O Período da Segunda Guerra Mundial
Os quatros primeiros anos que passei no Colégio Santo Inácio, 1942-1945, coincidiram com a vigência do Estado Novo, da Campanha de Nacionalização e da Segunda Guerra Mundial. Mais acima já lembrei os reflexos negativos sobre minha formação primária decorrentes do Estado Novo e da Campanha de Nacionalização. Entrei no Colégio Santo Inácio um pouco mais do que alfabetizado o que me levou a ser matriculado no terceiro ano do primário, o que na verdade significou que era preciso começar tudo pelo começo. Lia, escrevia e falava sem dificuldade alemão. Dominava a aritmética e os cálculos básicos que tinha aprendido na escolinha do Morro da Manteiga. O meu português não passava dos rudimentos tanto para me fazer entender e, consequentemente, para entender os colegas falando. Redação e gramática algumas noções. Essa situação rendeu-me não poucos contratempos no convívio, com destaque para um tal ou qual isolamento pois, estava terminantemente proibido falarmos uns com os outros em alemão, por imposição dos decretos da nacionalização. Bastava chegar ao conhecimento da polícia a mínima suspeita que no Colégio se falava ou alemão, ou italiano, ou polonês, ou outra qualquer língua que não fosse o português, para sumariamente proceder uma vistoria e sem a menor cerimônia prender o reitor ou qualquer outro responsável pelos internos. Os responsáveis pelo estabelecimento não tinham outra alternativa senão impor com severidade o português. Essa situação agravou-se, no meu caso pelo menos, nos dois ou três primeiros meses pela saudade da minha casa, dos meus pais e irmãos. Num dos cantos do campo de futebol cercado com tela enxergava-se ao longe aquele morro triangular coberto de mata virgem e na encosta uma roça que fazia parte da propriedade da família. Naquele canto, agarrado às malhas da cerca, passei não poucos momentos, olhando aquele cenário lá ao longe, deixando correr livremente, sem me importar com os colegas por perto, lágrimas doídas, brotadas do fundo coração. Ainda bem que ninguém dos meus superiores teve a ideia de sugerir que alguém da família me buscasse. O responsável imediato pela “divisão dos pequenos”, o “Fr. Urbano Müller”, teve a sensibilidade e a compreensão de, naqueles momentos me socorrer e tratar-me como que um irmão menor. Deixo aqui o meu registro de gratidão pois, se estou escrevendo essas recordações 80 anos depois, devo-o, em grande parte, à sua compreensão pelo drama pelo qual eu estava passando naqueles momentos. O Ir. Vicente Slany, já me referi a ele mais acima, o regente da terceira série e responsável por todas as disciplinas do currículo, foi outro a quem devo não ter abandonado o colégio e voltado para a enxada. Esse irmão leigo jesuíta nascido na Áustria, um homem alto e atlético, passando um pouco dos 40 anos, invariavelmente bem-disposto e empolgado pelo que fazia, fez com que em pouco tempo tomasse um enorme gosto pelo estudo e superasse aquele começo tão desfavorável. Mais tarde, já no nível de ginásio, foi meu professor de desenho. No dia 19 de julho, aniversário do Ir. Slany, sempre havia uma comemoração em sua homenagem. O Pe. Oscar Müller, originário da Suíça, como “prefeito geral”, foi outro jesuíta daquela estirpe sonhada por Santo Inácio, que contribuiu decisivamente para que eu não desanimasse e desistisse.
Em 20 de agosto de 1942, portanto, no mesmo ano em que me internei no Colégio Santo Inácio, o Brasil declarou guerra ao “Eixo”, a aliança formada pela Alemanha, Itália e Japão. Com esse ato os decretos da Campanha de Nacionalização e a ação do seu braço e aparato policial, fecharam ainda mais o cerco a tudo que para as autoridades não correspondia ao figurino da “brasilidiade”. Acontece que entre os internos do Colégio Santo Inácio 90% ou mais eram descendentes de alemães, italianos e poloneses, com uma predominância numérica expressiva em favor dos primeiros. Além disso o reitor, o “prefeito geral”, e a maioria dos padres professores eram alemães, suíços de fala alemã e austríacos natos. Os demais jesuítas cumprindo o estágio de magistério vinham das colônias alemãs ou italianas. Para as autoridades civis e, de modo especial, para as policias estaduais, o colégio, situado longe de qualquer centro urbano maior, isolado nos morros nos confins do então município de Montenegro, concentrava uma população docente e discente no mínimo “pouco brasileira”. Mas, não me lembro de nenhuma ocorrência de devassa no estabelecimento ou intimação para se apresentar na subdelegacia de polícia, muito menos de alguma prisão. Com certeza os serviços de inteligência tinham em mãos informações de que no colégio não circulavam veículos de propaganda em favor da Alemanha muito menos a existência de algum grupo de resistência à nacionalização e apoio aos aliados do Eixo. Os internos não tinham acesso a jornais ou revistas, muito menos a noticiários de rádio ou a outras fontes de informação. Os ecos da guerra nos alcançavam dispersos e intermitentes de maneira que não foram consistentes ao ponto de estimular animosidades entre os alunos. Os padres e irmãos estrangeiros aos quais me referi mais acima abstinham-se de externar suas opiniões e muito menos polemizá-las em público. Em todo o caso, posso afirmar com toda a convicção que nenhum deles apoiava o regime nazista da Alemanha. Os austríacos detestavam esse regime porque incorporara à força a sua pátria ao “Terceiro Reich” e, evidentemente também pelo ódio que destilava contra o catolicismo e em especial contra os jesuítas. Pelos mesmos motivos religiosos também os suíços jamais contemporizariam com o nacional socialismo e seus métodos ainda mais que a Suíça se manteve neutra durante todo o período da segunda Guerra Mundial. Os padres e irmãos leigos cultivavam como qualquer filho de outro país, como é óbvio, uma profunda afeição pela pátria de origem, palco de uma guerra e devastação como nunca houve na história e, de modo especial, com o povo que nada tinha a ver com as razões da barbárie que os vitimava. Um bom número de irmãos de ordem foram confinados como criminosos em campos de concentração. O Pe. Rupert Maier, conhecido como o apóstolo de Munique, herói nacional condecorado com a “Cruz de Ferro” por atos de heroísmo como capelão militar na Primeira Guerra Mundial, quando perdeu uma perna, foi confinado no mosteiro de Ettal, ameaçado de prisão e morte. Aliás, lembro- me como se tivesse sido ontem quando em meados de fevereiro de 1945, o Pe. Oscar Müller, nosso “prefeito geral”, nos comunicou reunidos na sala de estudo, que acabara de receber a notícia que os jovens padres jesuítas, ambos com menos de 40 anos, Alfred Delp e Alois Grimm, tinham sido executados numa prisão em Berlim. Havia ainda uma série de outras razões pelas quais o Colégio Santo Inácio não oferecia risco algum para servir de abrigo a inimigos do Brasil infiltrados empenhados e fomentar nos seus pupilos qualquer tipo de simpatia pelo Nacional Socialismo e suas pretensões de conquista também fora da Europa. Nesse contexto chamo a atenção a uma autêntica guinada de 180o entre os jovens jesuítas alemães e italianos nascidos no Brasil. Não digo todos mas, a grande maioria aderiu à Campanha de Nacionalização ou, pelo menos, concordou com ela, obedecendo à orientação do arcebispo D. João Becker e seus sufragâneos no Rio Grande do Sul. Pelos menos 3 dos jovens jesuítas que cumpriam o estágio de magistério no Santo Inácio na época da guerra alinhavam-se com essa orientação. Mais um dado reforça adesão ao “abrasileiramento” entre os sacerdotes mais jovens dos jesuítas da Província Sul Brasileira. Por ocasião em que “Força Expedicionária a FEB” foi arregimentada para lutar na frente de guerra da Itália, ao lado dos aliados, o alto comando decidiu incorporar na tropa um número proporcional de capelães militares ao efetivo dos combatentes. O superior provincial do Sul solicitou que se apresentassem voluntários para a missão. Os 3 jesuítas que se apresentaram e partiram de fato com a FEB para a Itália e prestaram assistência nas frentes de combate, foram todos descendentes de imigrantes alemães: Emílio Schneider, Vendelino Junges, Urbano Rausch. A eles veio somar-se o padre diocesano Nilo Collet, também neto de imigrantes alemães.