Da Enxada à Cátedra [ 29 ]

Como nem tudo é um mar de rosas, melhor talvez de sucessos, não posso omitir nessa minha trajetória um tropeço que me atalhou o caminho no último ano da guerra, 1945, que, porém, não tinha nada a ver com a guerra. Com 15 anos, como muitos adolescentes, fui envolvido numa turbulência perfeitamente explicável para a idade. Acometeu-me uma autêntica aversão para com determinadas disciplinas, agravada um tanto pelo desempenho dos respetivos professores. Nosso currículo previa duas categorias de disciplinas: as fundamentais e as complementares. Entre as fundamentais constavam o português, o latim e a matemática, complementadas pelas outras línguas, geografia, história, ciências naturais e outras. Quem não alcançasse a média 5 no final do ano numa das disciplinas fundamentais tinha que repetir o ano. Nas disciplinas complementares bastava uma média de 3. Acontece que naquele ano figurava a álgebra como foco da matemática uma das disciplinas fundamentais. Saí-me muito bem no latim, português e de modo especial em história e geografia. Mas, a álgebra foi um tropeço durante todo o ano e completei-o com média 3 ou quatro e a sentença estava dada: repetir a segunda série do ginásio. Havia nessa história um agravante. O professor de álgebra era também o reitor do colégio além de didaticamente falando nada brilhante. Soube no ano seguinte que ele tinha decidido mandar- me uma correspondência nas férias no sentido de que não voltasse mais em 1946. Não tenho as mínimas condições de imaginar que rumo a minha vida teria tomado. Em princípio teria voltado à enxada e provavelmente “cavado” a trilha para o resto da vida na roça. Quem salvou-me dessa encrenca foi o meu professor de português o padre Silvino Arnhold. Na época ele era um jovem jesuíta de menos de 30 anos cumprindo o estágio do magistério no colégio Santo Inácio. Ele nunca me contou essa história. Soube-a por terceiros. Depois de 20 anos nos reencontramos e lembro- me com saudades dos acampamentos e pescarias na época em que ainda se pescavam dourados no Sinos e no Caí. Hoje o Sinos virou uma cloaca a céu aberto e o Caí contaminado com produtos químicos e dejetos de toda a ordem. Considerando bem se não fosse a intervenção do Pe. Silvino naquele momento, não estaria escrevendo hoje essas recordações. Até perto dos 100 anos ele podia ser visto todos os fins de semana disponível para quem precisasse de conforto espiritual no Santuário do Coração de Jesus junto ao túmulo do Pe. Reus. E hoje descansa no cemitério dos jesuítas a poucos metros distante da sala em que atendia e socorria espiritualmente a quem o procurava. O nome desse homem que, sem alarde, cumpriu uma jornada de 100 anos dedicada inteiramente à prática da caridade e zelo pelo próximo brilhará, conforme a promessa da Sagrada Escritura, como uma estrela no firmamento por perpétuas eternidades.

O final do ano de 1945 foi marcado por um evento familiar muito especial. No dia 7 de dezembro meu irmão Roberto foi ordenado sacerdote jesuíta no Colégio Cristo Rei, pelo bispo de Vacaria, D. Cândido Maria Bampi. Meu pai alugou para a ocasião o ônibus que fazia diariamente o percurso Tupandi – Porto Alegre. Partimos de Tupandi às 5h. da manhã. Naquela época as estradas da região eram todas de chão batido. Passamos por Caí, Pareci Novo, Montenegro, onde cruzamos o rio de barca e pela estrada antiga pelos fundos de Portão terminamos no pátio do Colégio Cristo Rei bem no começo das cerimônias da ordenação na capela da instituição. Terminada a cerimônia religiosa nos encontramos com o Roberto recém ordenado, ocasião em que deu sua primeira bênção para a família e parentes próximos. Seguiu-se depois o almoço oferecido pelo Colégio aos pais e parentes próximos dos recém ordenados. Pela meia tarde o mesmo ônibus levou-nos de volta para casa. No fim da semana seguinte aconteceu a grande solenidade e festa da primeira missa solene do Pe. Roberto na igreja matriz de Tupandi. O ritual foi, em grandes linhas, idêntico àquele que descrevi por ocasião da primeira missa solene do Pe. Balduino, ocorrido em 1o de novembro de 1936. Um piquete de cavaleiros foi receber o homenageado nos limites da paróquia, levando um cavalo encilhado. Era sábado de tarde. Toda a comunidade encontrava-se novamente reunida na frente do sobrado do dentista Balduino Weber, repetindo a cena de 9 anos passados. O piquete passou a galope pelo público e foi apear num pequeno bosque onde hoje se encontra o centro de eventos. O Pe. Roberto foi recebido na entrada do caramanchão em frente ao sobrado, pelos pais, irmãos, tios, pároco e demais padres presentes. Os sacerdotes paramentaram-se na sala de visitas da família Weber e, em seguida encaminharam-se em procissão acompanhados de toda a comunidade para a igreja matriz. Na época ainda não se celebravam missas aos sábados à tarde e, por isso, a cerimônia litúrgica resumiu-se numa bênção solene do Santíssimo. Pelo final da tarde subi com meus pais o Morro da Manteiga para passar a noite e no dia seguinte descer novamente para a primeira missa solene – as “primícias” do meu irmão Roberto. Uma missa solene naquele remoto 1945, costumava ser uma acontecimento que envolvia a comunidade inteira. Todos os moradores que formavam a comunidade de Tupandi eram católicos e de origem alemã. Ninguém faltava numa solenidade dessas. A igreja não comportava nem a metade das pessoas. Quem não conseguia lugar dentro assistia à cerimônia do lado de fora pelas portas abertas. O coral masculino dirigido pelo escrivão José Weber deu o melhor de si. Os quatro sinos tocados em conjunto ecoavam o grande acontecimento pelos vales e encostas dos morros. O estrondo de uma bateria de morteiros disparados num potreiro vizinho anunciaram para longe e perto o momento da consagração, enquanto o badalar dos quatro sinos perfeitamente afinados rebatia a sua sinfonia nos vales e morros em torno. Sem dúvida o momento mais esperado daquela manhã foi sermão festivo a cargo do Pe. Balduino. Aquele sermão de 45 minutos, além do brilhantismo e da eloquência conhecida por todos, veio acompanhado por um ingrediente adicional que levou às lágrimas velhos e moços, colonos e colonas todos temperados no cabo da enxada e do machado, nos arados de boi, no gadanho e foice do mato. Acontece que os decretos que proibiam as pregações em alemão, acabavam de ser revogados. Na igreja lotada até portas afora podia-se escutar o zumbido de uma abelha. Escutar na língua dos seus ancestrais aquele sermão, do alto daquele púlpito emblemático esculpido em cedro vermelho pelo artesão Flach, deve ter soado como uma melodia até os arcanos mais profundos da alma daquela gente simples e profundamente humana. Um dos filhos nascido na comunidade lhes falava de Deus e o significado da missão por Ele dada à Criação e ao Homem, na língua em que balbuciaram as primeiras palavras de amor e oração, fez chorar os colonos e colonas feitas de cerne de cabriúva.

Terminada a missa solene e depois de uma bênção do novo sacerdote para toda a comunidade presente, os convidados encaminharam-se para o almoço no salão de baile do Sr. Afonso Konzen, enquanto os demais recolheram-se às suas casas. O almoço nada tinha ver com um banquete no sentido corrente o termo. Meu pai tinha engordado um novilho que forneceu o carne assada no forno, massa feita em casa, arroz, salada e uma sobremesa de sagu, vinho e framboesa. Um cardápio que se repetia em casamentos, kerbs, festas de igreja. Guardo com carinho uma fotografia daquele “banquete” pois, lá está uma das últimas fotos do meu pai.

Da Enxada à Cátedra [ 28 ]

Voltando à rotina do internato no período da guerra, destaco que os primeiros meses de 1943, além de todas as restrições e dificuldades decorrentes da campanha de Nacionalização e da própria guerra, foram marcados por uma estiagem devastadora de 3 meses. A direção do colégio chegou a pensar na suspensão das atividades escolares e que os internos, pelo menos os que moravam menos longe, fossem para casa. O abastecimento de água foi comprometido e o arroio Salvador que alimentava o reservatório que movimentava a usina de geração elétrica do colégio quase sem água. As fontes responsáveis pela água potável e da limpeza da casa encontravam- se com a vasão em nível crítico. Foi preciso levar com carretas de bois os toneis da água buscada na piscina que ficava uns 100 metros distante. Vejo ainda hoje a figura esbelta e alta do prefeito geral, Pe. Oscar Müller, carregando baldes e mais baldes de água das carroças até os banheiros e os limpava nos fins de tarde enquanto nós nos ocupávamos na sala de estudo com os temas e demais obrigações das aulas. Registro aqui a minha homenagem especial a esse jesuíta suíço de coração de ouro que cuidou de nós seminaristas, diria quase como que uma mãe entre 1942 e 1945. Depois passou ocupar importantes cargos na formação do clero: reitor do Seminário Central de São Leopoldo de 1946-1948, quando foi nomeado reitor do Colégio Cristo Rei entre 1949-1951. De 1951-1955 foi reitor do Pio Brasileiro em Roma e de 1955-1967 foi orientador espiritual da mesma instituição. Voltando ao Brasil em 1967 foi diretor espiritual dos estudantes de teologia no colégio Cristo Rei e professor de Teologia. Dedicou os últimos anos a uma intensa atividade de retiros, cursos e, principalmente, de apoio psicológico-espiritual a sacerdotes, religiosos e religiosas. Numa dessas jornadas ao Ceará, faleceu em Fortaleza em consequência de um edema pulmonar e no dia seguinte foi sepultado no cemitério dos jesuítas em São Leopoldo. Devo a esse suíço uma enorme dívida de gratidão pelo apoio e compreensão quando da minha saída da Ordem em 1971.

Em 20 de agosto de 1942 o Brasil declarou guerra à Alemanha. Antes de falar sobre os reflexos desse ato extremo de demonstração de hostilidade contra a Alemanha, sobre a rotina do seminário em Salvador do Sul, creio ser útil mostrar os fatos imediatos que levaram o Brasil a tomar essa decisão extrema. Durante décadas discutiu-se mais tarde sobre o que na verdade estava atrás do afundamento dos navios brasileiros em águas territoriais na costa do nordeste naquele 15 de agosto e 1942. Acontece que o Brasil rompera as relações diplomáticas e comerciais com o Eixo já em janeiro de 1942, mas manteve-se neutro em relação ao conflito bélico propriamente dito. Nesse meio tempo o Comando da Guerra Naval alemão, montara a operação de guerra no 53 endereçada ao Brasil como retaliação ao rompimento das relações diplomáticas e comerciais. Essa operação previa um ataque de uma flotilha de submarinos a navios brasileiros. Conforme consta nos relatórios do Comando de Guerra Naval a operação no 53 foi cancelada por razões políticas. Supõe-se que o ministro das relações exteriores da Alemanha, Joachim von Ribbentropp teria convencido Hitler da inoportunidade da ação pois, poderia provocar uma reação em cascata na América do Sul, arrastando principalmente o Chile e a Argentina abandonar a neutralidade e passar para o lado dos Aliados. A Alemanha alertara o Chile e a Argentina que identificassem seus navios para não serem atacados pelos submarinos. Pelo que informou o tenente-coronel Durval Pereira o alerta da identificação dos navios não foi comunicado ao Brasil tornando-os alvos dos submarinos. Documentos do Arquivo Federal alemão informam que o submarino U53 sob o comando do capitão Harro Schacht recebeu a missão de interceptar navios isolados, navegando para a África do Sul, longe da costa do Brasil. Passou semanas sem encontra uma presa sequer e convencido que navios americanos navegavam por águas territoriais brasileiras, aproximou-se da costa e localizou um navio sem identificação no casco. Disparou dois torpedos que não acertaram o alvo. Aproximou-se até 100 metros mandou disparar mais dois torpedos que afundaram o Baependy, um barco misto de carga e passageiros. Naquela noite de 15 de agosto, um por um, cinco navios mistos foram afundados pelos torpedos de Harro Schacht. Como se pode deduzir o afundamento dos navios brasileiros foi na verdade o resultado da iniciativa do capitão de submarino Harro Schacht. Deixando de lado a discussão mais aprofundada sobre a verdadeira responsabilidade sobre o torpedeamento dos navios brasileiros e consequente declaração de guerra do Brasil ao Eixo em 20 de agosto, volto as atenções sobre a repercussão desses fatos sobre a rotina do meu internato.

Evidentemente quando esses acontecimentos se tornaram públicos a comoção tomou conta do País, ainda mais quando os corpos dos passageiros dos navios foram levados pelo oceano até as praias do Sergipe. O novo panorama desenhado por essa decisão tão relevante acirrou ainda mais as tensões motivadas pela Campanha de nacionalização. O cerco aos possíveis aliados e defensores do Eixo foi reforçado e a vigilância redobrada. É oportuno relembrar que a maioria dos padres meus professores eram alemães, austríacos e suíços natos. Na prática todos eles eram rotulados como alemães e tratados como estrangeiros. Como já anotei mais acima, não ocorreram devassas da parte da polícia, muito menos constrangimentos e prisões. Como qualquer outro estrangeiro eram obrigados a se munir de um salvo-conduto para viajar de um município a outro ou de um estado a outro. Mas, o torpedeamento dos navios na costa do nordeste teve um efeito colateral que afetou por meses toda a comunidade do Colégio Santo Inácio, tanto os internos quanto os professores e a direção. Na época mercadorias e produtos como sal e açúcar vinham via navegação costeira ou de cabotagem do nordeste para abastecer os mercados do sul. O ataque aos navios de passageiros e de carga em águas territoriais levou a interrupção da navegação de cabotagem. Para encurtar a história o colégio não tinha como conseguir sal e açúcar vindos do nordeste. Como consequência as refeições e o pão eram preparadas sem sal. Essa situação prolongou-se por aproximadamente meio ano. A falta de abastecimento de açúcar não foi tão dramático. De um lado porque seu uso era mais seletivo e do outro sempre havia a possibilidade de conseguir açúcar mascavo artesanal dos colonos da redondeza. Lembro-me como se tivesse sido ontem no dia em que o Reitor do Colégio entrou no refeitório durante a janta e nos deu a boa nova: “Voltou o sal e amanhã vamos comemorar com um “passeio grande”. Já instrui o padeiro para deixar pronto uma fornada de pão com sal par amanhã. Foi uma festa. No dia seguinte fomos acampar no Campestre. Antes de sair para o piquenique cada interno recebeu um quarto de pão de farinha integral e, felizes, caminhamos pela estrada de terra que terminava perto das cascatas no Campestre onde armamos o acampamento para passar o dia. Ao chegar no local o pão tinha sumido. Durante a caminhada tinha sido “devorado” como uma guloseima.

No mais a rotina do colégio seguiu seu curso normal enquanto possível nas circunstâncias anômalas criadas pela guerra. Não me lembro que se tenham formado grupos definidos a favor ou contra o “Eixo” ou os “Aliados”. Os responsáveis pela instituição foram suficientemente hábeis para evitar esse tipo de radicalização. Presenciei um ou outro caso de discussões pontuais entre os alunos mas, nada que perturbasse o bom andamento do todo ou desandasse em quebra de amizades muito menos na formação de grupos fechados entre os seminaristas defendendo um ou outro lado do conflito. A situação assumiu contornos mais preocupantes no decorrer do ano de 1944 com a formação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) arregimentada para lutar, junto com os aliados, na frente de combate na Itália. Depois do primeiro escalão que partiu para a Itália, composto por tropas do Rio de Janeiro, Minas, São Paulo, o recrutamento foi se ampliando para as guarnições dos estados do Sul. Parentes próximos de não poucos alunos do colégio foram incorporados em sucessivos escalões com destino para a Itália. Um primo irmão meu e outros parentes de segundo e terceiro grau foram convocados. A maioria deles não chegou a embarcar porque a guerra terminou enquanto aguardavam no Rio de Janeiro ordens para partir para a frente de combate. O fato de três jovens padres jesuítas, mais acima já me referi a eles, se terem apresentado como voluntários para acompanhar as tropas como capelães militares aumentou os interesse em acompanhar mais de perto todos os lances do final do conflito. Suas vidas corriam os mesmos riscos da dos soldados envolvidos no fogo dos combates na linha de frente. Felizmente terminado o conflito os três voltaram sem terem sofrido nenhum ferimento. Passaram para a reserva como oficiais das forças armadas. O Pe. capelão Wendelino Junges trabalhou na pastoral e o Urbano Rausch e Emílio Schneider como assistentes nos Círculos Operários. Querendo ou não o fato de soldados brasileiros em frentes de combate, 450 dos 24.000 que foram para a Itália morreram em ação, despertou em nós seminaristas um sentimento de solidariedade com a tropa. Cantávamos nos encontros informais e formais a “Canção do Expedicionário” e o coral do colégioencerrava encontros culturais e outras programações do nosso calendário com a versão em português do “Coro dos Prisioneiros” da ópera Nabuco de Verdi, com a letra tendo como pano de fundo o drama dos expedicionários e seus familiares. Finalmente em começos de maio de 1945 terminou a guerra na Europa e em agosto também no Pacífico contra o Japão. O término da guerra forçou também a deposição de Getúlio Vargas e com isso o encerramento da ditadura do Estado Novo (1937-1945), numa ação conjunta da UDN (União Democrática Nacional) e as Forças Armadas. Em 1946 o marechal Eurico Gaspar Dutra foi eleito democraticamente pelo voto popular presidente da República.

Da Enxada à Cátedra [ 27 ]

Como em muitos outros níveis, também entre o clero secular e regular a Campanha de Nacionalização teve sequelas no mínimo discutíveis. Vou-me limitar ao caso dos jesuítas que me é mais familiar e conhecido. A partir do período que é nosso foco aqui começou-se a falar com sempre maior frequência na “Velha Guarda”. Pergunta-se: quem pertencia à “Velha Guarda”, quais seus protagonistas e qual foi o legado que deixaram para as futuras gerações de jesuítas e para a história da consolidação religiosa e sócio econômica do sul do Brasil como um todo. Não é aqui o lugar para entrar em detalhes pois, esses podem ser encontrados nos meus três livros que publiquei sobre a temática, todos pela Ed. da Universidade do Vale do Rio dos Sinos: “Um sonho e uma Realidade – 0 Projeto Educacional dos Jesuítas; Somando Forças – O Projeto Social dos Jesuítas; Os Jesuítas no sul do Brasil – O Projeto Pastoral. A justiça manda creditar esses três projetos à “Velha guarda”. Em termos históricos os últimos personagens e protagonistas dessa “Velha Guarda” saíram do cenário no decorrer da década de 1950, quando foram substituídos pelos irmãos de Ordem nativos. O período de transição e transferência do bastão de comando da Velha Guarda” para seus herdeiros nascidos no Brasil, não foi de todo tranquila. Como eu fui jesuíta dos 20 aos 41 anos, isto é, entre 1950 e 1971, suponho que tenha credenciais para opinar com conhecimento de causa. Olhando para trás mas, sempre com a precaução de que “as coisas não são como as vemos mas como as recordamos” (Caldera , 2004, p. 14), fica claro que a “Velha Guarda” incarnou o que poderíamos chamar de brigada de assalto na missão de conquista e consolidação das novas fronteiras para o Reino de Deus no sul do Brasil. Seus nomes, suas façanhas e sus obras estão registradas nos livros que citei mais acima. Tive a felicidade de conhecer e conviver entre 1942 e 1946 com o Pe. Johannes Rick, um dos personagens mais emblemáticos dessa brigada da velha guarda. Desgastado pelos 40 anos como pregador de missões populares, catequese aos ferroviários, consolidação da fronteira de colonização do oeste de Santa Catarina, secretário itinerante da Sociedade União Popular, além de especialista de renome internacional na pesquisa de fungos, passou os últimos anos no Colégio Santo Inácio. Por algum tempo ainda ministrou aulas de Ciências Naturais. Os últimos anos dedicou-se inteiramente à coleta e classificação de fungos que seriam enviados para especialistas principalmente nos Estados Unidos. Inúmeras vezes observei aquele homem de perto de 2 metros de altura, um tanto curvado pela idade, saindo do mato do colégio carregando a coleta do dia e recolher-se ao seu quarto no primeiro andar da ala onde moravam os padres professores. Já lembrei em outro lugar mais acima que o Pe. Rick foi meu confessor por um par de anos. Ele próprio definiu em poucas palavras o perfil da sua personalidade: “Se eu tivesse nascido na Renascença não me teria feito jesuíta mas, um Condottieri Italiano”, ou ainda “A minha vida se parece com uma tabuleiro de xadrez, sobre o qual cada lance deve ser atentamente calculado para chegar ao Xeque Mate”. Suas últimas palavras revelam o cerne de sua personalidade: “Nemo Pater nisi Deus” – “Ninguém é Pai senão Deus!E como o Pe. Rick todos da “velha guarda”, cada qual à sua maneira, arregimentados no Tirol do Sul e do Norte, nos cantões da Suíça alemã, na Baviera, na Renânia, no Palatinado, na Vestfália, na Áustria, na Boêmia, na Pomerânia e demais territórios de fala alemã, cumpriram bem ao estilo inaciano a grande missão de fazer do sul do Brasil uma terra economicamente próspera, social, cultural e religiosamente de um nível invejável. Cabe aqui um inciso de natureza pessoal. Ao decidir fazer-me jesuíta meus modelos, meus inspiradores, meus “ídolos”, foram representantes dessas “velha guarda” que me foram familiares desde que me conheci como gente. Na medida em que os últimos sobreviventes saíram de cena e em seu lugar entrou a nova geração de jesuítas que foi tomando um rumo divergente tácito, muitas vezes nem tanto, de questionamento e até de condenação da obra dos pais fundadores, comecei a perder o chão sob os pés e terminei me desligando da ordem depois de 21 anos. Mas, não é aqui o lugar para entrar em detalhes dessa transição penosa e sofrida da minha vida.

Da Enxada à Cátedra [ 26 ]

O Período da Segunda Guerra Mundial

Os quatros primeiros anos que passei no Colégio Santo Inácio, 1942-1945, coincidiram com a vigência do Estado Novo, da Campanha de Nacionalização e da Segunda Guerra Mundial. Mais acima já lembrei os reflexos negativos sobre minha formação primária decorrentes do Estado Novo e da Campanha de Nacionalização. Entrei no Colégio Santo Inácio um pouco mais do que alfabetizado o que me levou a ser matriculado no terceiro ano do primário, o que na verdade significou que era preciso começar tudo pelo começo. Lia, escrevia e falava sem dificuldade alemão. Dominava a aritmética e os cálculos básicos que tinha aprendido na escolinha do Morro da Manteiga. O meu português não passava dos rudimentos tanto para me fazer entender e, consequentemente, para entender os colegas falando. Redação e gramática algumas noções. Essa situação rendeu-me não poucos contratempos no convívio, com destaque para um tal ou qual isolamento pois, estava terminantemente proibido falarmos uns com os outros em alemão, por imposição dos decretos da nacionalização. Bastava chegar ao conhecimento da polícia a mínima suspeita que no Colégio se falava ou alemão, ou italiano, ou polonês, ou outra qualquer língua que não fosse o português, para sumariamente proceder uma vistoria e sem a menor cerimônia prender o reitor ou qualquer outro responsável pelos internos. Os responsáveis pelo estabelecimento não tinham outra alternativa senão impor com severidade o português. Essa situação agravou-se, no meu caso pelo menos, nos dois ou três primeiros meses pela saudade da minha casa, dos meus pais e irmãos. Num dos cantos do campo de futebol cercado com tela enxergava-se ao longe aquele morro triangular coberto de mata virgem e na encosta uma roça que fazia parte da propriedade da família. Naquele canto, agarrado às malhas da cerca, passei não poucos momentos, olhando aquele cenário lá ao longe, deixando correr livremente, sem me importar com os colegas por perto, lágrimas doídas, brotadas do fundo coração. Ainda bem que ninguém dos meus superiores teve a ideia de sugerir que alguém da família me buscasse. O responsável imediato pela “divisão dos pequenos”, o “Fr. Urbano Müller”, teve a sensibilidade e a compreensão de, naqueles momentos me socorrer e tratar-me como que um irmão menor. Deixo aqui o meu registro de gratidão pois, se estou escrevendo essas recordações 80 anos depois, devo-o, em grande parte, à sua compreensão pelo drama pelo qual eu estava passando naqueles momentos. O Ir. Vicente Slany, já me referi a ele mais acima, o regente da terceira série e responsável por todas as disciplinas do currículo, foi outro a quem devo não ter abandonado o colégio e voltado para a enxada. Esse irmão leigo jesuíta nascido na Áustria, um homem alto e atlético, passando um pouco dos 40 anos, invariavelmente bem-disposto e empolgado pelo que fazia, fez com que em pouco tempo tomasse um enorme gosto pelo estudo e superasse aquele começo tão desfavorável. Mais tarde, já no nível de ginásio, foi meu professor de desenho. No dia 19 de julho, aniversário do Ir. Slany, sempre havia uma comemoração em sua homenagem. O Pe. Oscar Müller, originário da Suíça, como “prefeito geral”, foi outro jesuíta daquela estirpe sonhada por Santo Inácio, que contribuiu decisivamente para que eu não desanimasse e desistisse.

Em 20 de agosto de 1942, portanto, no mesmo ano em que me internei no Colégio Santo Inácio, o Brasil declarou guerra ao “Eixo”, a aliança formada pela Alemanha, Itália e Japão. Com esse ato os decretos da Campanha de Nacionalização e a ação do seu braço e aparato policial, fecharam ainda mais o cerco a tudo que para as autoridades não correspondia ao figurino da “brasilidiade”. Acontece que entre os internos do Colégio Santo Inácio 90% ou mais eram descendentes de alemães, italianos e poloneses, com uma predominância numérica expressiva em favor dos primeiros. Além disso o reitor, o “prefeito geral”, e a maioria dos padres professores eram alemães, suíços de fala alemã e austríacos natos. Os demais jesuítas cumprindo o estágio de magistério vinham das colônias alemãs ou italianas. Para as autoridades civis e, de modo especial, para as policias estaduais, o colégio, situado longe de qualquer centro urbano maior, isolado nos morros nos confins do então município de Montenegro, concentrava uma população docente e discente no mínimo “pouco brasileira”. Mas, não me lembro de nenhuma ocorrência de devassa no estabelecimento ou intimação para se apresentar na subdelegacia de polícia, muito menos de alguma prisão. Com certeza os serviços de inteligência tinham em mãos informações de que no colégio não circulavam veículos de propaganda em favor da Alemanha muito menos a existência de algum grupo de resistência à nacionalização e apoio aos aliados do Eixo. Os internos não tinham acesso a jornais ou revistas, muito menos a noticiários de rádio ou a outras fontes de informação. Os ecos da guerra nos alcançavam dispersos e intermitentes de maneira que não foram consistentes ao ponto de estimular animosidades entre os alunos. Os padres e irmãos estrangeiros aos quais me referi mais acima abstinham-se de externar suas opiniões e muito menos polemizá-las em público. Em todo o caso, posso afirmar com toda a convicção que nenhum deles apoiava o regime nazista da Alemanha. Os austríacos detestavam esse regime porque incorporara à força a sua pátria ao “Terceiro Reich” e, evidentemente também pelo ódio que destilava contra o catolicismo e em especial contra os jesuítas. Pelos mesmos motivos religiosos também os suíços jamais contemporizariam com o nacional socialismo e seus métodos ainda mais que a Suíça se manteve neutra durante todo o período da segunda Guerra Mundial. Os padres e irmãos leigos cultivavam como qualquer filho de outro país, como é óbvio, uma profunda afeição pela pátria de origem, palco de uma guerra e devastação como nunca houve na história e, de modo especial, com o povo que nada tinha a ver com as razões da barbárie que os vitimava. Um bom número de irmãos de ordem foram confinados como criminosos em campos de concentração. O Pe. Rupert Maier, conhecido como o apóstolo de Munique, herói nacional condecorado com a “Cruz de Ferro” por atos de heroísmo como capelão militar na Primeira Guerra Mundial, quando perdeu uma perna, foi confinado no mosteiro de Ettal, ameaçado de prisão e morte. Aliás, lembro- me como se tivesse sido ontem quando em meados de fevereiro de 1945, o Pe. Oscar Müller, nosso “prefeito geral”, nos comunicou reunidos na sala de estudo, que acabara de receber a notícia que os jovens padres jesuítas, ambos com menos de 40 anos, Alfred Delp e Alois Grimm, tinham sido executados numa prisão em Berlim. Havia ainda uma série de outras razões pelas quais o Colégio Santo Inácio não oferecia risco algum para servir de abrigo a inimigos do Brasil infiltrados empenhados e fomentar nos seus pupilos qualquer tipo de simpatia pelo Nacional Socialismo e suas pretensões de conquista também fora da Europa. Nesse contexto chamo a atenção a uma autêntica guinada de 180o entre os jovens jesuítas alemães e italianos nascidos no Brasil. Não digo todos mas, a grande maioria aderiu à Campanha de Nacionalização ou, pelo menos, concordou com ela, obedecendo à orientação do arcebispo D. João Becker e seus sufragâneos no Rio Grande do Sul. Pelos menos 3 dos jovens jesuítas que cumpriam o estágio de magistério no Santo Inácio na época da guerra alinhavam-se com essa orientação. Mais um dado reforça adesão ao “abrasileiramento” entre os sacerdotes mais jovens dos jesuítas da Província Sul Brasileira. Por ocasião em que “Força Expedicionária a FEB” foi arregimentada para lutar na frente de guerra da Itália, ao lado dos aliados, o alto comando decidiu incorporar na tropa um número proporcional de capelães militares ao efetivo dos combatentes. O superior provincial do Sul solicitou que se apresentassem voluntários para a missão. Os 3 jesuítas que se apresentaram e partiram de fato com a FEB para a Itália e prestaram assistência nas frentes de combate, foram todos descendentes de imigrantes alemães: Emílio Schneider, Vendelino Junges, Urbano Rausch. A eles veio somar-se o padre diocesano Nilo Collet, também neto de imigrantes alemães.

Da Enxada à Cátedra [ 25 ]

A rotina do internato como a descrevi mais acima, pode dar a impressão de um dia a dia de quartel. Não vou negar que havia muito na disciplina que em pouco diferia dessas instituições militares ou de uma academia militar. Olhando para trás, porém, ressalvando alguns senões, só tenho a agradecer não só no que se refere à disciplina acadêmica como quanto ao regramento do quotidiano como um todo. De bom grado concordo que se nessa rotina apertada não tivesse havido momentos regulares de interrupção para sair dos muros e dar uma respirada, esquecer os livros, as salas de aula e os compromissos com a manutenção do casa, 9 meses confinados, com certeza poucos teriam suportado. Mas a sabedoria dos idealizadores do “Ratio Studiorum”, os planejadores dos currículos e da sua programação didático pedagógica, fez prever programações alternativas regulares para contornar os senões de que falei acima. Para começar uma recomendação, embora possa parecer detalhe, significou e continua significando muito em termos de higiene mental para quem se ocupa basicamente com trabalho intelectual e válido em qualquer situação em que ela ocorre. Depois de cada 2 horas de aula, de leitura ou de estudo, seguia obrigatoriamente um intervalo de no mínimo de 20 minutos, para a prática de algum lazer. Tanto fazia um papo sem compromisso com colegas, uma corrida pelos campos de exporte, uma ginástica na barra ou exercícios físicos de alongamento, flexão, levantar peso e outros, que coubessem dentro daquele período.

Uma segunda modalidade de quebra de rotina dava-se em não poucos domingos ou sábados à tarde. O início do ano escolar coincidia com a colheita da uva. Acontece que Salvador do Sul e São Pedro da Serra fazem limite com as colônias italianas. É por todos conhecido que a plantação de uvas e produção de vinho era quase que exclusividade dos colonos italianos. A mais ou menos uma hora de caminhada para o norte do atual município de São Pedro da Serra localizava-se a Linha Pimenta povoada exclusivamente por italianos cultivando belos parreirais alternando com milho e feijão. Na extremidade ocidental de Salvador do Sul, já na descida para Linha Comprida, a família Gasperin cultivava parreiras que enchiam os olhos, saturavam as redondezas com seu perfume suave e delicioso e convidavam para degustar o sabor ímpar que só uma uva madura é capaz de oferecer. Lembro-me como se tivesse sido ontem dos sábados à tarde que meu “prefeito” me destacava com dois ou três colegas para passarmos a tarde colhendo uvas nas parreiras de famílias amigas do Colégio. Dos nomes guardei na memória apenas a família Gasperin. Enchíamos três ou quatro grandes balaios de vime para, na tarde seguinte, domingo, a divisão inteira de internos, cerca de 35 adolescentes, sempre sob o comando do Prefeito, às vezes também do Prefeito Geral, passar uma alegre tarde comendo uvas nas sombra das árvores em volta da casa do colono. Antes de voltarmos para o Colégio costumávamos agradecer com canções populares italianas tão ao gosto daquela gente simpática e amiga, na época a maioria descendentes de primeira geração de imigrantes. Lembro aqui que em torno de um terço dos internos do Colégio Santo Inácio eram de origem italiana. Explica-se assim que no nosso repertório de cantos constavam tanto os em português, quanto alemão e italiano. Ao término da colheita das uvas seguia o período das bergamotas e laranjas no outono e inverno e começo da primavera. Uma ou duas vezes ao mês o programa da tarde do domingo consistia em degustar bergamotas, e laranjas na propriedade de algum colono amigo do Colégio. Como a laranja não costumava ser comercializada naquela região, enchíamos sacolas e mochilas para levar o mais possível para casa. Deixávamos o nosso agradecimento sempre na forma de meia dúzia de cantos para os benfeitores.

Dentre todas as modalidades de “quebra de rotina” destaco a mais esperada. No jargão do internato a chamávamos de dia de “passeio grande”. Um dia de semana por mês costumava ser reservado para passar acampados, normalmente no potreiro de alguma família amiga do Colégio. Na tarde da véspera deixava-se tudo pronto para sair de manhã cedo e voltar no fim da tarde. Cabia a meia dúzia de alunos destacados para tanto, “os cozinheiros”, deixar os ingredientes para o almoço acomodados, um tacho e pratos de alumínio, colheres garfos, reservados especialmente para essa finalidade. Vou adiantar que o almoço preparado no local consistia num prato único de pirão, isto é, farinha de mandioca fervida em água enriquecida com linguiça, temperos, carne moída e algum outro ingrediente. De manhã cedo pelas cinco horas o toque de despertar de uma clarineta nos acordava. Arrumávamos as camas e descíamos direto para a capela para a missa. Depois da missa e café sem perder tempo nos púnhamos a caminho. Não podiam faltar os tambores para marcar o ritmo da marcha nos trechos de estrada não muito acidentados. O destino costumava ser o potreiro ou propriedade de algum colono em São Pedro da Serra, Linha Babilônia, Campestre, Pinhal, Linha Júlio de Castilhos (na época Badensertal), Linha Bonita, Linha Comprida. Essas caminhadas, em parte, em ritmo de marcha com tambores, costumavam levar uma hora, uma hora e meia. Raras vezes acampava-se mais longe. Chegados no local o grupo encarregado da cozinha instalava o tacho par preparar o pirão e o grosso da turma passava o dia de acordo com suas preferências. Minha predileção acompanhado de um dois colegas resumia- se em vasculhar a natureza perto do acampamento, de preferência em restos de mata virgem. Se o espaço o permitia organizavam-se jogos de diversas modalidades. Nos locais acima lembrados onde acampávamos costumava haver araucárias que acrescentavam um ritmo todo especial nos acampamentos nos meses de março a julho, período em que as pinhas estavam maduras. Eu sentia um prazer enorme em subir nos pinheiros, derrubar as pinhas com taquara ou recolher o pinhão debulhado espalhado no chão e depois assá-lo em meio à queima de montes de grimpas secas. No outono, inverno e começo da primavera nunca faltavam bergamotas, laranjas e limas. É natural que entre os destinos para os dias de “passeio grande” havia aqueles com um apelo especial. Entre eles destacava-se a propriedade da família Hartmann do Campestre. Muitas araucárias centenares, mata virgem na descida do planalto para o lado da Linha Comprida, um belo potreiro plano e acima de tudo um enorme açude povoado com carpas. Jamais esquecerei esse pedaço de chão paradisíaco e a simpatia única da família proprietária. A lagoa dos Hartmann era destino obrigatória para um dos passeios na época do pinhão. Outro destino obrigatório para um passeio grande, também na época do pinhão era o potreiro da família Schmitz em São Pedro da Serra no caminho que vai em direção à Linha Babilônia e Francesa Baixa. Um pouco além da entrada para a Linha Babilônia a família Fritzen cedia com o máximo prazer o potreiro para acampar na margem de uma faixa de mata virgem ladeando um desses característicos arroios de montanha. Na descida do arroio erguia-se meia dúzia de enormes cabriúvas com troncos de dez metros de altura, a copa sobrepondo-se a vegetação e árvores menores. La do alto pendiam cipós da grossura de um polegar. Inventamos cortar um desses cipós rente ao chão e balançar de um lado para o outro do arroio. Meu primo Odilo se deu mal numa dessas travessias. Bateu com o joelho no tronco da cabriuva, caiu perto do arroio e não conseguiu mais se levantar e caminhar. Não tive outra saída senão carrega-lo nos ombros, à maneira de um soldado ferido em batalha. Pedi emprestado um cavalo ao Sr. Fritzen e levei meu primo para a enfermaria do Colégio, onde o Ir. Christ com sua habilidade resolveu o problema em dois ou três dias. No dia seguinte montei no cavalo e fui devolvê-lo ao dono e, naturalmente tive que voltar a pé para o Colégio. Cito mais um lugar de “passeio grande” que oferecia ótimas alternativas para passar um dia acampado. Refiro-me à propriedade da família Ritter na divisa de Júlio de Castilhos (Badensertal) com Tupandi. O potreiro terminava na barranca do arroio Salvador que descia de São Pedro da Serra para terminar no rio Caí na altura de Harmonia. De tamanho respeitável, quase um rio, cheio de corredeiras e remansos, habitat ideal para lambaris, jundiás e cascudos. Em companhia de dois amigos e colegas passávamos o dia inteiro explorando aquele lugar maravilhoso na sombra de faixas de mata virgem na margem, pegando com as mãos cascudos e jundiás escondidos sob os blocos de pedra do leito do arroio.

Pela meia tarde apitos do “prefeito” convocavam para recolher a tralha e uma reunião na frente da casa do “benfeitor”, como costumávamos chamar o dono da propriedade e nos despedirmos com uma breve fala de agradecimento de um estudante destacado para tanto, seguida de cantos geralmente de conteúdo humorístico tão ao gosto dos colonos da época. A volta para casa acontecia sempre ao escurecer e terminava com o pelotão marchando na cadência dos tambores até a entrada do Colégio. Ao me lembrar daquele tempo parece que escuto de novo aqueles tambores ecoando nos paredões de tijolo maciço dos prédios do Colégio e nas encostas em volta, mergulhadas nas brumas do entardecer

Da Enxada à Cátedra [ 24 ]

Excursões de coleta

Novamente não posso deixar de louvar e admirar a visão e compreensão da educação integral dos responsáveis pela minha formação e agradecer as oportunidades que impediram que caísse vítima dessa armadilha que acabo de mencionar. A justiça manda creditar o maior mérito, ao já mais vezes lembrado Pe. Edvino Friderichs, meu professor de Ciências Naturais e responsável maior também pelo museu e, mais tarde, já como jesuíta, por duas vezes meu superior provincial: a primeira no começo da década de 1950 e a segunda em meados da década de 1960, as duas em momentos importantes da minha formação acadêmica no nível superior e na implantação do projeto da Unisinos como universidade. Mais acima quando detalhei a rotina diária e semanal do colégio, lembrei que nas quartas feiras não havia aulas formais como nos outros dias e no sábado de manhã. Nesse dia, além das tarefas de manutenção e limpeza do estabelecimento, havia espaço para atividades esportivas, entre elas futebol, caminhadas pelas redondezas, incursões na mata virgem da propriedade, banho de piscina, leitura de livre escolha e por aí vai. Acontece que naqueles anos como professor de Ciências Naturais, o Pe. Friderichs dedicava-se à coleta e classificação de fanerógamos em parceria com o Pe. Rambo, com a pretensão de especializar-se na sistemática dessa categoria botânica. Sabendo do meu interesse como também do meu colega Cirne Lima pelas Ciências Naturais, convidou-nos, a nós dois, para acompanhá-lo nas quartas feiras em suas coletas por Salvador do Sul, São Pedro da Serra, Campestre e Pinhal. Embora as áreas planas desse planalto estivessem praticamente todas desmatadas e ocupadas por plantações, a coroa e as descidas mais íngremes e acidentadas e acidentadas do planalto com seus arroios e córregos, abrigavam em boa parte ainda a vegetação nativa original. Belas faixas de mata virgem intata, pontilhadas por majestosas figueiras do mato, batingas, cangeranas, cabriúvas, louros, mata olhos e outras espécies nativas, cobriam a borda superior formada por rochas de basalto, às vezes de considerável altura. Ofereciam abrigos e refúgios naturais para pacas, cutias, tatus, aves, serpentes, lagartos, caranguejeiras e milhares de espécies de insetos, aracnídeos e outras mais, comuns nesse tipo de habitat. Pois, foi esse o cenário em que nós três perambulávamos desde o nascer ao por do sol nas quartas feiras durante todo ano de 1947. O Pe. Friderichs cuidava do almoço reforçado aprontado no dia anterior junto com o irmão cozinheiro. Depois do café da manhã com os demais internos, saíamos de mochilas nas costas, botas de couro e boné na cabeça para passar o dia vasculhando livres como nossos parceiros alados na copa das árvores, quadrúpedes e bípedes correndo na penumbra do chão da floresta. Impossível descrever o tamanho, o inesperado e o inusitado de sentimentos e emoções que emergem dos arcanos da memória no contato existencial com a natureza de cuja matéria prima somos feitos também nós humanos e dela dependemos para existir e subsistir e a ela um dia voltaremos. Naquelas quartas feiras inesquecíveis de 1947, vasculhamos de ponta a ponta as bordas do planalto de São Pedro da Serra e Salvador do Sul, mais a bela floresta virgem cobrindo mais da metade dos 400 hectares da propriedade do Colégio Santo Inácio. Ao meio dia almoçávamos acomodados perto de um córrego de água cristalina ou duma fonte brotando das entranhas da terra. O Pe. Friderichs abria um embrulho que carregava na mochila. Continha linguiça defumada e um pão misto delicioso, fazia o sinal da cruz e convidava para o almoço, frugal como convém a exploradores, regado com a água pura e fresca que descia pelo córrego ou diretamente da fonte brotando do meio das pedras. Depois de um descanso complementado com um papo enriquecedor, seguia mais uma exploração pelo mato e a beirada das roças, até pelas 5 horas da tarde. A expedição científica costumava terminar com um jogo de “peteca” de meia hora em algum lugar apropriado e chegando em casa um banho de piscina fazia esquecer o cansaço acumulado durante o dia. Para resumir numa só frase o significado daquela experiência em todos os sentidos, diria que equivaleu a um aprendizado de Ciências Naturais, na universidade ao ar livre, sem jalecos, sem poses de catedráticos, sem a parafernália de um laboratório, munidos apenas de uma lupa e a vontade de viver, sentir, observar, escutar, farejar e degustar a natureza no seu estado primigênio.

Alimentava um autêntico fascínio por aquele santuário de floresta que cobria o topo e parte das encostas do morro nos fundos do Colégio. Nos domingos de tarde ou feriados, enquanto meus colegas jogavam futebol ou se divertiam com outras modalidades de exporte, geralmente sozinho e com autorização dos meus superiores, percorria as trilhas abertas em todas direções na mata. Não poucas vezes arriscava um embrenhada naquele mundo misterioso, habitat predileto do inhambu, das saracuras, das pacas, cutias, ratos silvestres, aranhas caranguejeiras além de milhões de insetos. As cigarras cantavam agarradas à casca das árvores, abelhas zumbiam nas copas das árvores e arbustos em flor, moscas dançavam ao sol. Mas, era preciso muita atenção pois, aquele mato e seus arredores ofereciam um habitat privilegiado para a jararaca que costumava aproveitar as manchas de sol na beirada das trilhas para se aquecer. No começo movia-me a curiosidade e, principalmente, as muitas e difusas sensações de bem estar proporcionado por aquele ambiente. Resumindo, sentia-me “em casa”, não no sentido histórico cultural quando se fala em “querência” ou “Heim” como palcos planejados para convivência na intimidade com a família e pessoas muito chegadas a ela. Sentia-me “em casa” no sentido metafórico de fazer parte existencial, melhor talvez ontológica, desse maravilhoso cenário prenhe de vida, harmonia, encanto e beleza. Cada criatura ocupava o seu lugar e cumpria a sua função, todas, também eu, representantes de espécies vivas de todos os níveis taxonómicos, “nascidos da terra”. Em outras palavras, mais ao gosto de hoje, caminhando por aquelas trilhas, não passava de simples transeunte curioso, mas terminava por integrar, enriquecer e complementar de forma peculiar aquele ecossistema. A Sagrada Escritura ensina que Deus criou o “jardim da natureza para que o homem viva nele, o cultive e o faça produzir frutos. Nessa perspetiva o homem foi criado como chave de ouro da criação. Estou ciente que essa minha afirmação contenha munição para desencadear polêmicas acirradas tanto no campo científico, quanto filosófico e teológico. Se for o caso, tenho certeza que seja saudável. Paro por aí pois, aprofundar essas reflexões extrapola a finalidade do presente texto.

No começo essas caminhadas pelas trilhas da floresta não perseguiam um objetivo científico específico. Resumiam-se no que acabei de enunciar acima. Acontece que em 1848 veio-me o pedido da parte do Pe. Friederichs, nesse meio tempo transferido para Porto Alegre, para que colecionasse líquenes pois pretendia especializar-se nessa categoria taxonômica. Aceitei o pedido e nos dois últimos anos do ginásio em Salvador do Sul aproveitei minhas incursões na mata virgem para coletar o maior número possível de espécies de líquenes. Não guardei na memória o número exato de quantos coletei e mandei para Porto Alegre. Não sei também onde foram parar depois que o Pe. Friderichs foi nomeado provincial e terminou especializando-se na doutrina e práticas espíritas. Desconfio que se encontrem em algum lugar no Instituto Anchietano de Pesquisas na Unisinos.

Preenchia também parte dos espaços livres entre as atividades rotineiras e obrigatórias e nos domingos e feriados dando uma mão ao Ir. Christ, enfermeiro do colégio e responsável pelo pomar e apiário, a pegar jararacas, reuni-las num viveiro especialmente construído e instalado com refúgios próprios para acomodá-las. Depois de capturada uma dezena ou mais as acomodávamos em caixas de madeira especialmente concebidas para essa finalidade fornecidas pelo Instituto Butantã e as enviávamos por trem para São Paulo. Os colonos vizinhos ao saberem do interesse por cobras venenosas nos avisavam e nos indicavam os refúgios e assim foi possível mandar um número considerável, o número exato não guardei na memória. Com certeza passaram de 100. O Butantã, como acabo de lembrar fornecia os equipamentos de captura e as caixas para o transporte e, como retribuição nos mandava ampolas de soro antiofídico. Uma parte ficava à disposição na enfermaria do Colégio para a eventualidade de um picada em alguém da casa, enquanto os excedentes costumavam ser entregues ao hospital mais próximo. Familiarizei-me de tal modo com as características de ação e reação das jararacas que, munido com uma vara imobilizava-as no chão na altura da nuca e depois as pegava com o polegar e o indicador como pinça, encostado nas mandíbulas e com a outra mão segurando o rabo, colocava-as num saco para levá-las para o viveiro. Praticamente todas as serpentes mandadas para o Butantã pertenciam à espécie “Bothrops jararaca” e não a Urutu-cruzeira - Botrhrops neuwiedi” mais comum na região de São Leopoldo, morros de Porto Alegre e mais ao sul nos campos, até os pampas argentinos e uruguaios. Raramente aparecia um cobra coral venenosa, mais frequentes eram as não venenosas. E para concluir esse tópico, rendo minhas homenagens ao Ir. Christ, um homem simples, leal, amigo e parceiro fiel, um religioso leigo da velha estirpe de irmãos leigos – dos “Bruder” – que cumpriram no anonimato a tarefa da pregação do Evangelho pelo exemplo de vida. Morreu com centenas de picadas de um enxame de abelhas “africanas”. Por isso, como toda aquela estirpe de homens que pelo trabalho e a oração deram suporte à obra missionária e civilizatória dos jesuítas no sul do Brasil, terá seu nome brilhando como estrela no firmamento por perpétuas eternidades”, conforme promete a Sagrada Escritura.

O reitor do Colégio Pe. Jorge Scholl alimentava uma autêntica veneração por araucárias. Resolveu reflorestar as encostas que haviam sido desmatadas pelos antigos donos da área, cobertas com uma vegetação secundária composta por arbustos, capim “santa fé” e exemplares dispersos de ingá, canela do mato e outras. Durante o ano de 1944 pôs em prática o projeto do plantio de araucárias. Para começar organizou um viveiro para criar as mudas pondo os pinhões a brotar em cubos de xaxim. Enquanto os pinhões brotavam e as mudas se desenvolviam, convocou um grupo de voluntários para abrir brechas encosta acima até encostar na mata virgem, distando entre em torno de 10 metros e preservando a vegetação nos intervalos. Tive o privilégio de fazer parte desse pelotão. Já lembrei mais acima que depois das duas horas de aula depois do meio dia uma hora e meia estava reservada para cuidar da manutenção e limpeza das dependências do Colégio e cuidar do pomar, das piscinas, etc. Aproveitávamos esse horário para cada tarde avançar mais uns bons metros na abertura e limpeza das brechas. Duas ou três vezes ao mês as aulas da tarde de um dia qualquer da semana eram suspensas para acelerar e completar o trabalho de abertura das brechas. Assim, em questão de pouco mais de meio ano estava tudo preparado para as mudas de araucária que, à essa altura, já mediam 10 ou mais centímetros e as agulhas suficientemente duras evitando que as formigas as prejudicassem. A transferência das mudas do viveiro para o lugar definitivo foi rápida. Nunca contei quantas realmente vingaram. Mas, passando hoje, 80 anos passados por Salvador do Sul, pode-se observar na encosta nos fundos dos casarões do antigo Colégio Santo Inácio, um bosque fechado de araucárias de 20 ou mais metros de altura e de meio metro para mais de diâmetro. Orgulho-me de que, lá naquela encosta deixei unhas amassadas, pés e mãos maltratados, braços arranhados com os espinhos da amora silvestre e o suor escorrendo pelo rosto, repondo pelo menos algumas centenas de exemplares de araucárias, dos milhões que a ambição furiosa dos madeireiros derrubaria no planalto no decorrer da década seguinte. Espero que os atuais donos daquela antiga propriedade dos jesuítas, não cometam o desatino para não dizer crime de mexer nos pinheiros daquela encosta emblemática.

Desde a remota infância animais e aves silvestres sempre ocuparam um bom espaço na minha imaginação. Já lembrei dos encontros com esse fantástico mundo dos seres vivos, ao descrever as caminhadas pelas trilhas da mata virgem do Colégio. Aproveito a ocasião para lembrar dois animais que sob o aspeto taxonómico não tinham nada a ver uma com o outro: a Jaguatirica e aranhas caranguejeiras. Certo dia, no ano de 1948 se não me falha a memória, apareceu um colono conhecido, cujas terras parcialmente cobertas de mata virgem, emendavam na mata do Colégio. Na sacola levava um filhote de jaguatirica encontrado perdido no mato enquanto caçava. Como eu era o responsável pelo museu e sabia do meu interesse por novidades, chamaram-me para conversar com aquele senhor. El sem a mínima intenção de ficar com o filhote de jaguatirica perguntou se me interessava. Não duvidei um segundo. Peguei o filhote e o levei para o museu, acomodei-o num canto. Ao rejeitar o leite que lhe ofereci conclui que estava desmamado. Desci para a adega da cozinha onde se guardavam os quartos de rezes e porcos e levei um pedaço de carne. Devorou com gosto. Dai em diante alimentei-o um bom tempo no museu, depois armei um cercado bem grande atrás de um galpão no fundo do pátio e lá a jaguatirica foi crescendo e se desenvolvendo sem problema. Durante a noite deixava a portinhola aberta e ela se embrenhava nas manchas de mato das redondezas para ao clarear do dia voltar ao seu refúgio. Certo dia uma tarântula entrou no cercado e a jaguatirica resolveu brincar com ela. E o óbvio aconteceu. A tarântula pulou no nariz do gato, cravou os dentes e em questão de meia hora minha protegida estava morta.

Sempre cultivei um certo fascínio por caranguejeiras. Não saberia definir bem o motivo. Aprendi a pegá-las com a mão sem machuca-las e sem irrita-las e deixava-as caminhar sobre a mão e subir pelo braço. Acontece que nas salas de estudo os estudantes dispunham de escrevaninhas com o tampo inclinado sobre o compartimento em que se guardava o material escolar e os livros de uso diário em sala de aula. Bem arrumado o material escolar, sobrava um bom espaço para guardar objetos de uso pessoal. Pois, resolvi instalar um esconderijo naquele espaço e acomodar uma enorme caranguejeira. Os meus colegas, principalmente meus vizinhos, não gostaram nada da ideia. Por um bom tempo nada aconteceu. Quando levantava o tampão para pegar os cadernos, livros e caneta ou lápis para fazer os temas, o máximo que acontecia era a aranha sair do seu esconderijo, e dar uma volta por cima dos livros e cadernos e voltar para o seu canto tranquilo. Para alimentá-la bastava um pedacinho de carne. Num dia desses de vento norte, calor abafado, pressão atmosférica baixa, prenúncio de chuva, ao levantar o tampo, a aranha sempre tão pacífica parecia enlouquecida. Saltou para fora, subiu na beirada da escrevaninha e jogou-se nas costas do vizinho da frente. Podem imaginar-se a confusão dentro daquela sala de estudos. Nosso supervisor, o “prefeito”, pulou do estrado no fundo da sala onde estava sentado na sua escrevaninha. O colega quando se deu conta da aranha deu salto e com isso ela caiu no chão, consegui pega-la e leva-la para fora. O “prefeito” que era um homem de bom senso apenas me proibiu abrigar outra aranha dessas na minha escrevaninha e ficou por isso. O cantinho da caranguejeira passou um pouco mais tarde a ser ocupado por uma lagartixa pacífica e totalmente inofensiva.