A Natureza como Síntese - 30

Chegou o momento de arriscar identificar quais as impressões, quais os sentimentos, quais as emoções e qual a compreensão, que povoavam o seu íntimo e qual a natureza das reflexões que o acompanharam nas suas  peregrinações  pela Natureza. Mais acima já destacamos que a parte mais volumosa dos escritos do Pe. Rambo, encontram-se no seu diário na forma de reflexões, não poucas vezes dirigidas a Deus na forma de diálogos. São literariamente ricas, rigorosamente científicas e filosoficamente densas. Ele próprio resumiu o que entendeu como Ciência e porque merece ser praticada.

A Ciência apenas possui então valor se é para cultivar o que o cientista tem de humano (Menschlichkeit) – (para a formação humana do cientista), quando empreendida e praticada a partir do todo e estruturada dentro do todo. Pressupõe isso um treinamento escolar geral voltado para o todo – coisa que foge à grande maioria dos pesquisadores atuais. (...) A ciência quando praticada com acerto é uma recriação espiritual do mundo, uma atividade semelhante à de Deus, dando assim em culto divino. (Rambo. Balduino. Diário. 1/08/1949)

Salvo melhor juízo está condensado nesse texto a síntese, a essência,  a razão de ser para alguém dedicar-se à Ciência, a maneira de conduzi-la e a sua destinação maior. E a destinação maior consiste, antes de mais nada, em humanizar o pesquisador e o próprio cientista e este, por sua vez, irradiar o seu “humanum” – “Menschlichkeit”, para o mundo em seu derredor. Pressupõe-se, para tanto, que o cientista desenvolva sua tarefa, inspirado numa cosmovisão unitária, holística e integradora da natureza. E é nesse particular que encontramos o “nó górdio” que é preciso desatar. A questão não se resolve cortando-o com a espada, mas desatando-o. Para tanto requer-se da parte do cientista, do pesquisador, uma formação acadêmica de visão ampla  e abrangente, fundamentada na concepção do todo em que se move. Além de dominar profunda e rigorosamente o objeto da sua especialidade. É preciso que esteja em condições de transmitir com precisão e estilo, maestria e convicção, os resultados das suas reflexões. Vai na linha da proposta de formação conhecida na Inglaterra como “Oxbridge”. Por ela objetiva-se formar um cidadão completo, não um especialista bitolado, tolhido por viseiras. Este é o verdadeiro “gentelman”, uma pessoa dona de uma formação de bases amplas, profunda e segura na sua especialidade, comunicando-se com desenvoltura e em alto estilo. Os antigos romanos falavam em “vir bonus, peritus dicendi” – “um homem bom, completo, bem formado, que sabe comunicar-se com elegância.  Não é vulgar, ignorante, grosseiro, mas conhecedor e sabedor do que fala. Salvo melhor juízo, vai nessa direção o pensamento do Pe. Rambo ao definir como ele concebia o verdadeiro fazer ciência.

Ciência verdadeira começa apenas ali onde ela se tornou culto pessoal a Deus para o próprio pesquisador. E isso muito antes de qualquer ideia relativa a publicidade. Ciência vem a ser um decifrar dos vestígios de Deus e um respeitoso reescrever imitativo do Mundo, portanto, um estudo artístico de primeira ordem e grandeza. Ciência é uma contemplação contínua e a cópia desejada  dos planos arquitetônicos secretos e misteriosos do Mundo. Uma vez que tudo isso equivale à reconstrução imitativa e ao entender por dentro das coisas de sua ordem hierárquica – tudo no espelho de uma arte verdadeira. Próprio, contudo, à toda obra de arte é que irradie da plenitude e ordem hierárquica de cada uma de suas partes, de toda a sua ancoragem no belo todo o Cosmos e seu parentesco com o arquétipo, que se encontra além de toda a beleza artística, despedindo de si um calor e um reflexo de luz, aos quais não foge nenhum homem de pensamento hierárquico. Apenas dali, portanto, a partir da plenitude de um riqueza interior, começa a atividade exteriorizada da Ciência, pois, sendo verdadeira, ela é um facho aceso e reluzente, similar aos sóis do firmamento, que avançam espalhando benefícios por sua mera existência. (Rambo, Balduino. Diário. 3 de junho de 1951)

Nessa passagem do Diário Pessoal, Pe. Rambo condensou a sua compreensão do Universo e da Natureza como um todo e nas suas partes. Definiu a razão última de ser da Ciência como sendo um “culto a Deus”. Por isso a tarefa do autêntico cientista resume-se em reescrever, redesenhar, em prosa e verso, essa grandiosa obra em homenagem ao Supremo Artista. O que importa, em última análise, como resultado final da atividade  científica, consiste em descobrir em a Natureza “os planos arquitetônicos secretos e misteriosos do Universo”. E identificando a arquitetura singular dos componentes da natureza, descobrir as relações estruturais, funcionais e hierárquicas que os inserem num todo maior, numa unidade superior, num “sistema global”, como diria Ludwig von Bertalanffy. Sobre esse pano de fundo, Renato Dalto foi de uma rara felicidade, ao resumir as características da obra científica do Pe. Rambo.

Seus relatos da natureza são grandes mapas descritivos – o conceito fisionomia, no qual primeiramente enxerga o todo para depois entrar nos detalhes. O detalhe é a visão do botânico, mas há também a busca da síntese entre ciência e religião, os questionamentos da alma, o vigor literário e a construção poética capaz de ver couraça revestindo pedras, atribuir memória a acidentes geológicos, escutar a canção das águas, ouvir o murmúrio do chamado divino em meio à névoa da noite. (Dalto, Renato – Tavares, Eduardo. 2007. p. 12)

Nessas poucas linhas Renato Dalto identificou os pontos focais sem os quais a obra do Pe. Rambo corre o risco de ser mal entendida e até desqualificada, como aliás já ocorreu. Para ele  Ciência se faz, em primeiro lugar, a partir da visão dos conjuntos naturais. A observação panorâmica dos conjuntos permite desenhar “grandes mapas descritivos”, os quais, por sua vez, sintetizam  a compreensão da Natureza no conceito de “Fisionomia”. Segue numa segunda fase a tarefa penosa e desgastante, mas indispensável de procurar, identificar e encaixar no “mapa”  as peças como que num quebra-cabeça. E o esforço não se limita em colocar os detalhes no seu devido lugar. Parece que nesse esforço esgota-se para a imensa maioria dos pesquisadores o conceito de “fazer ciência”. E aqui deparamo-nos com a razão de fundo porque o Pe. Rambo, de um lado sofre diminuição na sua estatura de cientista por uma minoria e os seus admiradores, que são a imensa maioria dos que entraram em contato com sua obra, admiram-no e chegam a venerá-lo. 

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