A Natureza como Síntese - 33

Seria um grande engano pensar que o Pe. Rambo dava vazão à compreensão do Mundo e da Natureza e à relação  existencial que cultivava com ela, quando em contato com cenários que nunca tinha visto de perto. Por ocasião da sua permanência no Rio de Janeiro, auxiliando o Pe. Arnaldo Bruxel na microfilmagem da coleção “De Angelis” na Biblioteca Nacional desenhou num intervalo, a paisagem das montanhas que formam o anfiteatro da cidade.

Ai sentava eu, creio que foi na tarde de sábado santo, junto à janela e alongava o olhar em direção ao Corcovado. Pouco antes tinha chovido, mas agora o ofuscante sol tropical brilhava sobre rochas, matos e cidade. As listas de água que pouco antes tinham desabado, precipitavam-se em forma de furiosos regatos outeiros abaixo, deslizando agora como feixes de metal faiscantes por entre a ramagem rasteira num colorido verde-claro. As palmeiras ao pé dos rochedos e o vale alcantilado balançavam silenciosas os seus leques na brisa, que soprava em direção à planície. Qual tapete de alfombras com centenas de matizes de verde estendia-se a mata virgem por sobre as colinas oblíquas, diluindo-se  à distância no firmamento cerúleo. Bem lá no alto serpejava um manto azulado de neblina e de sol doirado, em volta da imagem do Cristo Redentor da montanha.

Longas horas eu sentava ali abismado com a imponência da selva tropical. Sentia imensa nostalgia dos tempos de antanho, quando me era dado apanhar, sem mais, as imagens contempladas nas malhas da linguagem escrita e entretecê-las com os pensamentos mais sublimes de minha alma, como reluzente e preciosa pedraria. Parecia-me então ser indigno de mim deixar-me afogar no trabalho externo, enquanto a melhor parte da minha humanidade estiolava e se deteriorava. Parecia-me que todo o esforço para a aquisição de novos conhecimentos não compensava o preço  elevado que todo o dia eu pagava por isso; que eu devia chamar de volta os espíritos amistosos dos tempos idos, quando então buscava com menos afã a erudição fria, sentindo-me, no entanto, bem mais  enriquecido de coração, mais rico em criatividade, mais rico em Deus. (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)

A paisagem com a qual, consolidou, desde o final dos anos de 1930 até o seu falecimento, uma relação existencial tão profunda que a chamou de “minha pátria na terra”, foi o planalto do Rio Grande do Sul, com seus campos, capões, matas, pinheirais, canyons, escarpas e precipícios. Cambará e arredores são  o ponto de referência e convergência desse cenário. As anotações que deixou foram extraídas do diário que escreveu durante uma estadia, durante os meses de janeiro e fevereiro de 1948, naquela região. 

Essas caminhadas pela neblina, essas noites com seu leve prurido de chuva junto à janela, as gotas continuamente estalando nas árvores, chamam para a interioridade. Então a alma liberta-se dos fogos fátuos do dia resplandecente, e ela entra em silêncio no seu mundo mais íntimo, no reino do ser envolvido no sonho de todas as coisas. Luzes distantes e vozes se perdem em seu eco e migram através desta terra espiritual carregada de pressentimentos. Alguém caminha na névoa da noite com passos tão leves como o murmúrio da neblina. Ele é único e chama meu nome nesta terra solitária. Ó tu, noite silenciosa e santa solidão.

A orla oriental é constituída pela vista panorâmica para as maiores distâncias, pela sinuosidade brusca das formas perto da planície e com a força perene da névoa em efervescência.

São únicas as pinturas da natureza na bela terra de Deus, como as da garganta da Pedra Branca.  Poderia chamar-se o quadro de precipícios perpendiculares e de cataratas troantes, de névoas efervescentes e trovoadas uivantes, de mata silente e escolhos altos, cheios de clarividências pétreas, de pintura imperfeita, mas bem mais do que isso. É uma construção gigantesca de força e simplicidade que nunca para de rolar para a frente. Alguém mora nessas profundezas que sussurram, alguém observa nesta torre solitária de vigia. Ele chama o eco, apascenta a névoa, brinca com o raio e o trovão nos lugares solitários.

Na ampla baixada, os lagos refulgentes e o mar-oceano aos sussurros ficam depois desta paisagem. Ao olhar ao longe da parede anterior, há pressentimento das distâncias infinitas. O sentir predominante é o da preeminência sobre o vapor, a poeira, o calor e a fastidiosa multidão humana. Rochas cinzentas, mata verde, água murmurante e correntes estagnadas, amplas planícies, nuvens migrantes e, finalmente, o mar insondável: também isso é solidão da alma com Deus! O espírito de Deus sopra em toda a parte. Quem ergue o chão de sua alma na solidão de Deus há de levar esse sentimento mesmo em meio à multidão insana.

Nunca esquecerei  minha despedida da orla oriental. Meu cavalo avançou à vontade pelo campo florido. Atrás de mim as névoas condensadas, vindas do precipício rolavam pelo campo. É o atrito da planura inferior que faz surgir esse verdadeiro rolar e rodar. Essas neblina fria rodou sobre mim e me envolveu. Murmuravam os arroios e cochichavam os pinheiros. Era a saudade de épocas  geológicas distantes, dos irmãos do Chile e dos parentes de muito além do Oceano Atlântico, nas ilhas solitárias do Mar do Sul.
 
Agradeço a Deus e levo saudades desta terra hospitaleira. Se possuo uma pátria no mundo, ela está no planalto calmo e sereno à sombra dos pinheirais. (Rambo, Balduino. Diário. 09 de fevereiro de 1948).

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