O lado do cientista convencional revela-se no Pe. Rambo enquanto sistemata. Percorria o Rio Grande do Sul coletando todas as espécies de planta que encontrava. Não poucas até então desconhecidas pelos especialistas. Acomodava cada exemplar em folhas de jornal e as prensava nas prensas feitas com varetas de bambu que ele mesmo confeccionava. Seguia-se a secagem em estufa, muitas vezes improvisada para, em seguida, seguirem para a acomodação definitiva em caixas de madeira. Uma ficha de classificação e identificação acompanha cada um dos exemplares dos 90000 números que compõem o “Herbarium Anchieta”. Ainda como cientista convencional enviava sob encomenda ou para permuta espécimes para numerosos herbários na Europa, na América e no Brasil. A correspondência científica mantida com os mais importantes centros de pesquisa em botânica, nacionais e internacionais, comprovam sua aceitação como especialista, no grande mundo científico. Paralelamente o Pe. Rambo publicou dezenas de artigos rigorosamente científicos, em revistas de trânsito nacional e internacional. Sua reputação de cientista valeu-lhe, em 1956, um convite oficial do governo dos Estados Unidos, para visitar, durante três meses, as grandes universidades, institutos de pesquisa e, de modo especial, os grandes parques e reservas naturais daquele país. Em 1959 viajou para a Europa, também para um período de quatro meses, a convite do governo da então República Federal da Alemanha, para visitar os centros de pesquisa daquele país. Toda essa atividade tecnicamente considerada pelos cientistas convencionais como “verdadeira ciência”, para ele representou apenas uma condição, o pressuposto para, a partir dela, formular a sua compreensão do Universo, da Natureza, do Homem e de Deus. Identificar os detalhes desse grandioso cenário foi indispensável embora cobrasse um custo alto “esvaziando a vida afetiva”, como ele mesmo desabafou. Ou ainda. “A ocupação constante com as descrições latinas apenas esquemáticas, geralmente áridas e inanimadas, projetam sua cor mortiça sobre a alma, tornando-a embotada, gélida e apática”. (Rambo. 1994. p. 13). O que realmente importava era colocar os detalhes nos grandes “mapas descritivos”, identificar a sua razão, o seu sentido, quando inseridos no todo, assumindo rosto, “fisionomia” que irradia vida, sugere unidade, sentido, simbolismo e harmonia.
Um “mapa descritivo”, só então pode ser chamado de “Fisionomia” quando desenhado com recursos literários que, ao descrever o caleidoscópio de uma paisagem, são capazes de por em ebulição o que há de melhor no íntimo de uma pessoa. Isto só acontece quando se consegue explorar a riqueza subliminar que os acidentes geográficos, as cores, a vegetação, os rios e arroios, as esculturas naturais, a história, os simbolismos, a harmonia, o lírico, o grandioso e o épico, de alguma “fisionomia” natural. No momento em que o cientista se vale das suas observações para aventurar-se a esse patamar descritivo, não abdica da sua condição de cientista, mas sublima-a como artista. Fazer culminar o estudo da Natureza em obra de Arte deveria ser sonho de todo aquele que se dedica em explorar toda a sua riqueza, toda a sua diversidade, todas as suas utilidades, todos os seus encantos, todos os seus simbolismos. Só os poucos que de alguma forma se aproximaram desse ideal, deram-se conta de que a “Fisionomia” de uma paisagem irradia verdadeira vida, sugere unidade na pluralidade e representa um mundo de harmonia, no qual o viajante se sente “em casa”, na sua “querência”, na sua “Heimat”.
Na linha dos cientistas que se ocuparam com o problema da unidade da Natureza e a reconciliação dos Ciências Naturais e das Ciências do Espírito, merece uma menção, embora de passagem, o “filósofo da esperança”, Ernst Bloch (1885-1977), contemporâneo, portanto, de todos os cientistas e pensadores com os quais nos ocupamos no presente estudo. Não cabe analisarmos a fundo e nos detalhes seu pensamento. Interessa no presente contexto o livro que escreveu aos 87 anos, sua última imersão na “grande filosofia”, como o classificou seu comentarista Paul-Heinz Koesters. Na obra que daí resultou ocupou-se, nada mais nada menos, do que com o antiquíssimo, mas sempre novo problema, das relações entre o Espírito e a Matéria. Para ele, nem a posição da filosofia cristã idealizada de que “no princípio era Deus”, nem o argumento da filosofia materialista de que “do nada só pode resultar o nada, portanto, a Matéria é eterna”, oferecem uma resposta satisfatória. Propõe uma terceira via para conciliar as duas posições antípodas. Para Bloch a Matéria é “animada”, “tem alma” (beseelt). Nela existe uma força, uma energia – melhor – um Sentido. Avançando mais um passo na suar reflexão concluiu que a Matéria está orientada para um objetivo último. Este objetivo, entretanto, ainda não foi alcançado. Chama este objetivo final de “Ideal do Bem”. O ideal do bem estará concretizado no momento em que o processo evolutivo em que a Matéria se encontra estiver concluído. Neste momento o “Bem como tal” estará concretizado: O cosmos, nosso mundo, os animais e os homens, todos feitos de Matéria estarão reconciliados no final do processo. Então reinará a “Harmonia”, o estado almejado, consciente ou inconscientemente, por tudo e por todos, tanto pelas pedras quanto pelos homens, quanto pelas estrelas e as moscas na parede. Quando lá tivermos chegado o “Cosmos todo será (uma) Pátria” – “Heimat” – “Querência” (cfr. Koesters. Deutschland deine Denker. 1981. p. 299-300)
O Pe. Rambo foi mestre em desenhar os “mapas descritivos”, de dar rosto e forma às fisionomias que foi observando. A fim de ilustrar a afirmação, recorri ao diário que escreveu por ocasião da sua visita aos parques nacionais do oeste americano. Ao entrar no parque de Yosemite, flagrou-se diante de um cenário de sonho. Depois de fazer reflexões sobre o significado histórico, humano, antropológico e econômico, da grande corrida do ouro na Califórnia, nos anos cinquenta do século XIX, no vale do rio Merced, cujas nascentes encontram-se no parque, deu vazão às emoções daquele panorama deslumbrante.
Acontece que não viajei para a Sierra Nevada à procura de ouro, mas em busca do mais belo vale do mundo, o vale de Yosemite. As montanhas aproximam-se cada vez mais uma das outras. O rio troveja com crescente furor por sobre os escombros de rochas. A floresta permite a visão livre e eu contemplo um cenário de fadas, como não existe outro igual. O Merced, aqui reduzido a um arroio largo rumoreja aos meus pés. A água é tão cristalina que permite contra as pedras no fundo, observar a dança das trutas. Mais para o fundo abre-se um prado coberto de capim verde, de canas com pontas reluzindo como ouro e no meio delas, milhares de flores brancas, vermelhas, amarelas e azuis. Mais adiante ergue-se a floresta formada por árvores majestosas: pinheiros, cedros e pinheiros Douglas. À direita precipita-se a cascata Véu de Noiva, do alto de um vale de mil metros e desfaz-se em espuma. Também à direita sobe a mil metros de altura um bloco de granito tingido de vermelho pelo sol da tarde. Deram-lhe o nome de “el Capitán”. É o rochedo-sentinela no portal de entrada do vale das maravilhas. E, bem no fundo do vale, outro cume de rochedo sobressai às montanhas, o “Half Dome”, o mais famoso da Sierra Nevada. Sobre o panorama todo estende-se o céu azul e sobre ele navegam, suavemente, os brancos veleiros de Deus. (Rambo, Balduino. Diário de viagem nos USA. 1956. Manuscrito. p. 148-149)
Depois de desenhado o mapa panorâmico do vale de Yosemite, num estilo literário em que sobressai o tom épico, o Pe. Rambo faz a descrição científica dos componentes do vale, Em primeiro lugar, explica a gênese geológica e a moldagem final da paisagem durante o último período glacial. Detalha depois a fauna do parque e de modo especial a composição da flora que, na condição de sua especialidade, logicamente chamava-lhe atenção especial. Chama a atenção a um dos maiores inimigos da floresta local, um fungo que se serve de um arbusto hospedeiro para depois atacar as árvores. Informa também que o volume da neve acumulada no vale durante o inverno, permite predizer a disponibilidade de água para a irrigação dos pomares e vinhedos no vale da Califórnia. Depois acomodado no alto de um dos rochedos do qual se tem uma visão global do parque, volta a desenhar mais um dos seus mapas panorâmicos.
Pouco antes do meio dia chegamos ao “Glacier Point”, um rochedo na extremidade superior do vale de Yosemite. Com certeza devem existir poucos lugares na terra, de onde se descortinam paisagens tão deslumbrantes. Para a direita a vista alonga-se por sobre as serras intocadas até os cumes cobertos de neve dos picos mais altos. Do lago Merced nasce o rio do mesmo nome, precipitando-se em duas cascatas: o Nevada Fall com 160 metros e o Vernal Fall com 95. Em frente, no lado oposto do vale, ergue-se o maior bloco de granito do mundo, o Half Dome, com 2760 metros acima do nível do mar e 1500 metros a prumo sobre o chão do vale. Para a esquerda desfruta-se uma visão sobre todo o vale, e mais adiante, sobre os altiplanos dos dois lados, inúmeros milhares de pinheiros Jeffrey, isolados, em grupos, ou formando florestas fechadas. Parecem-se com um exército de soldados, aprestando-se para o assalto aos cumes das montanhas. Onde quer que haja uma saliência, uma fenda, um lugar para um pé, agarram-se os arbustos, carvalhos anões, castanheiras anãs, azaléias anãs. Essas últimas vestem na primavera os gigantes de pedra das montanhas com um manto real de púrpura, nas suas tonalidades mais esplendorosas. Aos meus pés o paredão de rochas precipita-se perpendicularmente por 976 metros. As fitas de um azul negro das estradas com os carros multicoloridos circulando nelas; a faixa azul clara do rio entre a floresta escura e os prados cor de ouro; as cidades de barracas e cabanas ao longo do rio, na floresta, ao pé da grande cascata; as multiformes rochas na beirada; o Half Dome fendido ao meio, os Arcos Reais, o Pináculo das águias, a Torre de Observação, as Torres da Catedral, o Capitão Sentinela: tudo compõe um quadro que somente um foi capaz de conceber: Aquele que, no canto de Habacuc, marcha sobre as montanhas e as faz tremer sob o passo marcial de suas eternidades. (Rambo, Balduino. Três meses na América. 1956. Manuscrito p. 151)
Paul Heinz Koesters no seu livro “Deutschland deine Denker” traça o perfil do filósofo da esperança Ernst Bloch. Ernst Bloch, o filósofo da Esperança, nasceu 1885 em Ludwigshafen no Reno. No centro do seu pensamento encontra o conceito “Heimat” (querência). Entre as obras que o levaram a esse conceito estão os romances de aventura de Karl May. Entre índios, búfalos, pradarias – nesse panorama o jovem Bloch sentiu-se pela primeira ez “em casa”, na Heimat. Heimat só pode existir lá onde ha Liberdade. O judeu e marxista Blochque emigrou para a América por causa dos nazistas e abandonou a Repíblica Democrática d Alemanha em 1961, lecionou ainda em Tuebingen onde faleceu com 92 anos em 1977. Num mundo que sofre pesadamente com a desesperança, Bloch ensina o homens a terem esperança. Num bloco de pedra de rocha rústico com milhões de anos lê-se a inscrição: “Pensar significa transpor o princípio da Esperança”.