A Natureza como Síntese - 34

Uma proposta de síntese

Numa reflexão anotada no diário de 17 de julho de 1946, Rambo deixou um esboço da síntese abrangendo todos os campos do saber que se propunha a elaborar. Assumia essa tarefa como a missão maior da sua vida. Conta que ele e seu irmão de ordem Pe. Jorge Steiger, estavam elaborando o discurso que o recém eleito cardeal D. Jaime de Barros Câmara pronunciaria na homenagem que os intelectuais de Porto Alegre lhe fariam na ocasião. Conversa vai conversa vem e o assunto só poderia ser algo de nível para os dois intelectuais que eram o Pe. Rambo  e  o Pe. Steiger. A certa altura este observou que a partir da Idade Média não se formulou mais nenhuma síntese que abrangesse o conhecimento na sua totalidade. O que Tomás de  Aquino e Alberto Magno foram para a Alta Idade Média algum sábio moderno deveria ser para os tempos atuais. Essa observação despertou e pôs em ebulição todo um universo de preocupações científicas, filosóficas e religiosas que, há anos, formaram, por assim dizer, o eixo em torno do qual giravam  as  reflexões do Pe. Rambo e foram o motor a dar sentido à sua atividade científica. Passar das reflexões sem compromisso formal, para concretizar a formulação daquela abrangência, pressupunha em primeiro lugar uma avaliação até que ponto a síntese elaborada por Tomás de Aquino, Alberto Magno e demais pensadores e sábios da Idade Média não se tronara obsoleta ou então até que ponto era preciso validá-la no cenário criado pelas Ciências Naturais. Rambo chega questionar a utilidade do sistema aristotélico-tomista como suporte para lidar com o novo cenário. Pergunta se não convinha abandonar os dois sistemas e começar tudo de novo a partir de Platão. Nesse caso o sistema aristotélico-tomista seria chamado a contribuir na medida em que fosse necessário ou conveniente. Para ele o velho racionalismo que é o cerne desse sistema não oferece potencial suficiente para entender a  complexidade da natureza. Permanece útil apenas se enquadrado nas “leis perenes do pensamento humano”, pois

"Entre a Ciência e a Fé estende-se o vasto campo da intuição, que não é outra coisa senão um conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do significado e da expressão imediata  da palavra, como do som subliminar que emite a ressonância que desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana até hoje se  prestou muito pouca atenção. Bem considerada, ela não é um som secundário e sim a nota dominante no concerto musical do espírito dinâmico do Homem." (Rambo, 1994, p. 265)

Bem interpretada  essa afirmação leva à conclusão de que nem as Ciências com sua capacidade analítica dos fenômenos naturais, nem Filosofia e a Teologia com se poder análise sintética, são capazes de chegar ao cerne da questão, isto é, oferecer o elemento, ou os elementos que fundem numa mega-síntese os conhecimentos obtidos via analítica e sintética. Recorrendo a uma metáfora. Qual é natureza do conhecimento, “ a pedra de fecho” que faz com que estruturas convergentes se “fechem” num arco ou numa cúpula. Para Rambo essa “pedra de fecho”, sem a qual não se completa a síntese universal é o conhecimento adquirido pela intuição, pela percepção sensorial, levando ao conhecimento condensado, é o que de fato permite falar em síntese. 

A ideia força sobre a qual deve fundamentar-se uma síntese global foi assim resumida por ele: 
Uma verdadeira síntese das Ciências Naturais deve abranger o seguinte pensamento universal: tudo que acontece na natureza é uma reversão para a unidade e para Deus. Sugestivo em extremo se torna este pensamento, ao nos servirmos da seguinte analogia: da multiplicidade máxima, a Natureza retorna à unidade máxima no ser humano. E a Ciência Natural igualmente procura regredir da máxima dispersão para a simplificação  e a unidade. (Rambo, 1994, o. 265)

É oportuno chamar  a atenção para a semelhança senão uma outra versão dessa concepção da natureza de Teilhard de Chardin. A metáfora dos meridianos terrestres que partem do polo sul, do “alfa”, em direção ao equador, para se multiplicarem e diversificarem e aparentemente se dispersarem, para retornarem em busca da unidade no polo norte, o “ômega”. Não consta que os dois cientistas e filósofos jesuítas contemporâneos, se tenham conhecido e estivessem ao par do pensamento um do outro. O retorno à unidade é uma tendência em todos os elementos da natureza, incluindo os elementos químicos anorgânicos e orgânicos, as leis e os fenômenos físicos, todas as formas de vida, a começar pelas arqueobactérias, até as formas mais complexas, tudo comandado pela evolução. Esse poderia ser o conteúdo da primeira  parte da obra sobre a Síntese proposta por Rambo. 

O pensamento central a orientar a segunda parte da obra ocupar-se-ia com os diversos graus ou níveis que levam ao retorno da unidade. Não se trata de avanços aleatórios, sem regra, mas de uma forma organizada, talvez melhor, planejada, e por isso mesmo, conduzida por uma teleologia. Partindo desse pressuposto foi composta a tábua periódica dos elementos, a taxonomia no reino animal e vegetal e a sucessão das eras geológicas. Nesse processo percebe-se de saída que se trata de uma dinâmica e os diversos componentes avançam em ritmos diferentes, algumas ramificações definham e morrem no meio do caminho, enquanto outras mais bem adaptadas se robustecem e seguem vitoriosas até que a mudança das circunstâncias interfere ao ponto de frear o dinamismo e até inviabilizar a continuidade da sua existência. O responsável pela unidade das espécies vivas é o resultado da unidade na direção ou, se preferirmos, pela teleologia que orienta o todo e as partes individuais. Preserva-se assim a unidade na pluralidade e a pluralidade na unidade que se constitui na tese dessa síntese universal. Acontece que a teleologia que comanda o acontecer na natureza pressupõe, por sua vez, unidade de origem. 

Na época em que Rambo fez essas anotações em seu diário, isto é, 1946, a genética e a biologia molecular fornecendo a prova maior para a unidade de origem de todas as espécies vivas, estava  apenas engatinhando com as pesquisas de Thodosius Dobzhansky e outros especialistas na área. O que na época ninguém punha mais em dúvida eram as leis de Mendel com sua validade universal, tanto para animais quanto para vegetais. O grau de identidade do genoma, tanto na sua composição química, quanto na sua importância na condução da evolução, no sucesso das espécies vivas, no surgimento de novas e  na eliminação de tantas outras, ficaria evidente somente na seis décadas posteriores. Hoje 80 anos depois em que dispomos de todas evidências científicas apontando para a unidade essencial do genoma, desde as arqueobactérias até as formas de vida vegetal e animal mais complexas e evoluídas, o autor provavelmente não escreveria mais que a unidade tinha “provavelmente” (Rambo, 1994, p. 266), mas “evidentemente” ou mesmo “certamente” um argumento sólido da “origem comum”.

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