Da Enxada à Cátedra [ 29 ]

Como nem tudo é um mar de rosas, melhor talvez de sucessos, não posso omitir nessa minha trajetória um tropeço que me atalhou o caminho no último ano da guerra, 1945, que, porém, não tinha nada a ver com a guerra. Com 15 anos, como muitos adolescentes, fui envolvido numa turbulência perfeitamente explicável para a idade. Acometeu-me uma autêntica aversão para com determinadas disciplinas, agravada um tanto pelo desempenho dos respetivos professores. Nosso currículo previa duas categorias de disciplinas: as fundamentais e as complementares. Entre as fundamentais constavam o português, o latim e a matemática, complementadas pelas outras línguas, geografia, história, ciências naturais e outras. Quem não alcançasse a média 5 no final do ano numa das disciplinas fundamentais tinha que repetir o ano. Nas disciplinas complementares bastava uma média de 3. Acontece que naquele ano figurava a álgebra como foco da matemática uma das disciplinas fundamentais. Saí-me muito bem no latim, português e de modo especial em história e geografia. Mas, a álgebra foi um tropeço durante todo o ano e completei-o com média 3 ou quatro e a sentença estava dada: repetir a segunda série do ginásio. Havia nessa história um agravante. O professor de álgebra era também o reitor do colégio além de didaticamente falando nada brilhante. Soube no ano seguinte que ele tinha decidido mandar- me uma correspondência nas férias no sentido de que não voltasse mais em 1946. Não tenho as mínimas condições de imaginar que rumo a minha vida teria tomado. Em princípio teria voltado à enxada e provavelmente “cavado” a trilha para o resto da vida na roça. Quem salvou-me dessa encrenca foi o meu professor de português o padre Silvino Arnhold. Na época ele era um jovem jesuíta de menos de 30 anos cumprindo o estágio do magistério no colégio Santo Inácio. Ele nunca me contou essa história. Soube-a por terceiros. Depois de 20 anos nos reencontramos e lembro- me com saudades dos acampamentos e pescarias na época em que ainda se pescavam dourados no Sinos e no Caí. Hoje o Sinos virou uma cloaca a céu aberto e o Caí contaminado com produtos químicos e dejetos de toda a ordem. Considerando bem se não fosse a intervenção do Pe. Silvino naquele momento, não estaria escrevendo hoje essas recordações. Até perto dos 100 anos ele podia ser visto todos os fins de semana disponível para quem precisasse de conforto espiritual no Santuário do Coração de Jesus junto ao túmulo do Pe. Reus. E hoje descansa no cemitério dos jesuítas a poucos metros distante da sala em que atendia e socorria espiritualmente a quem o procurava. O nome desse homem que, sem alarde, cumpriu uma jornada de 100 anos dedicada inteiramente à prática da caridade e zelo pelo próximo brilhará, conforme a promessa da Sagrada Escritura, como uma estrela no firmamento por perpétuas eternidades.

O final do ano de 1945 foi marcado por um evento familiar muito especial. No dia 7 de dezembro meu irmão Roberto foi ordenado sacerdote jesuíta no Colégio Cristo Rei, pelo bispo de Vacaria, D. Cândido Maria Bampi. Meu pai alugou para a ocasião o ônibus que fazia diariamente o percurso Tupandi – Porto Alegre. Partimos de Tupandi às 5h. da manhã. Naquela época as estradas da região eram todas de chão batido. Passamos por Caí, Pareci Novo, Montenegro, onde cruzamos o rio de barca e pela estrada antiga pelos fundos de Portão terminamos no pátio do Colégio Cristo Rei bem no começo das cerimônias da ordenação na capela da instituição. Terminada a cerimônia religiosa nos encontramos com o Roberto recém ordenado, ocasião em que deu sua primeira bênção para a família e parentes próximos. Seguiu-se depois o almoço oferecido pelo Colégio aos pais e parentes próximos dos recém ordenados. Pela meia tarde o mesmo ônibus levou-nos de volta para casa. No fim da semana seguinte aconteceu a grande solenidade e festa da primeira missa solene do Pe. Roberto na igreja matriz de Tupandi. O ritual foi, em grandes linhas, idêntico àquele que descrevi por ocasião da primeira missa solene do Pe. Balduino, ocorrido em 1o de novembro de 1936. Um piquete de cavaleiros foi receber o homenageado nos limites da paróquia, levando um cavalo encilhado. Era sábado de tarde. Toda a comunidade encontrava-se novamente reunida na frente do sobrado do dentista Balduino Weber, repetindo a cena de 9 anos passados. O piquete passou a galope pelo público e foi apear num pequeno bosque onde hoje se encontra o centro de eventos. O Pe. Roberto foi recebido na entrada do caramanchão em frente ao sobrado, pelos pais, irmãos, tios, pároco e demais padres presentes. Os sacerdotes paramentaram-se na sala de visitas da família Weber e, em seguida encaminharam-se em procissão acompanhados de toda a comunidade para a igreja matriz. Na época ainda não se celebravam missas aos sábados à tarde e, por isso, a cerimônia litúrgica resumiu-se numa bênção solene do Santíssimo. Pelo final da tarde subi com meus pais o Morro da Manteiga para passar a noite e no dia seguinte descer novamente para a primeira missa solene – as “primícias” do meu irmão Roberto. Uma missa solene naquele remoto 1945, costumava ser uma acontecimento que envolvia a comunidade inteira. Todos os moradores que formavam a comunidade de Tupandi eram católicos e de origem alemã. Ninguém faltava numa solenidade dessas. A igreja não comportava nem a metade das pessoas. Quem não conseguia lugar dentro assistia à cerimônia do lado de fora pelas portas abertas. O coral masculino dirigido pelo escrivão José Weber deu o melhor de si. Os quatro sinos tocados em conjunto ecoavam o grande acontecimento pelos vales e encostas dos morros. O estrondo de uma bateria de morteiros disparados num potreiro vizinho anunciaram para longe e perto o momento da consagração, enquanto o badalar dos quatro sinos perfeitamente afinados rebatia a sua sinfonia nos vales e morros em torno. Sem dúvida o momento mais esperado daquela manhã foi sermão festivo a cargo do Pe. Balduino. Aquele sermão de 45 minutos, além do brilhantismo e da eloquência conhecida por todos, veio acompanhado por um ingrediente adicional que levou às lágrimas velhos e moços, colonos e colonas todos temperados no cabo da enxada e do machado, nos arados de boi, no gadanho e foice do mato. Acontece que os decretos que proibiam as pregações em alemão, acabavam de ser revogados. Na igreja lotada até portas afora podia-se escutar o zumbido de uma abelha. Escutar na língua dos seus ancestrais aquele sermão, do alto daquele púlpito emblemático esculpido em cedro vermelho pelo artesão Flach, deve ter soado como uma melodia até os arcanos mais profundos da alma daquela gente simples e profundamente humana. Um dos filhos nascido na comunidade lhes falava de Deus e o significado da missão por Ele dada à Criação e ao Homem, na língua em que balbuciaram as primeiras palavras de amor e oração, fez chorar os colonos e colonas feitas de cerne de cabriúva.

Terminada a missa solene e depois de uma bênção do novo sacerdote para toda a comunidade presente, os convidados encaminharam-se para o almoço no salão de baile do Sr. Afonso Konzen, enquanto os demais recolheram-se às suas casas. O almoço nada tinha ver com um banquete no sentido corrente o termo. Meu pai tinha engordado um novilho que forneceu o carne assada no forno, massa feita em casa, arroz, salada e uma sobremesa de sagu, vinho e framboesa. Um cardápio que se repetia em casamentos, kerbs, festas de igreja. Guardo com carinho uma fotografia daquele “banquete” pois, lá está uma das últimas fotos do meu pai.

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