Geologia no Curso de História Natural. Só para lembrar. Em 1960 na estrutura acadêmica das universidades vigorava ainda o regime de “cátedra” regida pelos catedráticos ocupando o topo da carreira docente. A eles cabia a responsabilidade e a autoridade para propor e impor o currículo da disciplina pela qual respondia. A eles cabia também o privilégio de indicar os assistentes. Foi nesse formato da constituição do corpo docente que o catedrático de Etnografia e Etnologia, por sinal meu irmão Pe. Balduino, me convidou para ser seu assistente. A primeira impressão que se pode ter é que se tratava de um decisão próxima ao nepotismo. Não o foi por uma razão, melhor por várias razões. A etnografia e a etnologia demandavam como ponto de partida, como fundamento uma “introdução ao estudo e conhecimento do homem”. No programa da disciplinam constavam a dimensão do homem como espécie biológica como as demais espécies vivas; a morfologia e a fisiologia humana; a inserção simbiótica do homem no seu meio ambiente geográfico; as raças humanas e sua dispersão pelos continentes e ilhas do planeta, enfim os conhecimentos sobre a espécie humana então reunidos sob o conceito de Antropologia Física. Já que para dar conta desse perfil de programação exigiam-se conhecimentos de biologia, zoologia, botânica, geologia, geografia, genética, em resumo de Ciências Naturais e eu conquistara o bacharelado nessa área em 1959, fui convidado para assumir a Antropologia Física a partir de março de 1960.

Na liturgia do ingresso e progressão como docente nas universidades federais da época constava uma ano de experiência que conferia o título de “instrutor de ensino superior”. Ao término desse período o “instrutor” era submetido ao um exame, melhor concurso e, se aprovado, efetivado como professor instrutor, depois assistente, com a sanção do ministério da educação e da chancela do Presidente da República e enquadrado como funcionário federal nos termos do estatuto do servidor público. Mais adiante irei detalhar esse ritual.

Acontece que há sessenta anos passados a literatura cobrindo as diversas dimensões contempladas pelo conceito de Antropologia Física era quase exclusivamente de procedência alemã, francesa ou inglesa. Foi essa a preocupação que me levou a elaborar um texto básico, em outras palavras, uma “Introdução ao Estudo do Homem”, como subsídio para os alunos. Guardo como uma relíquia um exemplar do original desse manual, na época carinhosamente conhecido como “sebenta” no jargão da universidade pois, passava de mão em mão por gerações. Nos meus planos está uma revisão daquele texto, atualizá-lo e publicá-lo no formato de um livro.

A primeira terça-feira de tarde de março de 1960 marcou o momento da ocasião inesquecível de retornar à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, não como aluno, mas como professor. Submeti-me naquela tarde ao exame médico e acertei na secretaria da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, comandada com competência, eficiência e visível orgulho do cargo pelo qual respondia, a Sra. Mafalda, os detalhes da rotina burocrática. Ela entregou-me o caderno contendo os conteúdos a serem ministrados e o registro dos tópicos ministrados em cada semana. Tudo acertado minha primeira preleção aconteceria na manhã seguinte. Pernoitei no Colégio Anchieta, na época ainda na rua Duque de Caxias. Lá recebi as últimas instruções e recomendações do Pe. Balduino, meu catedrático na universidade. Na manhã seguinte caminhei até o prédio da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras na rua Paulo Gama com a esquina Osvaldo Aranha. É bom lembrar que estamos no ano de 1960, portanto, antes de começar o Concílio Vaticano II. Apresentei-me para dar a primeira aula na universidade no traje clerical da época: batina preta e calçados combinando. Hoje, 60 anos passados, alguém circulando nas ruas de Porto Alegre e, mais ainda, nas dependências da universidade assustaria a qualquer um como um personagem saído dum baú guardado em algum museu. Na época ninguém estranhava pois, todos os religiosos circulavam nos mais diversos ambientes, também públicos, trajando os hábitos das respetivas ordens e congregações. Os jesuítas, ordem a quem pertencia naquele momento, vestiam uma batina preta, sapatos pretos. Não costumava usar o chapéu clerical que fazia parte da indumentária. Com esse traje apresentei-me na manhã da primeira quarta-feira de março de 1960 na sala de aula para a estreia de uma jornada acadêmica que se estenderia por 30 anos ininterruptos. Deparei-me com uma turma de cerca de 20 alunos, a maioria alunas. Fui recebido sem estranheza pois, para os alunos procedentes das confissões religiosas diversas, inclusive ateus e marxistas, sabiam que eu era jesuíta e, por isso, era óbvio que me apresentaria com a indumentária clerical usual e obrigatória e familiar a todos. Pelo que me lembro não percebi nenhuma estranheza, menos ainda manifestações de hostilidade da parte dos alunos. Na minha frente, na primeira fila sentavam três alunos, o Deodoro Martins, o Werner Altmann e Arno Kern que, anos depois, seriam meus colegas de docência na UFRGS e na Unisinos. No final daquela primeira aula entreguei aos alunos uma cópia datilografada do texto, a “sebenta” de 113 páginas que elaborara para que eles fizessem as cópias que fossem necessárias para subsidiar as preleções. Guardo até hoje o original todo a amarelecido como uma relíquia sempre bem à vista na minha modesta biblioteca, lembrando-me cada vez que entre no meu escritório, daquela memorável primeira quarta-feira de março de 1960. Como já lembrei pretendo dar uma revisada na ortografia e na estrutura técnica daquele texto, sem tirar nem acrescentar nada e, quem sabe publicá-lo para que os interessados pela Antropologia do terceiro milênio, possam fazer uma ideia dos conteúdos oferecidos aos estudantes na disciplina sob minha responsabilidade que, torno a repetir, pelo conteúdo programático, merece o título de “Uma Introdução ao Estudo do Homem”.Resumo em grandes linhas o conteúdo apresentado aos alunos sob o guarda-chuva desse conceito. Depois de uma contextualização introdutória com destaque para a conceituação histórica, sua evolução acompanhando a compreensão do homem, da humanidade sugerido pelo o avanço das Ciências Naturais, das Ciências Humanas, das Letras e Artes, da Filosofia, inclusive da Teologia. O primeiro capítulo foi reservado para a “Biologia Humana”, isto é, o homem ontologicamente ou existencialmente inserido na natureza, dela fazendo parte e sujeito às suas leis como qualquer outra espécie de seres vivos. Num segundo momento entram os fundamentos da genética: a base biológica da hereditariedade, a estrutura do DNA e sua dinâmica, sua importância na evolução dos seres vivos, as leis de Mendel, as mutações e suas repercussões negativas ou positivas sobre todas espécies vivas incluindo o homem, os grupos sanguíneos, caracteres físicos normais e patológicos de natureza hereditária e, por fim, a discussão sobre um tema sempre atual: a Eugenia pela manipulação genética com seu potencial positivo e negativo como instrumento de melhoria ou manipulação irresponsável do homem. O capítulo II, por assim dizer complementa e amplia o anterior, mas agora tendo com objeto exclusivamente o homem, com o título: “A Miscigenação Humana”. A temática foi subdividida nos seguintes subcapítulos: Primeiro. Os contatos humanos e seus mecanismos como: a migração dos campos para as cidades - a substituição por diferença e natalidade - áreas cultas – pontos de dispersão – colonialismo – migrações – vizinhança geográfica – povos nômades – povos de alta natalidade; Segundo. Comportamento quanto à miscigenação; Terceiro. Miscigenação e humanidade de hoje; Quarto. Exemplos de miscigenação; Quinto. Resultados da miscigenação. O capítulo terceiro: Adaptação e aclimatação do homem: A seleção natural – Teoria da evolução – o clima – umidade do ar – pressão atmosférica – composição química do ar – a irradiação do sol – altitude e latitude – os ventos – a carga elétrica – doenças equatoriais ou de regiões frias – a natureza do solo – mecanismos de adaptação. Capítulo quarto. As raças humanas. Alguns conceitos – Como surge uma raça – quando surgiram as raças humanas – características raciais - Classificações raciais: Lineu, Blumenbach, Deniker, Fritsch, Stratz, Montandon, Weinert, Fischer, Eikstedt, Bernatzik. Nas preleções adotei a classificação de Eickstedt, inclusive valendo-me de slides de personagens típicos de cada grupo maior.

A segunda parte da programação do semestre foi dedicada à história, características físicas, culturais e localização geográfica das raças humanas historicamente conhecidas. Adotando a terminologia de Eickstedt, comecei com os Európidos: a) O ambiente geográfico – b) Os európidos primitivos – c). Características gerais dos európidos; os Mongólidos: características gerais – as raças mongólidas – o ambiente geográfico – características gerais dos mongólidos; Os Négridos: a Pré-história – a Situação atual dos négridos africanos: os Etíopes e o Sahara – b) contatos e reação no Sudão – c) a fuga dos Coisânidos e a conquista da floresta – d) populações da floresta do Congo; os Sibíridos – a) os Sibíridos originais – b) os Sibíridos Túngidos; os Esquímidos: a) características – b). Cultura; Os Túngidas: a). Localização geográfica – b) Centro dinâmico – c) Expansão racial – d) migrações históricas – e) características; Os Sínidos_ a) localização geográfica – b) divisão – c) expansão – características – d) cultura – e) sociedade – d) organização política; O reino de Anam_ a) posição geográfica – b) habitantes – c) conquista - características – sociedade – cultura. A Coreia: a) país de transição – b) geografia – c) habitantes – d) características – e) história – f) língua – g) cultura; Japão: a) geografia – b) origem e divisão dos habitantes – c) características – d) vestuário, habitação, alimentação, agricultura, pesca – e) cultura, sociedade, religião; Paleomomgólidos: a) localização geográfica – b) expansão – c) características; Indiândidos: a) origem – b) divisão – c) localização geográfica – d) cultura.

Naquele remoto ano de 1960 os recursos didáticos não passavam do quadro negro, de mapas convencionais, mapas desenhados por mim para ilustrar tópicos específicos, como por ex., a dispersão histórica dos povos africanos, a dinâmica da ocupação do oriente remoto, etc., projetor de slides, um crânio humano com os instrumentos de medição para determinar as características cefálicas, fundamentais para identificar e diferenciar as raças. Para não perder o fio condutor das preleções organizei o esquema datilografado em cartões 15x28 e na medida em que a preleção progredia escrevia o esquema no quadro negro. Guardo até hoje parte desses cartões como relíquia junto com o manuscrito original da “sebenta”.

This entry was posted on quarta-feira, 30 de outubro de 2024. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.