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A Natureza como Síntese - 38

O exemplo clássico neste particular é o transporte do oxigênio dos pulmões para todos os tecidos. Todo o processo resume-se  no restabelecimento do equilíbrio químico entre o oxigênio,  a hemoglobina e a oxihemoglobina. Em concentrações elevadas o oxigênio é transferido para o sangue e combina-se quimicamente com a hemoglobina. Por fim na baixa pressão do oxigênio nos tecidos, desfaz-se a oxihemoglobina e o oxigênio é liberado. Como se pode  verificar realiza-se neste particular um verdadeiro equilíbrio embora muito efêmero. O mesmo já não se pode afirmar do organismo como um todo. Os processos de troca  de elementos levam a um estado estacionário, não, porém, de equilíbrio no verdadeiro sentido da palavra. Apesar de aparentemente estacionário a afluência de elementos  novos e a eliminação dos resíduos, é ininterrupta em qualquer organismo vivo.

Conclui-se daí por uma evidente diferença de fundo entre um sistema em equilíbrio e um organismo. No primeiro caso tem-se um sistema de todo em todo estacionário. O equilíbrio é total no todo e entre as diversas partes. As partes componentes não reclamam o aporte de matérias primas novas e a eliminação de sobras e resíduos, simplesmente porque não os há. Nada entra e nada sai. O sistema em tais situações está fechado a qualquer exigência e o equilíbrio é perfeito. Os componentes de um sistema fechado dessa natureza permanecem sempre idênticos e imutáveis. No organismo vivo as coisas passam-se de maneira bem diferente. Mesmo que à primeira vista se pareça com um sistema estacionário acontecem nele atividades constantes. Os componentes  do organismo como sistema estacionário são renovados, substituídos, incorporados, oxidados e os resíduos eliminados, num fluxo contínuo enquanto a vida estiver presente. Trata-se, portanto, de um sistema estacionário aberto em oposição ao sistema estacionário fechado dos sistemas anorgânicos e orgânicos sem vida. Enquanto a entrada, a elaboração química, a incorporação e a eliminação se calibram e se equilibram mutuamente, estamos frente a um organismo vivo. “A vida, portanto, consiste na mudança automática de dupla face, ou no metabolismo automático”. (Bertalanffy, 1951, p. 50)

Todos os organismos vivos, a começar pelos unicelulares mais simples até os metazoários mais complexos, são sistemas abertos estacionários e cada qual, de acordo com seu modo peculiar de ser, realiza o auto-metabolismo. A partir dos mais diversos elementos  como carbono, oxigênio, nitrogênio, etc., cada espécie de organismo elabora e incorpora a quantidade e a qualidade exata de que necessita para continuar vivo.

Depois de definir e descrever o que vem a ser um sistema aberto von Bertalanffy avança para  mostrar que o organismo vivo vem a ser o produto de uma estruturação múltipla  de extrema complexidade.  Resulta do concurso harmonioso de milhares de subsistemas maiores ou menores, mais ou menos complexos, que calibram e ajustam sua participação no todo funcional que é um organismo vivo. Explicando. O organismo compõe-se de células, tecidos, órgãos, aparelhos e sistemas. Observando sob a ótica funcional a célula por si só já é um minúsculo e complexo sistema aberto. Sendo assim ela é capaz de vida própria quando se apresenta como protozoário, ameba, alga unicelular ou outro qualquer. O mesmo pode afirmar-se, ao menos em termos, das células embrionárias e células-tronco dos metazoários. Tratando-se, porém, de células especializadas, funcionalmente direcionados nos organismos vivos superiores, elas só desempenharão suas funções específicas quando incorporadas estrutural e funcionalmente no respectivo tecido, órgão, aparelho ou sistema. Um tecido  ou um órgão separado do organismo como um todo não tarda a perder todas as atividades próprias de um sistema aberto. Morre em pouco tempo e decompõe-se. Mesmo no caso de transplante de órgãos não muda o essencial dessa realidade. Acontece que o coração de alguém que morreu num acidente, mesmo parado, ainda dispõe de um prazo limitado, dentro do qual está em condições de retomar suas atividades e funções, sob a condição de ser incorporado por  transplante, num outro organismo similar.

O organismo, portanto, fundamenta-se  nas condições de sua construção sistêmica, mantém-se  em intercâmbio constante com suas partes. Von Bertalanffy afirma no segundo volume da sua “Theoretische Biologie”: “Todo o sistema orgânico vivo acha-se em constante troca  de elementos. Sua característica  básica  consiste no fato de que o sistema como um  todo  sustenta-se pela mudança ininterrupta de suas partes”. (Bertalanffy, 1951, p. 49)

A engenhosa arquitetura  do organismo faz prever  uma estreita dependência entre as diferentes  partes. Nenhuma delas, entretanto, se basta a si mesma. Suas peculiaridades só se manifestam quando em interação com as demais. Cada elemento em particular executa sua função pela interação com as outras, tendo como  finalidade a preservação o bem-estar  e harmonia do todo.

No sistema que é o organismo vivo, portanto, observa-se uma total hierarquia e harmonia de funções e competências. Reina uma perfeita coordenação entre todas as partes. O organismo é uma complexa e refinada e harmoniosa estrutura de sistemas abertos, começando pelos mais elementares que são as células aos mais complexos como são os órgãos, os aparelhos e os sistemas. Acontece que nenhum deles em particular se basta a si mesmo. Numa integração harmônica constituem o organismo vivo. Mas é importante ressaltar  outro viés dessa situação. O conceito e as particularidades do organismo não resultam da soma matemática das funções das partes e a compreensão dos processos de interação que ocorre entre elas. Percebe-se algo a mais. E é este “a mais” que faz a diferença entre um organismo vivo e um cadáver. O empiricamente constatável consiste no fato de que de um  sistema aberto de equilíbrio instável que caracteriza o ser vivo, passa-se para um sistema fechado de equilíbrio estável. Mas o diferencial mesmo observa-se nos efeitos que escapam às análises próprias das ciências chamadas exatas. Não é aqui o lugar e o momento de entrarmos mais  a fundo na análise de como e a partir de que “fator”, que “causa”, que “motor”, faz com que um sistema aberto de equilíbrio instável, passa à categoria de um organismo vivo que se reproduz, que mantém as funções vitais, que nos metazoários são garantidas pelas complexas estruturas e funções especializadas dos tecidos, órgãos,  aparelhos e sistemas, harmonicamente sincronizados, integrados e calibrados. E na medida em que se sobe na escala das categorias dos seres vivos ou organismos vivos, a complexificação das estruturas e funções orgânicas  condicionam manifestações que  se somam umas às outras. Começam com a vegetatividade, passam pela sensibilidade, por diversos estágios e graus de instinto, consciência e memória, ainda a nível pré-humano. E, finalmente, com o surgimento do homem, o vegetativo, o sensitivo, o instintivo, a consciência  e a memória, encontram a sua culminância na “Consciência Reflexa”.  

A Natureza como Síntese - 37

Organismo – Sistema.  O Organismo é definido por Bertalanffy como sendo “uma estruturação de sistemas abertos, o qual fundamentado nas condições da construção sistêmica, conserva-se  em intercâmbio com as partes”. Essa definição foi o resultado das pesquisas de von Bertalanffy e de outros sobre a natureza do organismo vivo. É válido na sua essência para todos os seres vivos independentemente da sua posição na hierarquia da complexificação da natureza. Vale, portanto, tanto para os protozoários quanto para os mamíferos ou aves situados no topo da escala taxonômica. Os aprofundamentos posteriores às constatações do autor, assim como as dos especialistas seus contemporâneos, não alteraram na essência da compreensão o conceito de organismo. O que se pode afirmar é que muitos dados e muitas observações novas depõem a seu favor. 

A compreensão do que seja um organismo vivo, assim como o apresenta von Bertalanffy, pede uma análise dos elementos que o integram.  Em primeiro lugar o organismo vivo é um sistema aberto “no qual entra material novo e outro já servido e ou não aproveitável é descartado”. (Bertalanffy, 1949, p.124) Em outras palavras e explicando, é supérfluo afirmar que não há nenhuma dificuldade em distinguir um ser vivo de um cadáver. A constatação sobre a qual a observação empírica não deixa dúvidas, vem a ser a consequência de uma realidade biológica que acontece na base celular, tanto dos protozoários quanto dos metazoários. Nesses últimos repercute como resultado no organismo como um todo, apresentando-o como vivo ou como morto. E em que consiste em última análise no plano biológico a diferença entre “a vida e a morte?”. Consiste no fato de que a vida está presente num organismo enquanto ele perdurar como um sistema aberto. No momento em que essa condição cessa, instala-se a condição de morte, de sistema fechado, com todas as suas consequências a curto, médio e longo prazo. A condição de ser vivo requer que todas as partes do organismo, individual e integradamente funcionem como sistemas abertos. Nessa situação as células, desde as menos até as mais complexas, não são construções fechadas nem acabadas. Acontece nelas um contínuo e ininterrupto afluxo de matérias primas, de suprimentos novos. Eles são elaborados e preparados para servir às necessidades biológicas do organismo e pela corrente sanguínea carregadas a todos os tecidos, órgãos, aparelhos e sistemas. O metabolismo se encarrega de incorporar parte nas estruturas em constante renovação ou transformá-las na energia indispensável para garantir o bom andamento das atividades e funções vitais. As sobras e os resíduos da atividade metabólica são, por sua vez, encaminhados para o exterior e descartados pelos órgãos e aparelhos específicos: pulmões, rins, pele e intestinos. A natureza desses processos em permanente fluir, requerem pela própria natureza o aporte ininterrupto de “matérias primas” que são processadas pelos respectivos órgãos, transportados para os seus destinos e as sobras e resíduos descartados. Observado pelo viés da física estamos diante de um sistema de equilíbrio instável semelhante a um rio que flui alimentado sem parar pelas fontes e despejando sem parar suas águas no mar. Verifica-se, portanto, um permanente tender ao equilíbrio, sem nunca completá-lo. Em outras palavras, estamos diante de um sistema de equilíbrio instável. Na sua obra “Teoria Geral do Sistemas”  von Bertalanffy resumiu  a questão:

 Há anos atrás foi indicado que as características fundamentais da vida, metabolismo, crescimento desenvolvimento, auto-regulação, resposta a estímulos, atividade espontânea, etc., podem ser consideradas em última análise consequências  do fato de o organismo ser um sistema aberto. (Bertalanffy, 2009, p. 202)

No momento em que, por uma razão qualquer, cessa o afluxo de elementos novos, interrompe-se em cadeia a atividade metabólica e fecha-se também a porta de saída para os resíduos. O sistema entra em equilíbrio, o rio transforma-se em lago, o organismo em cadáver. Mas o autor chama a atenção a um outro aspecto do organismo vivo como sistema de equilíbrio instável. Ao mesmo tempo é verdade que o organismo considerado na sua totalidade oferece propriedades muito próximas às dos sistemas químicos em equilíbrio.

Nas células e nos organismos pluricelulares encontram-se combinações bem definidas, relações constantes entre os diversos componentes, num sistema químico em perfeito equilíbrio. Esse fenômeno é inteiramente independente da quantidade absoluta de componentes em organismos de diversos tamanhos. Conserva-se constante no acréscimo alternado, isto é, na mudança de aceitação  de elementos nutritivos e na mudança das condições externas. (Bertalanffy, 1951, p. 49)

Exemplificando. O fato pode ser comparado, ressalvadas as devidas peculiaridades, a um, dez ou um milhão de litros de água. O componente fixo e constante em qualquer um desses volumes  é sempre o H20. Seja numa gota ou seja num lago o H20 é o responsável que o líquido nos dois casos seja a mesma água. Um fenômeno semelhante ocorre no organismo vivo. Independente de qualquer tamanho, complexidade, forma externa, modalidade de adaptação ao ambiente externo, encontram-se nos organismos elementos estáveis que fazem com que o funcionamento dos processos vitais, na sua natureza físico-química e fisiológica, não difiram essencialmente daquilo que é responsável pela vida  biológica nos organismos superiores mais complexos.

No organismo vivo, entretanto, independentemente do tamanho e da complexidade, os elementos básicos não são peças estáticas e circunscritas rigidamente a uma situação bem definida e delimitada. Sua ação não se confina à vizinhança mais imediata, mas de alguma forma perpassa o organismo como um todo. Trata-se de um fenômeno análogo ao o que acontece  num sistema de vasos comunicantes. Acrescentando-se ou subtraindo-se uma porção, não importa o tamanho, o volume do conjunto do sistema é alterado. Ou, introduzindo  uma gota de corante numa extremidade do sistema, ele se alastra pouco a pouco pelo volume todo contido nos vasos comunicantes. De forma semelhante, quando no organismo vivo há acréscimos, subtrações ou modificações nos seus componentes básicos, o efeito positivo ou negativo far-se-á sentir de alguma forma no sistema como um todo. Em outros termos. No momento em que algum dos componentes essenciais ao organismo vivo sofrer alterações negativas o reflexo não tardará em manifestar-se no todo e na proporção do potencial do dano embutido na alteração negativa da porção do organismo afetada. O inverso também é verdade. O vigor de um tecido ou órgão qualquer reflete-se no todo na mesma proporção da sua importância na manutenção do sistema como um todo. Assim um coração ou um fígado em bom funcionamento fazem com que o todo suporte com maior facilidade abalos mais sérios causados em outros órgãos. E vice-versa, um coração comprometido transforma-se num fator de preocupação permanente quando o todo do organismo é submetido a situações de risco. “Esta é a base da regulação orgânica”, (Bertalanffy, 1951, p. 49) conclui von Bertalanffy.

Embora o organismo como uma totalidade não possa ser considerado como um sistema em equilíbrio, sob muitos aspectos assemelha-se aos sistemas químicos em equilíbrio. “A aplicação de princípios de equilíbrio físico-químico, especialmente a lei da atuação da massa e do equilíbrio químico, são de importância fundamental para a compreensão dos processos fisiológicos”. (Bertalanffy,1951, p. 49)

A Natureza como Síntese - 36

Ludwig von Bertalanffy (1900-1972)

O perfil de Ludwig von Bertalanffy.  Nas páginas acima  as nossas  reflexões tiveram como linha orientadora as conclusões sobre a natureza de cientistas que também foram religiosos. Como não podia deixar de ser, suas conclusões sobre a origem, a evolução e o destino final do universo ao alcance dos métodos das ciências experimentais, tiveram como fio condutor subliminar, o compromisso com postulados filosóficos e teológicos inegociáveis. Fizeram de tudo para que a seriedade e a credibilidade da pesquisa dos objetos específicos de cada um não fosse viciado pela filiação doutrinária. Na formulação das sínteses parciais e, de modo especial, nas globais esse comprometimento teve uma importância decisiva, na condição de pano de fundo, que serviu de moldura. Foi assim com Erich Wassmann, Teilhard de Chardin e de maneira mais flagrante com Balduino Rambo. Discreta ou  declaradamente adeptos do criacionismo, a lógica dos dados científicos que foram identificando em suas especialidades, foram-se alinhando para uma concepção holística, unitária e sintética da natureza.  Nas páginas que seguem pretendemos identificar a partir de resultados obtidos por autoridades, de referência mundial  em suas especialidades, como também eles concluíram pela unidade da natureza, possível somente quando as Ciências Naturais, as Ciências Humanas e as Letras e as  Artes se complementam mutuamente. Selecionamos os nomes dentre as maiores autoridades em Biologia: Ludwig von Bertalanffy, em Genética: Thedosius Dobschansky e Francis Collins, em Zoologia: Edward Wilson. Somamos aos cientistas o Filósofo da Esperança: Ernst Bloch.

Ludwig von Bertalanffy é mais um desses representantes emblemáticos que empenharam o melhor dos seus esforços e talentos no sentido de encontrar na natureza algo mais do que elementos  justapostos, leis  físicas e processos biológicos atuando fortuitamente, sem vinculações a nível de causas e efeitos. Nasceu na época em que as Leis de Mendel foram por assim dizer redescobertas e fizeram sua entrada triunfal na galeria das descobertas mais revolucionárias da biologia. A sua entrada no mundo das Ciências Naturais e da Filosofia como adolescente na universidade de Innsbruck, coincidiu com os famosos debates que se travavam entre Ernst Haeckel e seus admiradores, os profetas do monismo materialistas e Hans Driesch, Erich Wassamnn, Carl von Baer, Oscar Hertwig, Teilhard de Chardin, defensores de uma compreensão holística da natureza. Ludwig von Bertalanffy consolidou e formulou a sua proposta organísmico-sistêmica do mundo e da natureza, na mesma época, nas décadas de 1920 a 1950, em que Teilhard de Chardin concebeu  a sua grandiosa visão do universo, da natureza e do homem e Balduino Rambo deixou em seu diário os fundamentos para  uma síntese não menos ousada entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Mas as coincidências não se limitam ao período cronológico em que os nomes citados consolidaram as suas concepções. Identificam-se também pela formação que lhes serviu de plataforma para ousarem enfrentar tamanhos desafios. 

É supérfluo insistir que Nicolau de Cusa dispunha de excelente formação filosófica e teológica e, a partir dessas perspectivas formulou a sua cosmovisão do mundo, sintetizada  na afirmação “ex partibus omnibus  ellucet totum”. Na mesma linha situa-se Erich Wassmann ao dar forma à sua visão científico-filosófica do universo e da natureza. Na condição de padre jesuíta vinha munido com a formação clássica, filosófica e teológica que a ordem exigia dos seus membros na época, isto é, segunda metade do século XIX e primeira do século XX. Sobre esse pano de fundo soube harmonizar perfeitamente sólidos conhecimentos de Ciências Naturais em suas pesquisas pioneiras sobre a vida nas colônias de formigas e térmites. Somente uma formação tão abrangente habilitou-o a propor uma ponte, à primeira vista talvez muito simples, mas, de tão simples, supunha uma compreensão na qual as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, tem condições reais de celebrar um encontro que leva a compreender a unidade na pluralidade de formas e a origem e natureza da complexidade dos processos que operam na natureza. Wassmann ensina que cabe ao Cientista, munido com seus instrumentos de trabalho e os métodos apropriados, as abordagens empíricas, apresentar o “Weltbild”, o retrato, a representação do mundo. Este vai sendo retocado, redesenhado e atualizado na medida e no ritmo em que os cientistas e a ciência descobrem novos dados. Munidos com eles  reformulam ou abandonam afirmações ultrapassadas e atropeladas por novas descobertas que levam à proposição de novas teorias e hipóteses. Por natureza, portanto, o “Weltbild” é tão dinâmico quanto é dinâmica a própria Ciência. 

Segundo Wassmann, a tarefa do Filósofo consiste em, a partir dos dados fornecidos pela Ciência e a forma  peculiar de processá-los do ponto de vista das reflexões intelectuais que sugerem, conceber a “Weltauffassung”,  a cosmovisão. Fica claro, portanto, que para entender cada variável em particular que entra na composição da natureza e o conjunto delas formando um todo, requer-se o esforço solidário do cientista e do filósofo. Não há condições de, a partir de uma abordagem unilateral oferecer respostas conclusivas sobre a natureza dos fenômenos naturais, as leis e os processos que os comandam e, de modo especial, que tipo de totalidade, de todo ou unidade que   formam, além das causas  que explicam a sua origem e a teleologia que determina o seu rumo. Conclui-se que  o caminho para a compreensão do universo e da natureza precisa ser trilhado num esforço  solidário pelas Ciências  Naturais e as Ciências do Espírito. Trata-se de uma missão a ser cumprida a muitas  mãos sob pena de deixar para trás graves lacunas que prejudicam tanto um quanto o outro lado. Conclui-se ainda que é de uma vantagem difícil de avaliar se o cientista vem munido com uma sólida bagagem de conhecimentos humanísticos com destaque para a Filosofia e o filósofo de posse de informações científicas amplas e profundas. Sob este aspecto Ludwig von Bertalanffy vem a ser um exemplo clássico. Começou a sua formação em História da Arte e Filosofia na universidade de Innsbruck concluindo-a na universidade de Viena. Os conhecimentos de matemática, física, química, ciências naturais e humanas, indispensáveis para a sua visão organísmica e sistêmica da natureza, adquiriu-as sobre essa base. Mas tentemos condensar a cosmovisão de Bertalanffy.  

Bertalanffy  conquistou definitivamente um nome respeitado entre os pensadores e cientistas do século XX por apontar ao cientista, ao filósofo e ao teólogo um caminho para superar as dificuldades de diálogo que se tinham instalado entre essas diversas áreas do conhecimento. Na evolução do pensamento de Bertalanffy observam-se dois momentos de amadurecimento. O primeiro aconteceu no final da década de 1940 e princípios de 1950. Em 1949 saiu pela Edit. Franke o “Biologisches Weltbild” e em 1951 pela mesma editora a obra em dois volumes da “Theoretische Biologie”. No primeiro, um volume relativamente modesto, o autor expõe a concepção “organísmica” do ser vivo. “Theoretische Biologie” em dois alentados volumes, reúne por assim dizer, os dados empíricos que forneceram as bases científicas para o “Biologisches Weltbild.” O segundo momento  do amadurecimento e consolidação do pensamento de von Bertalanffy, situa-se no final da década de 1960. Culmina com a publicação da “General Theory of Systems”, publicado em 1968, traduzida para o português  com o titulo “Teoria Geral dos Sistemas”, editado pela “Vozes de Petrópolis”. 

Entre a publicação do “Biologisches Weltbild” e “General Theory of Systems”, passaram-se 20 anos. Von Bertalanffy como pensador e cientista incansável foi ampliando e aprofundando as bases empíricas sobre as quais e a partir das quais terminaria formulando a “Teoria Geral dos Sistemas”. Essa obra por assim dizer, resume a caminhada científica e filosófica do autor, falecido em 1972. O fio condutor, o “Leitmotiv”, do esforço de três décadas de rigorosas investigações científicas, complementadas por reflexões de não menor profundidade, resultaram numa obra que não pode passar despercebida para aqueles que lidam com questões de fronteira entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. O ponto de partida parece ter sido uma aproximação da questão mais pelo lado filosófico do que pelo científico no sentido rigoroso do termo, pois, uma conferência de von Bertalanffy publicada em Viena em 1947, leva o titulo: “Vom Sinn und der Einheit der Naturwissenchaften” – “O Sentido e a Unidade das Ciências Naturais”. Dois anos mais tarde veio à luz o “Biolgisches Weltbild” no qual, apoiado em observações  empíricas, o organismo vivo é visto e descrito como um “sistema aberto”, que não pode ser entendido como simples soma das estruturas e funções  que o integram. Mas este é um assunto a ser aprofundado mais abaixo. 

Estamos, portanto, diante de um filósofo-cientista que vai procurar na matemática, na física, na química e nos diversos campos da biologia, elementos e argumentos capazes de dar solidez ao seu edifício organísmico-sistêmico. Observa-se neste particular um parentesco não declarado entre o paradigma conceitual e o caminho para implementá-lo entre Bertalanffy e Erich Wassmann. Este atribui às Ciências Naturais o papel de desenhar o “Weltbild”, o quadro, o estado da arte momentâneo da natureza, sugerido pelos dados científicos disponíveis num determinado momento.  Bertalanffy vale-se do mesmo conceito com o mesmo sentido no livro “Biologisches Weltbild e o faz permear as páginas da “Teoria Geral dos Sistemas”. Não se vale do conceito de “Weltauffassung” com o destaque que lhe dá Wassmann, mas no último parágrafo da obra conclui com uma declaração inequívoca neste sentido.
A concepção mecanicista do mundo dominante no século passado relacionava-se estreitamente com o predomínio da máquina, a concepção teórica dos seres vivos como máquinas e a mecanização do próprio homem. Os conceitos cunhados pelos modernos  progressos científicos têm porém sua mais evidente exemplificação na própria vida. Assim há a esperança  de que o novo conceito do mundo estabelecido pela ciência seja a expressão de um progresso dirigido para um novo estágio da cultura humana. (Bertalanffy. Teoria Geral dos Sistemas. Op. Cit. p.333)

Depois dessas considerações  introdutórias sobre Ludwig von Bertalanffy, vamos dedicar aos conceitos de “Organismo e Sistema” o espaço necessário para entender o que o autor entende quando os enuncia. 

A Natureza como Síntese - 35

Postas essas premissas  seriam necessários os seguintes passos para a formulação do corpo da síntese. Primeiro. A leitura e a compreensão das síntese elaboradas pelos mestres do passado, com destaque para Platão, Santo Agostinho, Aristóteles, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Nicolau de Cusa, principalmente. O importante nesse esforço deveria ser um encontro direto com esses sábios e suas obras buscando compreendê-los no original, deixando de lado versões e interpretações  que ocupam estantes inteiras em inúmeras  bibliotecas. Neste particular coloca-se obviamente um dos maiores desafios para quem se dispõe a abraçar a tarefa de formular uma síntese compreensiva da natureza no seu todo. Para começar pede-se um conhecimento profundo do espírito da língua grega e latina, para arriscar uma compreensão o menos possível viciada pelas idiosincracias  pessoais dos tradutores e intérpretes e mais próximas possíveis do entendimento objetivo dos autores. No caso de Aristóteles o desafio torna-se praticamente insuperável pois, as versões latinas de sua obra foram baseadas em traduções  árabes do original grego. A leitura das obras de Platão, Agostinho, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Nicolau de Cusa podem ser feitas no original e por isso oferecem dificuldades menores, sob a condição do conhecimento profundo do grego e do latim. Em segundo lugar é preciso inventariar os resultados das pesquisas e descobertas científicas que se tornaram marcos referenciais, desde o final da Idade Média até hoje.

Na introdução da segunda parte é indispensável que se apresente o cenário criado pela dicotomia que resultou da divisão do conhecimento pela Ciência de um lado e o da Fé, do outro ou, se preferirmos, os conhecimentos fornecidos pelas Ciências Naturais, as Ciência do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes. Nesse embate em que as Ciências Naturais e as demais Ciências encastelaram-se cada  qual no próprio casulo hermético, reivindicando, num clima de fundamentalismo a exclusividade para dar respostas conclusivas sobre a natureza do universo, da natureza e do homem. O clímax desse dessa guerra que nunca foi necessária e na qual ambos arraiais saíram perdendo, aconteceu na segunda metade do século XIX e no começo do século XX. Salvo melhor juízo, os momentos de maior acirramento se concentraram nos anos do Concílio Vaticano I, na década de 1870 e no pontificado d Pio X, nos primeiros 15 anos do século passado. Depois, em começos do século XX começam a perceber-se os primeiros sinais de armistício entre as duas partes. As descobertas da leis fundamentais da hereditariedade pelo monge Gregor Mendel, as pesquisas sobre o funcionamento das colônias de formigas e térmites, conduzidas com o máximo  rigor científico, do jesuíta Erich Wassmann, a formulação da teoria do Vitalismo por Hans Driesch e outras propostas nessa linha, foram os primeiros indícios de que, em pensando bem, o radicalismo  científico e o radicalismo filosófico e teológico, com suas posições fundamentalistas, poderia ser superado. A autoridade máxima da Igreja Católica faria o seu primeiro pronunciamento oficial na Encíclica Divino Aflante Spiritu de Pio XII de 1943 e, de modo especial,  ma Carta Encílcia “Humani Generis” de 1950. Nesses  documentos oficiais da Igreja liberavam-se oficialmente os católicos e os religiosos a falar e admitir teses cruciais vindas do lado das Ciências Naturais, como a Evolução em geral e o Darwinismo em particular, obviamente no que se refere aos processos biológicos. Questões teológicas como a Criação divina, a alma imortal e outras questões desse nível permaneciam, no âmbito privativo da doutrina oficial da Igreja. Dos  seis sucessores de Pio XII cinco ampliaram essa abertura em favor da legitimação e consequentemente aceitação das conquistas da Ciência. O papa Francisco brindou  em junho do presente ano cientistas, teólogos, filósofos, ecologistas e todos que de algum modo se ocupam e preocupam  com o nosso planeta, ou a nossa “querência” se preferirem,  com magnífico e lúcido documento que é a Carta Encíclica  “Laudato Si”. Nela reforça que os seus antecessores, desde Pio XII, ensinaram sobre a relação da Ciência com os ensinamentos da Igreja Católica e entrando fundo nas grandes questões que envolvem a compreensão da Natureza e seus reflexos sobre a fé, sobre a relação existencial do homem com o meio ambiente e obrigação moral de zelar pelo bem comum que é a Natureza.

É preciso também não perder de vista de que a Filosofia Clássica e a Escolástica nascidas no contexto da Idade Média, são essencialmente especulativas, descoladas do mundo real que a Ciência foi descobrindo a partir da Renascença. A Filosofia Natural da antiguidade é de natureza inteiramente especulativa. A Fé perpassava todo o pensamento da Idade Média. Com isso passou despercebido que  a multiplicação, a diversificação e o aprofundamento das Ciências Naturais foram revelando uma dimensão do universo e do mundo que não encontra lugar na tradição teológica e filosófica que predominou absolutamente até o começo da Renascença. Nesse contexto a revelação que contava era àquela transmitida pelas Escrituras Sagradas e interpretadas ao pé da letra. O contexto em que foram escritas com suas particularidades históricas e circunstanciais não admitia que essas narrativas viessem carregadas de cacoetes histórico culturais inspirados na tradição judaico cristã. Não se admitia na interpretação dos textos sagrados que a narrativa  se valia de recursos literários como metáforas, alegorias e outros mais. Encontrar nesses textos raízes e influências como do Livro dos Mortos do Egito, ou Gulgamesh da Mesopotâmia, costumava ser interpretado como heresia. Até a advertência de São Paulo na Carta aos Romanos de que ninguém está escusado por não conhecer Deus porque a natureza é o livro aberto que O revela a todos que souberem interpretá-la, parece que não era levada muito a sério. 

A partir do momento em que a pesquisa científica com se método analítico foi iluminando  cada vez mais facetas do mundo natural,  o  Livro da Revelação de que fala São Paulo, foi abrindo suas páginas escritas em códigos  foram sendo interpretados na medida em que a Ciência progredia e penetrava cada vez mais fundo nos arcanos da natureza. Foi essa nova realidade que se encontra na base da revolução do pensamento no decorrer dos últimos 600 anos e que levou Rambo a fazer a observação.

Até hoje se levou pouco em consideração o fato  de que, com o início da era moderna, ter começado uma Revelação Divina toda nova. Refiro-me  à Revelação através da Natureza. Evidente que ela existiu desde o princípio. Entretanto,  só com o despontar da era das Ciências Naturais ela foi desvendada ao Homem. É também este um passo à frente na busca da globalidade e uma caminhada constante em direção à plenitude dos tempos. (Rambo, 1994, p. 266)

No esboço de proposta da  síntese que pretendia elaborar Rambo explica a necessidade de mostrar que a Escolástica parte, no seu conjunto, da unidade para a multiplicidade. As Ciências Naturais aproximam-se da questão pelo lado oposto, isto é, da multiplicidade para a unidade. Algo inteiramente novo impôs-se com a entrada para valer das Ciências Naturais. Embora as leis universais tenham permanecido as mesmas, seu significado abriu o horizonte para uma amplitude insuspeitada do significado  e da importância do conhecimento e da compreensão da Natureza.. (A humanidade foi alvo de uma nova Revelação do Universo, só que ela ainda não conseguiu acertar o passo para decifrá-la”. (Rambo, 1994, p. 266).

Vale aqui chamar a atenção de que se passaram 70 anos desde que a observação acima foi escrita. De lá para cá as conquistas da Ciência e a consequente compreensão de como funciona a Natureza, fez progressos gigantescos. Os resultados fruto do esforço honesto de legiões de pesquisadores avançando sempre mais sobre os fundamentos do mundo natural em centenas de laboratórios espalhados pelos cinco continentes, estão se aproximando das fronteiras que separam os conhecimentos conquistados pela aproximação sintético-dedutiva da Filosofia e os conhecimentos fruto da análise indutiva da parte da Ciência. Rambo registrou em seu diário entre 1944 e 1961  os conteúdos, os elementos  que deveriam compor a formulação da síntese que se propunha colocar no papel como resultado de suas pesquisas científicas e, principalmente, das  reflexões diárias durante as duas décadas. A sua intenção fora dedicar 20 anos de sua vida a essa obra. Infelizmente não lhe foi concedido esse tempo. Quando se punha a começar o trabalho sucumbiu inesperadamente a um aneurisma cerebral em 11 de setembro de 1961, com apenas 56 anos de idade. Deixou a matéria prima para a sonhada síntese como herança para alguém com coragem suficiente para enfrentar o desafio. 

Entretanto, analisaremos as obras de alguns cientistas contemporâneos a Rambo que entre 1945 e 1970,  formularam sínteses na linha sonhada por ele. O primeiro foi Teilhard de Chardin, seu irmão de ordem. A síntese por ele proposta na sua obra clássica “O Fenômeno Humano” (1955) e o texto complementar com ênfase no papel do homem nesse cenário “O Lugar do Homem na Natureza”, (1950), serviram de base para o capítulo que precedeu ao presente. Contemporâneos foram também Ludwig von Bertalanffy e Thodosius Dobzhansky que serão os contemplados nos dois capítulos que seguem. Von Bertalanffy (1900-1972), partindo da Biologia e valendo-se de modelos matemáticos para trabalhar os dados publicou a “Teoria Geral dos Sistemas” em 1969. Remetemos a descrição e interpretação dessa síntese para o capítulo que segue. Theodosius Dobzhansky (1900-1974) objeto de análise de capítulo posterior, foi um dos geneticistas mais importantes da segunda metade do século XX. Entre os muitos artigos e livros que publicou sobre sua especialidade “A Herança e a Natureza do Homem (1964) é o que se ocupa com as questões de fronteira entre as Ciências Naturais com ênfase na genética, Ciências do Espírito e Ciências Humanas. Reservamos o penúltimo capítulo também a um geneticista, desta vez o Diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapeamento do código genético humano, Francis Collins e seu livro que ainda está marcando época “A Linguagem de Deus” (2006). E para finalizar os nosso trabalho apresentamos o “livro “A Criação – como salvar a vida na terra” (2006) de Edward Wilson entre os maiores especialistas em Entomologia e estudioso dos ecossistemas naturais e humanizados e se auto-classificou como Humanista Secular.

Obviamente a lista de cientistas, teólogos, filósofos, humanistas, literatos e artistas que de alguma maneira se empenharam em trabalhar as fronteiras do conhecimento  nas respectivas especialidades somam muito mais. Dar a devida atenção a todos e às suas propostas, ultrapassa as nossa pretensões.

A Natureza como Síntese - 34

Uma proposta de síntese

Numa reflexão anotada no diário de 17 de julho de 1946, Rambo deixou um esboço da síntese abrangendo todos os campos do saber que se propunha a elaborar. Assumia essa tarefa como a missão maior da sua vida. Conta que ele e seu irmão de ordem Pe. Jorge Steiger, estavam elaborando o discurso que o recém eleito cardeal D. Jaime de Barros Câmara pronunciaria na homenagem que os intelectuais de Porto Alegre lhe fariam na ocasião. Conversa vai conversa vem e o assunto só poderia ser algo de nível para os dois intelectuais que eram o Pe. Rambo  e  o Pe. Steiger. A certa altura este observou que a partir da Idade Média não se formulou mais nenhuma síntese que abrangesse o conhecimento na sua totalidade. O que Tomás de  Aquino e Alberto Magno foram para a Alta Idade Média algum sábio moderno deveria ser para os tempos atuais. Essa observação despertou e pôs em ebulição todo um universo de preocupações científicas, filosóficas e religiosas que, há anos, formaram, por assim dizer, o eixo em torno do qual giravam  as  reflexões do Pe. Rambo e foram o motor a dar sentido à sua atividade científica. Passar das reflexões sem compromisso formal, para concretizar a formulação daquela abrangência, pressupunha em primeiro lugar uma avaliação até que ponto a síntese elaborada por Tomás de Aquino, Alberto Magno e demais pensadores e sábios da Idade Média não se tronara obsoleta ou então até que ponto era preciso validá-la no cenário criado pelas Ciências Naturais. Rambo chega questionar a utilidade do sistema aristotélico-tomista como suporte para lidar com o novo cenário. Pergunta se não convinha abandonar os dois sistemas e começar tudo de novo a partir de Platão. Nesse caso o sistema aristotélico-tomista seria chamado a contribuir na medida em que fosse necessário ou conveniente. Para ele o velho racionalismo que é o cerne desse sistema não oferece potencial suficiente para entender a  complexidade da natureza. Permanece útil apenas se enquadrado nas “leis perenes do pensamento humano”, pois

"Entre a Ciência e a Fé estende-se o vasto campo da intuição, que não é outra coisa senão um conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do significado e da expressão imediata  da palavra, como do som subliminar que emite a ressonância que desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana até hoje se  prestou muito pouca atenção. Bem considerada, ela não é um som secundário e sim a nota dominante no concerto musical do espírito dinâmico do Homem." (Rambo, 1994, p. 265)

Bem interpretada  essa afirmação leva à conclusão de que nem as Ciências com sua capacidade analítica dos fenômenos naturais, nem Filosofia e a Teologia com se poder análise sintética, são capazes de chegar ao cerne da questão, isto é, oferecer o elemento, ou os elementos que fundem numa mega-síntese os conhecimentos obtidos via analítica e sintética. Recorrendo a uma metáfora. Qual é natureza do conhecimento, “ a pedra de fecho” que faz com que estruturas convergentes se “fechem” num arco ou numa cúpula. Para Rambo essa “pedra de fecho”, sem a qual não se completa a síntese universal é o conhecimento adquirido pela intuição, pela percepção sensorial, levando ao conhecimento condensado, é o que de fato permite falar em síntese. 

A ideia força sobre a qual deve fundamentar-se uma síntese global foi assim resumida por ele: 
Uma verdadeira síntese das Ciências Naturais deve abranger o seguinte pensamento universal: tudo que acontece na natureza é uma reversão para a unidade e para Deus. Sugestivo em extremo se torna este pensamento, ao nos servirmos da seguinte analogia: da multiplicidade máxima, a Natureza retorna à unidade máxima no ser humano. E a Ciência Natural igualmente procura regredir da máxima dispersão para a simplificação  e a unidade. (Rambo, 1994, o. 265)

É oportuno chamar  a atenção para a semelhança senão uma outra versão dessa concepção da natureza de Teilhard de Chardin. A metáfora dos meridianos terrestres que partem do polo sul, do “alfa”, em direção ao equador, para se multiplicarem e diversificarem e aparentemente se dispersarem, para retornarem em busca da unidade no polo norte, o “ômega”. Não consta que os dois cientistas e filósofos jesuítas contemporâneos, se tenham conhecido e estivessem ao par do pensamento um do outro. O retorno à unidade é uma tendência em todos os elementos da natureza, incluindo os elementos químicos anorgânicos e orgânicos, as leis e os fenômenos físicos, todas as formas de vida, a começar pelas arqueobactérias, até as formas mais complexas, tudo comandado pela evolução. Esse poderia ser o conteúdo da primeira  parte da obra sobre a Síntese proposta por Rambo. 

O pensamento central a orientar a segunda parte da obra ocupar-se-ia com os diversos graus ou níveis que levam ao retorno da unidade. Não se trata de avanços aleatórios, sem regra, mas de uma forma organizada, talvez melhor, planejada, e por isso mesmo, conduzida por uma teleologia. Partindo desse pressuposto foi composta a tábua periódica dos elementos, a taxonomia no reino animal e vegetal e a sucessão das eras geológicas. Nesse processo percebe-se de saída que se trata de uma dinâmica e os diversos componentes avançam em ritmos diferentes, algumas ramificações definham e morrem no meio do caminho, enquanto outras mais bem adaptadas se robustecem e seguem vitoriosas até que a mudança das circunstâncias interfere ao ponto de frear o dinamismo e até inviabilizar a continuidade da sua existência. O responsável pela unidade das espécies vivas é o resultado da unidade na direção ou, se preferirmos, pela teleologia que orienta o todo e as partes individuais. Preserva-se assim a unidade na pluralidade e a pluralidade na unidade que se constitui na tese dessa síntese universal. Acontece que a teleologia que comanda o acontecer na natureza pressupõe, por sua vez, unidade de origem. 

Na época em que Rambo fez essas anotações em seu diário, isto é, 1946, a genética e a biologia molecular fornecendo a prova maior para a unidade de origem de todas as espécies vivas, estava  apenas engatinhando com as pesquisas de Thodosius Dobzhansky e outros especialistas na área. O que na época ninguém punha mais em dúvida eram as leis de Mendel com sua validade universal, tanto para animais quanto para vegetais. O grau de identidade do genoma, tanto na sua composição química, quanto na sua importância na condução da evolução, no sucesso das espécies vivas, no surgimento de novas e  na eliminação de tantas outras, ficaria evidente somente na seis décadas posteriores. Hoje 80 anos depois em que dispomos de todas evidências científicas apontando para a unidade essencial do genoma, desde as arqueobactérias até as formas de vida vegetal e animal mais complexas e evoluídas, o autor provavelmente não escreveria mais que a unidade tinha “provavelmente” (Rambo, 1994, p. 266), mas “evidentemente” ou mesmo “certamente” um argumento sólido da “origem comum”.

A Natureza como Síntese - 33

Seria um grande engano pensar que o Pe. Rambo dava vazão à compreensão do Mundo e da Natureza e à relação  existencial que cultivava com ela, quando em contato com cenários que nunca tinha visto de perto. Por ocasião da sua permanência no Rio de Janeiro, auxiliando o Pe. Arnaldo Bruxel na microfilmagem da coleção “De Angelis” na Biblioteca Nacional desenhou num intervalo, a paisagem das montanhas que formam o anfiteatro da cidade.

Ai sentava eu, creio que foi na tarde de sábado santo, junto à janela e alongava o olhar em direção ao Corcovado. Pouco antes tinha chovido, mas agora o ofuscante sol tropical brilhava sobre rochas, matos e cidade. As listas de água que pouco antes tinham desabado, precipitavam-se em forma de furiosos regatos outeiros abaixo, deslizando agora como feixes de metal faiscantes por entre a ramagem rasteira num colorido verde-claro. As palmeiras ao pé dos rochedos e o vale alcantilado balançavam silenciosas os seus leques na brisa, que soprava em direção à planície. Qual tapete de alfombras com centenas de matizes de verde estendia-se a mata virgem por sobre as colinas oblíquas, diluindo-se  à distância no firmamento cerúleo. Bem lá no alto serpejava um manto azulado de neblina e de sol doirado, em volta da imagem do Cristo Redentor da montanha.

Longas horas eu sentava ali abismado com a imponência da selva tropical. Sentia imensa nostalgia dos tempos de antanho, quando me era dado apanhar, sem mais, as imagens contempladas nas malhas da linguagem escrita e entretecê-las com os pensamentos mais sublimes de minha alma, como reluzente e preciosa pedraria. Parecia-me então ser indigno de mim deixar-me afogar no trabalho externo, enquanto a melhor parte da minha humanidade estiolava e se deteriorava. Parecia-me que todo o esforço para a aquisição de novos conhecimentos não compensava o preço  elevado que todo o dia eu pagava por isso; que eu devia chamar de volta os espíritos amistosos dos tempos idos, quando então buscava com menos afã a erudição fria, sentindo-me, no entanto, bem mais  enriquecido de coração, mais rico em criatividade, mais rico em Deus. (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)

A paisagem com a qual, consolidou, desde o final dos anos de 1930 até o seu falecimento, uma relação existencial tão profunda que a chamou de “minha pátria na terra”, foi o planalto do Rio Grande do Sul, com seus campos, capões, matas, pinheirais, canyons, escarpas e precipícios. Cambará e arredores são  o ponto de referência e convergência desse cenário. As anotações que deixou foram extraídas do diário que escreveu durante uma estadia, durante os meses de janeiro e fevereiro de 1948, naquela região. 

Essas caminhadas pela neblina, essas noites com seu leve prurido de chuva junto à janela, as gotas continuamente estalando nas árvores, chamam para a interioridade. Então a alma liberta-se dos fogos fátuos do dia resplandecente, e ela entra em silêncio no seu mundo mais íntimo, no reino do ser envolvido no sonho de todas as coisas. Luzes distantes e vozes se perdem em seu eco e migram através desta terra espiritual carregada de pressentimentos. Alguém caminha na névoa da noite com passos tão leves como o murmúrio da neblina. Ele é único e chama meu nome nesta terra solitária. Ó tu, noite silenciosa e santa solidão.

A orla oriental é constituída pela vista panorâmica para as maiores distâncias, pela sinuosidade brusca das formas perto da planície e com a força perene da névoa em efervescência.

São únicas as pinturas da natureza na bela terra de Deus, como as da garganta da Pedra Branca.  Poderia chamar-se o quadro de precipícios perpendiculares e de cataratas troantes, de névoas efervescentes e trovoadas uivantes, de mata silente e escolhos altos, cheios de clarividências pétreas, de pintura imperfeita, mas bem mais do que isso. É uma construção gigantesca de força e simplicidade que nunca para de rolar para a frente. Alguém mora nessas profundezas que sussurram, alguém observa nesta torre solitária de vigia. Ele chama o eco, apascenta a névoa, brinca com o raio e o trovão nos lugares solitários.

Na ampla baixada, os lagos refulgentes e o mar-oceano aos sussurros ficam depois desta paisagem. Ao olhar ao longe da parede anterior, há pressentimento das distâncias infinitas. O sentir predominante é o da preeminência sobre o vapor, a poeira, o calor e a fastidiosa multidão humana. Rochas cinzentas, mata verde, água murmurante e correntes estagnadas, amplas planícies, nuvens migrantes e, finalmente, o mar insondável: também isso é solidão da alma com Deus! O espírito de Deus sopra em toda a parte. Quem ergue o chão de sua alma na solidão de Deus há de levar esse sentimento mesmo em meio à multidão insana.

Nunca esquecerei  minha despedida da orla oriental. Meu cavalo avançou à vontade pelo campo florido. Atrás de mim as névoas condensadas, vindas do precipício rolavam pelo campo. É o atrito da planura inferior que faz surgir esse verdadeiro rolar e rodar. Essas neblina fria rodou sobre mim e me envolveu. Murmuravam os arroios e cochichavam os pinheiros. Era a saudade de épocas  geológicas distantes, dos irmãos do Chile e dos parentes de muito além do Oceano Atlântico, nas ilhas solitárias do Mar do Sul.
 
Agradeço a Deus e levo saudades desta terra hospitaleira. Se possuo uma pátria no mundo, ela está no planalto calmo e sereno à sombra dos pinheirais. (Rambo, Balduino. Diário. 09 de fevereiro de 1948).

A Natureza como Síntese - 32

Mais  acima já apontamos que o Pe. Rambo nasceu em 1905 numa propriedade rural de pequenos agricultores no vale do rio Caí. Na época havia poucos moradores no planalto da parte superior daquele rio. A casa em que passou sua infância, toda construída em madeira, desde os fundamentos até a cobertura do telhado, ficava  poucos metros da mata virgem que cobria mais da metade da propriedade. Por ter sido o primeiro filho do casal Nicolau e Gertrudes, somado ao fato de o seguinte irmão somente nasceu quatro anos depois, fez de Balduino um menino solitário. Teve como companhia e como brinquedo dos primeiros anos da infância, a floresta virgem com suas árvores, seus pássaros e seus animais silvestres. Ele mesmo deixou escrito no diário que seu “brinquedo predileto foram as árvores da floresta”. Com isso interiorizou uma relação profunda, indelével e existencial  com ela. Par ele seria para o resto da vida, uma fonte de reflexões, de simbolismos, de vivências, como nenhuma outra realidade da natureza. Uma caminhada solitária por alguma floresta, despertava nele os sentimentos mais vigorosos, as emoções mais profundas, os simbolismos e as metáforas mais surpreendentes. Parece que, perambulando por alguma floresta, um poderoso vulcão, irrompia do mais profundo do seu ser. Em seu diário relatando a visita ao parque de Yosemite descreveu um desses momentos, ao caminhar pela floresta  de sequoias  gigantes.

Em meio à floresta sem igual há um pequeno museu no qual o professor universitário Frank Potter e sua esposa explicam aos hóspedes tudo que merece ser conhecido. Onde as sequoias se concentram em grande número, como em volta desse museu, difunde-se por toda a parte na floresta, o brilho marrom vermelho da sua casca. Centenas de árvores novas que se confundem com ciprestes ladeiam os caminhos. Misturadas com as sequoias e formando a massa principal da floresta, crescem milhares de cedros da Califórnia, pinheiros brancos, pinheiros Douglas. Em altura não perdem para  os gigantes, embora raras vezes passem de dois metros de diâmetro. Um líquen amarelo-ouro reveste o tronco do pinheiro branco. O reflexo mescla-se com o marrom claro da casca da sequoia e, combinando com as manchas de sol e sombra, resulta numa luz colorida de extrema suavidade, envolvendo o chão de toda a floresta. Sem querer, a gente se descobre e sente-se pequenino como um camundongo entre esses gigantes reunidos em conselho. Que cantos não teriam deixado os poetas cantores do Antigo Testamento, ao falarem com tanta empolgação dos cedros do Líbano e dos gigantes de Monte Sião, se tivessem escutado a voz de Deus nessas florestas. Enquanto Davi e Salomão cantavam seus salmos; quando Isaías anunciava ao seu povo a futura vinda do Filho do Homem; quando Ezequiel contemplava o Senhor dos dias sentado no trono da sua glória, mais de mil anos já pesavam  sobre muitas dessas árvores. O Gryzzly Gigante contava com dois mil anos quando no Golgota foi erguida aquela árvore da qual cantamos: “Verdadeira árvore na qual pendeu o Senhor, mergulhado em angustia mortal”. O canto de luto do paraíso, o canto da árvores da vida dos deuses germânicos, o canto de vitória da árvore da Redenção. Toda a simbólica das sagas  e da arte da humanidade toma conta do caminhante na penumbra mortiça dessa floresta. Há muitas verdades entre o céu e a terra que não se encontram nos livros. Revelam-se no silêncio da floresta. (Rambo, Balduino. Três meses na América. 1956. Manuscrito. p. 154-155)

Depois da visita aos parques do oeste a programação previa uma visita ao parque nacional do Grand Canyon. A viagem foi de ônibus. Ao ler os apontamentos do diário em que descreve essa viagem nos mínimos detalhes, desdobra-se diante da imaginação um mapa tão perfeito, tão detalhada e tão real, que simula a impressão da participação física da vivência. A estrada cruza o território que foi o palco da saga da conquista do oeste pelos cawboys. Como era do seu hábito, antes de uma etapa de viagem, o Pe. Rambo lia obras que descreviam as características geográficas e contavam a história e as histórias de que o percurso tinha sido o palco no passado. Alimentava uma indisfarçável simpatia por aqueles  personagens rudes que consolidaram a conquista do oeste americano. Ele deve ter visto nesses pioneiros réplicas dos guerreiros da antiga Hélade que desfilam pelos cantos da Odisséia e da ilíada de Homero, obra que o acompanhava por onde quer que viajasse. Não deixava de ler diariamente pelo menos um ou outro canto no original grego. Descreveu a personalidade do cawboy como sendo o rancheiro modelo de virtudes e o homem que se contrapõe ao vilão igualmente presença obrigatória naquele contexto, portador de todas as más qualidades que um homem é capaz de carregar consigo. O conflito entre os dois é inevitável porque o mau rancheiro é ladrão de gado, bandido mascarado e assassino em série. O bom rancheiro é defensor da lei, protetor dos fracos e um homem que às vezes até reza. Ambos atiram igualmente bem, com uma mão, com as duas, para frente, para trás, simultaneamente para a direita e a esquerda. A ambos acompanha um bando de cawboys que cavalgam tão bem quanto atiram, leais no mal, leais no bem, exímios no beber, exímios no dançar, grandes na bandalheira, contudo cavalheiros até a morte para com a mulher honrada. Mas é contemplando a grandiosidade do Grand Canyon que o Pe. Rambo desenha mais um desses mapas que são marca registrada sua. A natureza inanimada é povoada por animais, pássaros e uma galeria de personagens históricos, procedentes de vários continentes e de diversas culturas, sugerindo uma bela amostra do “melting pot”, do cenário de síntese histórica e cultural que são os Estados Unidos da América do Norte.

A margem oposta eleva-se a 1700 metros. A maior altitude alcança os 2500 metros, quase encostando na região das altas montanhas. Um anfiteatro único no mundo descortina-se diante dos olhos. Sobre o leito do rio eleva-se  gradativamente o Tonto Plateau, coberto pelo Sagebrush (arbusto de lugares semi-desérticos), até ser substituído pelos terraços, as torres e os castelos de rochas mais acima. Os degraus envoltos nas cores amarelo, marrom, ferrugem, recuam cada vez mais. Sobrepõem-se na medida em que sobem, até terminar em dorsos isolados de  montanhas com formato de mesas e pontas rombudas, não poucas vezes distantes uns dos outros. Os americanos buscaram os nomes no mundo dos deuses e das lendas para essas montanhas singulares. Ergue-se aí o templo de Shiva, de Buda e de Brahma da mitologia indú; o templo de Confúcio da antiguidade chinesa, o templo de Zaratustra da antiga mitologia persa; o Walhala das lendas dos deuses germânicos, o trono de Siegfried da canção épica alemã. Mais abaixo ergue-se a pirâmide de Quéops da antiga história do Egito. Mais para além desse conjunto de torres, pirâmides, tronos, templos e milhares de castelos de rochas em ruínas, na margem norte, 30 quilômetros distante, duas faixas de rochas brancas, fecham a paisagem. Nuvens de tempo bom velejam sobre o vale. Um falcão peregrino precipita-se no abismo. Um Chipunk (esquilo terrestre), célere como um raio e uma ave semelhante à nossa gralha dos pinhais, disputam um petisco na frente dos meus pés. (Rambo, Balduino. Três Meses na América. Manuscrito. p. 180-181)

Depois dessa descrição da fisionomia geográfica e geológica do Grand Canyon e apontar as simbologias histórica que os americanos souberam encarnar nos seus grandiosos acidentes, o Pe. Rambo mostra toda a sua maestria literária ao descrever o amanhecer e o entardecer naquele grandioso cenário. 

Nos dias seguintes passei muitas horas sentado aqui no alto contemplando o Grand Canyon, apreciando o jogo da alternância da luz e das cores. Quando os primeiros raios do sol da manhã, vindos da direção do Painted Desert, derramam a sua luz sobre os abismos escuros, os rochedos do leste brilham na tonalidade ouro de uma delicadeza impossível de precisar, enquanto nas encostas do oeste os vales e  abismos jazem mergulhados em cores negro-azuladas. Pela hora do meio dia as cores fortes vão desmaiando para o amarelo cinza, o marrom cinza, o vermelho ferrugem e o branco. No final da tarde, repete-se, na sequência inversa, a mudança dos jogos de luz e de sombra da manhã. Mas o vermelho dourado do sol da manhã cede lugar ao vermelho púrpura do ocaso. A maioria das fotos coloridas reproduzidas em livros, foram tiradas naquele horário. Deixam a impressão de que o Grand Canyon veste por natureza esse manto colorido. Pouco depois do por do sol, o vermelho passa para o púrpura escuro e as tonalidades cinza, amarelo e verde modificam-se para o azul fantasmagórico, que vai mergulhando cada da vez mais na escuridão da noite. (Rambo, Balduino. Treses Meses na América. 1956. Manuscrito. p. 181)

A Natureza como Síntese - 31

O lado do cientista convencional revela-se no Pe. Rambo enquanto sistemata. Percorria o Rio Grande do Sul coletando todas as espécies de planta que encontrava. Não poucas até então desconhecidas pelos especialistas. Acomodava cada exemplar em folhas de jornal e as prensava nas prensas feitas com varetas de bambu que ele mesmo confeccionava. Seguia-se a secagem em estufa, muitas vezes improvisada para, em seguida, seguirem para a acomodação definitiva em caixas de madeira. Uma  ficha de classificação e identificação acompanha cada um dos exemplares dos 90000 números que compõem o “Herbarium Anchieta”. Ainda como cientista convencional enviava sob encomenda ou para permuta espécimes para numerosos herbários na Europa, na América e no Brasil. A correspondência científica mantida com os mais importantes centros de pesquisa em botânica, nacionais e internacionais, comprovam sua aceitação como especialista, no grande mundo científico. Paralelamente o Pe. Rambo publicou dezenas de artigos rigorosamente científicos, em revistas  de trânsito nacional e internacional. Sua reputação de cientista valeu-lhe, em 1956, um convite oficial do governo dos Estados Unidos, para visitar, durante três meses, as grandes universidades, institutos de pesquisa e, de modo especial, os grandes parques e reservas naturais daquele país. Em 1959 viajou para a Europa, também para um período de quatro meses, a convite do governo da então República Federal da Alemanha, para visitar os centros de pesquisa daquele país. Toda essa atividade tecnicamente considerada pelos cientistas convencionais como “verdadeira ciência”, para ele representou apenas uma condição, o pressuposto para, a partir dela,  formular  a sua compreensão do Universo, da Natureza, do Homem e de Deus. Identificar os detalhes desse grandioso cenário foi indispensável embora cobrasse um custo alto “esvaziando a vida afetiva”, como ele mesmo  desabafou. Ou ainda. “A ocupação constante  com as descrições latinas apenas esquemáticas, geralmente áridas e inanimadas, projetam sua cor mortiça sobre a alma, tornando-a embotada, gélida e apática”. (Rambo. 1994. p. 13). O que realmente importava era  colocar os detalhes nos grandes “mapas descritivos”, identificar a sua razão, o seu sentido, quando inseridos no todo, assumindo rosto, “fisionomia” que irradia vida, sugere unidade, sentido, simbolismo e harmonia. 

Um “mapa descritivo”, só então pode ser chamado de “Fisionomia” quando desenhado com recursos literários que, ao descrever o caleidoscópio de uma paisagem, são capazes de por em ebulição o que há de melhor no íntimo de uma pessoa. Isto só acontece quando se consegue explorar a riqueza subliminar que os acidentes geográficos, as cores, a vegetação, os rios e arroios, as esculturas naturais, a história, os simbolismos, a harmonia, o lírico, o grandioso e o épico, de alguma “fisionomia” natural. No momento em que o cientista se vale das suas observações para aventurar-se a esse patamar descritivo, não abdica da sua condição de cientista, mas sublima-a como artista. Fazer culminar o estudo da Natureza em obra de Arte deveria ser sonho de todo aquele que se dedica em explorar toda a sua riqueza, toda a sua diversidade, todas as suas utilidades, todos os seus encantos, todos os seus simbolismos. Só os poucos que de alguma forma se aproximaram desse ideal, deram-se conta de que a “Fisionomia” de uma paisagem irradia verdadeira vida, sugere unidade na pluralidade e representa um mundo de harmonia, no qual o viajante se sente “em casa”, na sua “querência”, na sua “Heimat”.  

Na linha dos cientistas que se ocuparam com o problema da unidade da Natureza e a reconciliação dos Ciências Naturais e das Ciências do Espírito, merece uma menção, embora de passagem, o “filósofo da esperança”, Ernst Bloch (1885-1977),  contemporâneo, portanto, de todos os cientistas e pensadores com os quais nos ocupamos no presente estudo. Não cabe analisarmos a fundo e nos detalhes seu pensamento. Interessa no presente contexto o livro que escreveu aos 87 anos, sua última imersão na “grande filosofia”, como o classificou seu comentarista Paul-Heinz Koesters. Na obra que daí resultou ocupou-se, nada mais nada menos, do que com o antiquíssimo, mas sempre novo problema, das relações entre o Espírito e a Matéria. Para ele, nem a posição da filosofia cristã idealizada de que “no princípio era Deus”, nem o argumento da  filosofia materialista de que “do nada só pode resultar o nada, portanto, a Matéria é eterna”, oferecem uma resposta  satisfatória.  Propõe uma terceira via para conciliar as duas posições antípodas. Para Bloch a Matéria é “animada”, “tem alma” (beseelt). Nela existe uma força, uma energia – melhor – um Sentido. Avançando mais um passo na suar reflexão concluiu que  a Matéria está orientada para um objetivo último. Este objetivo, entretanto, ainda não foi alcançado. Chama este objetivo final de “Ideal do Bem”. O ideal do bem estará concretizado no momento em que o processo evolutivo em que a Matéria se encontra estiver concluído. Neste momento o “Bem como tal” estará concretizado: O cosmos, nosso mundo, os animais e os homens, todos feitos de Matéria estarão reconciliados no final do processo. Então reinará a “Harmonia”, o estado almejado, consciente ou inconscientemente, por tudo e por todos, tanto pelas pedras quanto pelos homens, quanto pelas estrelas e as moscas na parede. Quando lá tivermos chegado o “Cosmos todo será (uma) Pátria” – “Heimat” – “Querência” (cfr. Koesters. Deutschland deine Denker. 1981. p. 299-300)

O Pe. Rambo foi mestre em desenhar os “mapas descritivos”, de dar rosto e forma às fisionomias que foi observando. A fim de ilustrar a afirmação, recorri ao diário que  escreveu por ocasião da sua visita aos parques nacionais do oeste americano. Ao entrar no parque de Yosemite, flagrou-se diante de um cenário de sonho. Depois de fazer reflexões sobre o significado histórico, humano, antropológico e econômico, da grande corrida do ouro na Califórnia, nos anos cinquenta do século XIX, no vale do rio Merced, cujas nascentes encontram-se no parque, deu vazão às emoções daquele panorama deslumbrante.

Acontece que não viajei para a Sierra Nevada à procura de ouro, mas em busca do mais belo vale do mundo, o vale de Yosemite. As montanhas aproximam-se cada vez mais uma das outras. O rio troveja com crescente furor por sobre os escombros de rochas. A floresta permite a visão livre e eu contemplo um cenário de fadas, como não existe outro igual. O Merced, aqui reduzido a um arroio largo rumoreja aos meus pés. A água é tão cristalina que permite contra as pedras no fundo, observar a dança das trutas. Mais para o fundo abre-se um prado coberto de capim verde, de canas com pontas reluzindo como ouro e no meio delas, milhares de flores brancas, vermelhas, amarelas e azuis. Mais adiante ergue-se a floresta formada por árvores majestosas: pinheiros, cedros e pinheiros Douglas. À direita precipita-se a cascata Véu de Noiva, do alto de um vale de mil metros e desfaz-se em espuma. Também à direita sobe a mil metros de altura um bloco de granito tingido de vermelho pelo sol da tarde. Deram-lhe o nome de “el Capitán”. É o rochedo-sentinela no portal de entrada do vale das maravilhas. E, bem no fundo do vale, outro cume de rochedo sobressai às montanhas, o “Half Dome”, o mais famoso da Sierra Nevada. Sobre o panorama todo estende-se o céu azul e sobre ele navegam, suavemente, os brancos veleiros de Deus. (Rambo, Balduino. Diário de viagem nos USA. 1956. Manuscrito. p. 148-149)

Depois de desenhado o mapa panorâmico do vale  de Yosemite, num estilo literário em que sobressai o tom épico, o Pe. Rambo faz a descrição  científica dos componentes do vale, Em primeiro lugar, explica a gênese geológica e a moldagem final da paisagem durante o último  período glacial. Detalha depois a fauna do parque e de modo especial a composição da flora que, na condição de sua especialidade, logicamente chamava-lhe atenção especial. Chama a atenção a um dos maiores inimigos da floresta local, um fungo que se serve de um arbusto hospedeiro para depois atacar as árvores. Informa também que o volume da neve acumulada no vale durante o inverno, permite predizer a disponibilidade de água para a irrigação dos pomares e vinhedos no vale da Califórnia. Depois acomodado no alto de um dos rochedos do qual se tem uma visão global do parque, volta a desenhar mais um dos seus mapas panorâmicos.

Pouco antes do meio dia chegamos ao “Glacier Point”, um rochedo na extremidade superior do vale de Yosemite. Com certeza devem existir poucos lugares na terra, de onde se descortinam  paisagens  tão deslumbrantes. Para a direita a vista alonga-se por sobre as serras intocadas até os cumes cobertos de neve dos picos mais altos. Do lago Merced nasce o rio do mesmo nome, precipitando-se em duas cascatas: o Nevada Fall com 160 metros e o Vernal Fall com 95. Em frente, no lado oposto do vale, ergue-se o maior bloco de granito do mundo, o Half Dome, com 2760 metros acima do nível do mar e 1500 metros a prumo sobre o chão do vale. Para a esquerda desfruta-se uma visão sobre todo o vale, e mais adiante, sobre os altiplanos dos dois lados, inúmeros milhares de pinheiros Jeffrey, isolados, em grupos, ou formando florestas fechadas. Parecem-se com um  exército de soldados, aprestando-se para o assalto aos cumes das montanhas. Onde quer que haja uma saliência, uma fenda, um lugar para um pé, agarram-se os arbustos, carvalhos anões, castanheiras anãs, azaléias anãs. Essas últimas vestem na primavera os gigantes de pedra das montanhas com um manto real de púrpura, nas suas tonalidades mais esplendorosas. Aos meus pés o paredão de rochas precipita-se perpendicularmente por 976 metros. As fitas de um azul negro das estradas com os carros multicoloridos circulando nelas; a faixa azul clara do rio entre a floresta escura e os prados cor de ouro; as cidades de barracas e cabanas ao longo do rio, na floresta, ao pé da grande cascata; as multiformes rochas na beirada; o Half Dome fendido ao meio, os Arcos Reais, o Pináculo das águias, a Torre de Observação, as Torres da Catedral, o Capitão Sentinela: tudo compõe um quadro que somente um foi capaz de conceber: Aquele que, no canto de Habacuc, marcha sobre as montanhas e as faz tremer sob o passo marcial de suas eternidades. (Rambo, Balduino. Três meses na América. 1956. Manuscrito p. 151)

Paul Heinz Koesters no seu livro “Deutschland deine Denker”  traça o perfil do filósofo da esperança  Ernst Bloch. Ernst Bloch, o filósofo da Esperança, nasceu 1885 em Ludwigshafen no Reno. No centro do seu pensamento encontra o conceito “Heimat” (querência). Entre as obras que o levaram a esse conceito estão os romances de aventura de Karl May. Entre índios, búfalos, pradarias – nesse panorama o jovem Bloch sentiu-se pela primeira ez “em casa”, na Heimat. Heimat só pode existir lá onde ha Liberdade. O judeu e marxista  Blochque emigrou para a América por causa dos nazistas e abandonou a Repíblica Democrática d Alemanha em 1961, lecionou ainda em Tuebingen onde faleceu com 92 anos em 1977. Num mundo que sofre pesadamente com a desesperança, Bloch ensina o homens a terem esperança. Num bloco de pedra de rocha rústico com milhões de anos lê-se a inscrição: “Pensar significa transpor o princípio da Esperança”.

A Natureza como Síntese - 30

Chegou o momento de arriscar identificar quais as impressões, quais os sentimentos, quais as emoções e qual a compreensão, que povoavam o seu íntimo e qual a natureza das reflexões que o acompanharam nas suas  peregrinações  pela Natureza. Mais acima já destacamos que a parte mais volumosa dos escritos do Pe. Rambo, encontram-se no seu diário na forma de reflexões, não poucas vezes dirigidas a Deus na forma de diálogos. São literariamente ricas, rigorosamente científicas e filosoficamente densas. Ele próprio resumiu o que entendeu como Ciência e porque merece ser praticada.

A Ciência apenas possui então valor se é para cultivar o que o cientista tem de humano (Menschlichkeit) – (para a formação humana do cientista), quando empreendida e praticada a partir do todo e estruturada dentro do todo. Pressupõe isso um treinamento escolar geral voltado para o todo – coisa que foge à grande maioria dos pesquisadores atuais. (...) A ciência quando praticada com acerto é uma recriação espiritual do mundo, uma atividade semelhante à de Deus, dando assim em culto divino. (Rambo. Balduino. Diário. 1/08/1949)

Salvo melhor juízo está condensado nesse texto a síntese, a essência,  a razão de ser para alguém dedicar-se à Ciência, a maneira de conduzi-la e a sua destinação maior. E a destinação maior consiste, antes de mais nada, em humanizar o pesquisador e o próprio cientista e este, por sua vez, irradiar o seu “humanum” – “Menschlichkeit”, para o mundo em seu derredor. Pressupõe-se, para tanto, que o cientista desenvolva sua tarefa, inspirado numa cosmovisão unitária, holística e integradora da natureza. E é nesse particular que encontramos o “nó górdio” que é preciso desatar. A questão não se resolve cortando-o com a espada, mas desatando-o. Para tanto requer-se da parte do cientista, do pesquisador, uma formação acadêmica de visão ampla  e abrangente, fundamentada na concepção do todo em que se move. Além de dominar profunda e rigorosamente o objeto da sua especialidade. É preciso que esteja em condições de transmitir com precisão e estilo, maestria e convicção, os resultados das suas reflexões. Vai na linha da proposta de formação conhecida na Inglaterra como “Oxbridge”. Por ela objetiva-se formar um cidadão completo, não um especialista bitolado, tolhido por viseiras. Este é o verdadeiro “gentelman”, uma pessoa dona de uma formação de bases amplas, profunda e segura na sua especialidade, comunicando-se com desenvoltura e em alto estilo. Os antigos romanos falavam em “vir bonus, peritus dicendi” – “um homem bom, completo, bem formado, que sabe comunicar-se com elegância.  Não é vulgar, ignorante, grosseiro, mas conhecedor e sabedor do que fala. Salvo melhor juízo, vai nessa direção o pensamento do Pe. Rambo ao definir como ele concebia o verdadeiro fazer ciência.

Ciência verdadeira começa apenas ali onde ela se tornou culto pessoal a Deus para o próprio pesquisador. E isso muito antes de qualquer ideia relativa a publicidade. Ciência vem a ser um decifrar dos vestígios de Deus e um respeitoso reescrever imitativo do Mundo, portanto, um estudo artístico de primeira ordem e grandeza. Ciência é uma contemplação contínua e a cópia desejada  dos planos arquitetônicos secretos e misteriosos do Mundo. Uma vez que tudo isso equivale à reconstrução imitativa e ao entender por dentro das coisas de sua ordem hierárquica – tudo no espelho de uma arte verdadeira. Próprio, contudo, à toda obra de arte é que irradie da plenitude e ordem hierárquica de cada uma de suas partes, de toda a sua ancoragem no belo todo o Cosmos e seu parentesco com o arquétipo, que se encontra além de toda a beleza artística, despedindo de si um calor e um reflexo de luz, aos quais não foge nenhum homem de pensamento hierárquico. Apenas dali, portanto, a partir da plenitude de um riqueza interior, começa a atividade exteriorizada da Ciência, pois, sendo verdadeira, ela é um facho aceso e reluzente, similar aos sóis do firmamento, que avançam espalhando benefícios por sua mera existência. (Rambo, Balduino. Diário. 3 de junho de 1951)

Nessa passagem do Diário Pessoal, Pe. Rambo condensou a sua compreensão do Universo e da Natureza como um todo e nas suas partes. Definiu a razão última de ser da Ciência como sendo um “culto a Deus”. Por isso a tarefa do autêntico cientista resume-se em reescrever, redesenhar, em prosa e verso, essa grandiosa obra em homenagem ao Supremo Artista. O que importa, em última análise, como resultado final da atividade  científica, consiste em descobrir em a Natureza “os planos arquitetônicos secretos e misteriosos do Universo”. E identificando a arquitetura singular dos componentes da natureza, descobrir as relações estruturais, funcionais e hierárquicas que os inserem num todo maior, numa unidade superior, num “sistema global”, como diria Ludwig von Bertalanffy. Sobre esse pano de fundo, Renato Dalto foi de uma rara felicidade, ao resumir as características da obra científica do Pe. Rambo.

Seus relatos da natureza são grandes mapas descritivos – o conceito fisionomia, no qual primeiramente enxerga o todo para depois entrar nos detalhes. O detalhe é a visão do botânico, mas há também a busca da síntese entre ciência e religião, os questionamentos da alma, o vigor literário e a construção poética capaz de ver couraça revestindo pedras, atribuir memória a acidentes geológicos, escutar a canção das águas, ouvir o murmúrio do chamado divino em meio à névoa da noite. (Dalto, Renato – Tavares, Eduardo. 2007. p. 12)

Nessas poucas linhas Renato Dalto identificou os pontos focais sem os quais a obra do Pe. Rambo corre o risco de ser mal entendida e até desqualificada, como aliás já ocorreu. Para ele  Ciência se faz, em primeiro lugar, a partir da visão dos conjuntos naturais. A observação panorâmica dos conjuntos permite desenhar “grandes mapas descritivos”, os quais, por sua vez, sintetizam  a compreensão da Natureza no conceito de “Fisionomia”. Segue numa segunda fase a tarefa penosa e desgastante, mas indispensável de procurar, identificar e encaixar no “mapa”  as peças como que num quebra-cabeça. E o esforço não se limita em colocar os detalhes no seu devido lugar. Parece que nesse esforço esgota-se para a imensa maioria dos pesquisadores o conceito de “fazer ciência”. E aqui deparamo-nos com a razão de fundo porque o Pe. Rambo, de um lado sofre diminuição na sua estatura de cientista por uma minoria e os seus admiradores, que são a imensa maioria dos que entraram em contato com sua obra, admiram-no e chegam a venerá-lo. 

A Natureza como Síntese - 29

O cientista e sua proposta de síntese

Um exame um pouco mais minucioso da reflexão do Pe. Rambo acima, põe em evidência os dois lados do seu autor. O primeiro revela o cientista especialista em botânica sistemática que, por décadas percorreu os cenários naturais do sul do Brasil, colecionando plantas. Acondicionou-as e carregou-as para o seu recinto de estudo, para ordená-las e classificá-las de acordo com os rígidos preceitos da taxonomia. O resultado final veio a constituir-se numa coleção de fanerógamos de cerca de 90.000 exemplares. Foi esse afã de sistemata e as dezenas de artigos rigorosamente científicos, que abriram as portas para o livre trânsito na comunidade científica internacional. A vasta correspondência que manteve com instituições nacionais, americanas e europeias, desfaz qualquer dúvida a respeito. Curiosamente, entretanto, o que para qualquer cientista seria o objetivo maior a ser alcançado e a realização suprema, para o Pe. Rambo não passou de um caminho penoso, um pressuposto desgastante, em busca dos dados objetivos, para com eles na mão, descobrir na Pluralidade na Unidade na Natureza,  identificar e entender a sua teleologia e, de alguma maneira, vislumbrar o sentido que polariza tudo. No diário encontramos o surpreendente desabafo escrito por ocasião do retiro anual em janeiro de 1944, na Vila Manresa em Porto Alegre.

Na medida em que me entretenho com a descrição das Ciências Naturais, experimento em mim mesmo um espécie de esvaziamento da vida afetiva. Apodera-se de mim a sensação de que o ser cadavérico das plantas mortas reflete-se  em minha alma, como se minha vida interior assimilasse, mais e mais, o aspecto inanimado do meu cemitério de plantas. A ocupação constante  com as descrições latinas apenas esquemáticas, geralmente áridas e inanimadas, projetam sua cor mortiça sobre a alma, tornando-a embotada, gélida e apática. (Rambo, Balduino. 1994. p. 13)

Um pouco mais adiante, continuando a reflexão, recorda as duas semanas que passou na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, auxiliando o Pe. Arnaldo Bruxel na microfilmagem da “Coleção de Angelis”. A reclusão por dias a fio numa câmara escura improvisada debaixo de uma escada, aguçou nele  a sensação de isolamento e de solidão, que de física transformou-se também em prisão dos sentimentos e emoções. Diante da impotência de deixar correr  livre a imaginação e a reflexão, desabafou.

O isolamento quase completo do local, que me é sempre estranho no fundo do ser, colocou-me numa busca sequiosa de atividade racional e diálogo. O trabalho diário na biblioteca  contribuíra, em parte para me sentir insatisfeito e solitário como nunca.  (...) Eu me sentia em parte um irresponsável, por viver o dia-a-dia como um robô, deixando minha alma sofrer prejuízo. Levara então uma vida bem mais abundante, quando escrevia meus contos juvenis e compunha minhas poesias singelas. Julgava que minha existência era por demais preciosa, para ser consumida no meio de livros gastos pelo uso, em companhia de plantas mortas. (...) Estaria eu, com efeito, condenado tão incuravelmente ossificado, que não encontrasse mais nenhuma saída para me libertar dessa ocupação unilateral e sem vida? (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)

E continuando a reflexão, questiona-se se, de fato, estava  fadado a resignar-se e consumir a vida nessa “ocupação unilateral”. Certamente não! A resposta veio na forma de uma reação criativa que lhe franquearia um lugar de destaque entre os mais renomados pensadores que refletiram, com seriedade, sobre a essência, a razão de ser e o destino do universo, da natureza e do homem. 

A resposta me parecia que tinha que ser  a reação, uma vez que me sinto jovem  e acho esse meu estado indigno. Por que não deixar de rastejar e levantar-me? Meu espírito acumulou, desde aqueles anos, um tesouro de novos conhecimentos, que reverteram em atividade criadora. Todos eles aguardam uma elevação e transfiguração na plácida luminosidade de Deus, que ainda hoje é, e sempre foi, o parente mais próximo do meus ser, o vizinho mais familiar da minha morada e o personagem mais amado do meu coração. Meus recursos linguísticos  não empobreceram, mas se enriqueceram em boa parte. Por que então haveria de deixar o mergulho na plenitude dos seres e acontecimentos, traduzindo em palavras a sua imagem, assim como o Senhor Deus converte em imagens sensíveis seus pensamentos eternos nos seres contingentes do mundo? Isto resultaria numa participação da obra criadora de Deus, o que de certo lhe daria gosto, porque seria feito com amor e reverência. (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)

A reflexão que acabamos de registrar condensa as preocupações e as intenções que se encontram na base do pensamento e da cosmovisão do Pe. Rambo. Ele não deixa de ser um cientista, com especialidade em taxonomia botânica, reconhecido internacionalmente entre os seus pares. Acontece que ele é um representante não muito comum nesse meio. Foge do paradigma quase estereotipado do cientista frio, objetivo, que só crê nos resultados de suas pesquisas, avesso a reflexões filosóficas e recursos literários que não sejam técnicos e, obviamente só creem no que enxergam, observam com seus instrumentos ou no resultado dos seus cálculos. Mesmo que tenham fé não fica bem demonstrá-la em público. Colocá-la como uma variável determinante da pesquisa científica, é motivo suficiente para por em dúvida a consistência científica dos resultados das investigações. A opinião corrente manda que o cientista seja frio, objetivo, fáctico, avesso a divagações literárias e especulações de natureza filosófica e para muitos, de preferência,  sem fé e ateu. Pois, o Pe. Rambo foge a esse estereótipo. Sem a menor sem cerimônia classifica a prática científica  convencional, em muitos casos, como desgastante, levando à atrofia dos sentimentos  e à escravidão a serviço de  uma atividade sem sabor e sem alma. Ser cientista só então tem sentido e justificativa quando a serviço de um propósito maior. A atividade científica só então é legítima quando fornece os dados e as informações capazes de alimentar uma “atividade criadora” superior. E para ele a atividade criadora superior tem como destino final maior a “transfiguração na plácida luminosidade de Deus”. Portanto,  o Pe. Rambo faz ciência sobre o pressuposto da fé na existência de Deus. Mais ainda. A natureza no seu todo e nos seus componentes mais insignificantes, é o “livro dos livros abertos” da Revelação. Todas as outras revelações apresentadas em livros ou tradições orais dos povos, são formas peculiares de concebê-la, consolidadas pela tradição histórica de cada povo. Por isso mesmo são parciais e unilaterais. A Revelação autêntica, não viciada por nenhum cacoete histórico-cultural, é o livro aberto da Natureza. Aliás São Paulo na Carta aos Romanos chama a atenção para essa verdade. “Na verdade, as perfeições visíveis de Deus se tornaram visíveis depois da criação do mundo pela consideração das obras que foram feitas”. (Romanos. I-20).

O Pe. Rambo soma-se aos demais cientistas e cientistas-filósofos que concebem a Natureza como uma unidade estrutural, funcional e teoleológica. Concordando no essencial, cada um em particular, porém, iluminou-a a partir de uma perspectiva singular, inspirada na educação que recebeu, na formação acadêmica, na filiação confessional, na cosmovisão individual e não em último lugar nas características da sua personalidade. Erich Wassmann e Teilhard de Chardin, seus irmãos de Ordem, construíram complexos edifícios conceituais e trabalhosas argumentações, para a partir dos dados científicos, demonstrar a necessidade da existência de um Agente exterior que explica, em última análise a origem, a dinâmica e a razão de ser do Universo, da Natureza e do Homem. O Pe. Rambo pressupõe a existência de Deus Criador e partir desse dado, orienta a sua atividade científica e suas reflexões. 

A Natureza como Síntese - 28

A produção literária e científica

O  volume mais significativo dos escritos do Pe. Rambo são de natureza científica, tendo como cenário de fundo a taxonomia botânica. E foi a botânica sistemática que lhe garantiu nome nacional e internacional. É óbvio que na descrição de um gênero, uma família ou uma variedade de fanerógamos, não há espaço para grandes voos poéticos e estéticos. O estilo dessa produção deve ser por natureza enxuto, técnico e preciso, como manda  que sejam textos com objetivos  científicos. 

Entre os escritos propriamente dito literários e científicos  o legado do Pe. Rambo conta com um volume impressionante de outros textos, na maioria inéditos. Situam-se num patamar intermediário e ocupam a maior parte do diário, descrições de excursões científicas, relatos de viagem, alguns contos em alemão erudito, além da sua obre de referência: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Nesses textos não falta o rigor científico. Os dados são reais e objetivos, mas os recursos literários e o estilo preferido pelo autor, vem carregados de descrições e reflexões que mexem com a mente, alimentam a fantasia e fazem com que o leitor viaje na imaginação por uma paisagem viva, povoada de personagens, de dramas, de mistérios, de simbolismos, de significados, de misticismo. Em outras palavras. A forma de apresentar uma caminhada pelos campos de Cambará, por ex., não se resume numa sucessão mecânica de atos de coletar o maior número possível de espécies de plantas. As reflexões que acompanham e complementam a tarefa, refletem a preocupação pelo lugar, de um modo mais amplo e os simbolismos de que os mínimos detalhes são portadores. Ao mesmo tempo seus escritos sugerem e fazem vislumbrar, em meio à infinita multiplicidade de detalhes, a convergência harmônica para uma unidade, que confere sentido a tudo. Renato Dalto, autor do texto da obra comemorativa do centenário do nascimento do Pe. Rambo, resumiu com rara precisão, o que vínhamos tentando dizer.

O Pe. Balduino Rambo nasceu, viveu, pesquisou e se expressou na natureza. Quando menino, ainda no pátio da casa paterna, em Tupandi, região de colonização alemã no vale do Caí, onde nasceu no ano de 1905, considerava as árvores no fundo da casa seu brinquedo predileto. Quando foi estudar na Escola Apostólica, em Pareci Novo, em 1917, o passeio pelas matas dos arredores lhe aguçou o gosto pela botânica e a geografia. Isto foi determinante na sua vida de pesquisador. Seus relatos da natureza são grandes mapas descritivos – o conceito de  fisionomia, no qual  primeiramente enxerga o todo para depois entrar nos detalhes. O detalhe é visão do botânico, mas há também a busca da síntese entre ciência e religião, os questionamentos da alma, o vigor literário e a construção poética de ver couraça revestindo pedras, atribuir memória a acidentes geológicos, escutar a canção das águas, ouvir o murmúrio do divino  em meio à névoa da noite. (Tavares, Eduardo – Dalto Renato.  2007. p. 12)

Foi exatamente essa forma peculiar de apresentar dados isolados, paisagens locais ou fisionomias globais, que fizeram do Pe. Rambo um sábio de reconhecimento perene. Seus ex-alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Colégio Anchieta ainda vivos, intelectuais que privaram  com ele ou vieram a conhecê-lo pela obra que deixou, lembram-se dele com sincera veneração. Guardam dele a memória de um especialista e sábio que soube aliar como poucos, o rigor científico à sensibilidade de um poeta, às reflexões de um filósofo, e jesuíta que foi, perceber na paisagem natural as marcas da presença do Criador, como concluiu Renato Dalto: “Talvez visse nos pinheirais a mediação entre o céu e a terra, um caminho próximo para entender Deus” (Tavares, Eduardo – Dalto, Renato. 2007. p. 12). Assim como para Francis Collins o código genético é a “Linguagem de Deus”, para o Pe. Rambo Deus fala uma linguagem eloquente, para quem tem olhos para enxergar e ouvidos para escutar a natureza, nas suas macro micro e nano manifestações. 

Tomando em conta os múltiplos campos do conhecimento em que o Pe. Rambo se movimentou, entende-se que sua obra encontre  dificuldades para ser avaliada no todo e nos diversos enfoques. A começar pelas diversas especialidades às quais se dedicou e sobre as quais deixou registradas suas reflexões, fica difícil, senão impossível, decidir em qual delas foi maior. E como maior não entendemos aqui o volume da produção específica, mas o significado e o valor de cada uma. Uma avaliação conjunta da produção literária, não deixa dúvidas sobre o valor tanto do objeto quanto da forma. A leitura dos contos e das cartas fictícias em dialeto, era disputada com avidez e paixão pelo público  a quem foi endereçado. A outra série de contos em alemão erudito, versando sobre temas regionais do sul do Brasil, atingiram o público leitor internacional, pois, foram publicados no periódico “Katholische Missionen” (Missões Católicas), de circulação internacional. Seu último conto expressa suas preocupações com uma civilização cada vez mais empolgada e rendida ao fascínio da tecnologia. Com o titulo “Drei Jahre auf dem Mars” (Três anos em Marte), veio a ser publicado anos depois do seu falecimento. Além de se constituir numa peça literária primorosa, o conto “Três Anos em Marte”, põe em evidência o polo para o qual convergiam todos os interesses do Pe. Rambo: Os textos que deixou, além dos que acabamos de mencionar, muitos inéditos como os diários de suas viagens, em 1956 para os Estados Unidos e em 1959 para a Alemanha, na condição de convidado oficial pelos governos daqueles países, demonstram o que para ele de fato interessava. Descobrir na diversidade das manifestações da Natureza o fio condutor que as une e lhes dá sentido. E se há uma baliza, uma referência que confere harmonia ao aparente caos, qual a sua natureza? Na condição de jesuíta  estava comprometido com a fé de que tudo que existe e acontece em nossa volta tem a sua origem num Deus Criador. Para ele a Criação e consequentemente o Criador, são dados objetivos. Dispensam provas. Mais ainda. Não há como entender o Universo, a Natureza e Homem sem esse pressuposto. Para ele, como para São Paulo, Santo Agostinho, Nicolau de Cusa, os últimos seis  papas e muitos outros, a Natureza é “O Livro” da Revelação por excelência. Todos os demais livros e  formas de Revelação conhecidos na história dos povos, não passam de versões consolidadas no decorrer da história das respectivas culturas. Por isso mesmo vêm marcadas pela visão e os cacoetes peculiares de cada uma em particular. O Pe. Rambo deixou explícita a convicção de que a Natureza e tudo que nela existe tem a sua origem e razão ser em um Deus Criador, no seu diário de 24 de junho de 1945. 

À primeira vista, a Tua Criação nem mesmo se apresenta como ordenada, mas como uma grande confusão: grande confusão o teu firmamento estrelado, grande confusão o edifício dos reinos do saber, uma confusão muitas vezes assustadora o roteiro da Tua Providência na História da Humanidade. Nós, cientistas, trazemos dentro de nós um certo pressentimento e um salutar temor face a  toda essa confusão. Imprimiste em nós um resplendor do Teu próprio ser e por isso sabemos de ante mão, que por trás dessa aparente balbúrdia reina uma maravilhosa harmonia. Mais ainda!. Que é tarefa nossa perseguir as meadas desse sistema  e explicar com transparência sua interligação. Até certo ponto somos nisso bem sucedidos e às vezes invade-nos a ilusão de termos descoberto a planta do mundo e agora a saberíamos fixar no papel preto sobre branco. Pena que, num último momento, algum das Tuas divagações ou digressões põe sempre em dúvida a consistência de todo esse edifício! Eis porque somos obrigados a sempre recomeçar, embora saibamos perfeitamente que também esta vez a conta não irá fechar. Empilham-se nossos livros, e nossas bibliotecas continuam  a crescer que é uma espanto. Muitos dos nossos opinam que, a partir das raízes desse tronco frágil podem esquadrinhar o próprio mistério da Tua ordem universal. Desenrolam e vasculham os pergaminhos de épocas passadas, dialogam com traças e escorpiões de livros, reduzem  cinquenta velhos volumes a um só, e chamam tal proeza de “Ciência”. (Rambo, Balduino. 1994. p. 127-128).

Teilhad de Chardin elaborou um complexo e sólido fundamento conceitual que garante lógica  e solidez para  fundamentar as suas obras de referência: “O Fenômeno Humano” e “O homem na Natureza”. Percebe-se um esforço penoso para não se desviar do caminho escolhido ao arquitetar para a sua grandiosa concepção do universo e nele o homem, e conferir-lhe coerência à base dos dados científicos de que dispunha na época. Esses dados provam, pelo menos para ele e seus admiradores, que o mudo em que vivemos revela-se como uma gigantesca unidade, Bertalanffy diria um gigantesco “Sistema”.