Da Enxada à Cátedra [ 24 ]

Excursões de coleta

Novamente não posso deixar de louvar e admirar a visão e compreensão da educação integral dos responsáveis pela minha formação e agradecer as oportunidades que impediram que caísse vítima dessa armadilha que acabo de mencionar. A justiça manda creditar o maior mérito, ao já mais vezes lembrado Pe. Edvino Friderichs, meu professor de Ciências Naturais e responsável maior também pelo museu e, mais tarde, já como jesuíta, por duas vezes meu superior provincial: a primeira no começo da década de 1950 e a segunda em meados da década de 1960, as duas em momentos importantes da minha formação acadêmica no nível superior e na implantação do projeto da Unisinos como universidade. Mais acima quando detalhei a rotina diária e semanal do colégio, lembrei que nas quartas feiras não havia aulas formais como nos outros dias e no sábado de manhã. Nesse dia, além das tarefas de manutenção e limpeza do estabelecimento, havia espaço para atividades esportivas, entre elas futebol, caminhadas pelas redondezas, incursões na mata virgem da propriedade, banho de piscina, leitura de livre escolha e por aí vai. Acontece que naqueles anos como professor de Ciências Naturais, o Pe. Friderichs dedicava-se à coleta e classificação de fanerógamos em parceria com o Pe. Rambo, com a pretensão de especializar-se na sistemática dessa categoria botânica. Sabendo do meu interesse como também do meu colega Cirne Lima pelas Ciências Naturais, convidou-nos, a nós dois, para acompanhá-lo nas quartas feiras em suas coletas por Salvador do Sul, São Pedro da Serra, Campestre e Pinhal. Embora as áreas planas desse planalto estivessem praticamente todas desmatadas e ocupadas por plantações, a coroa e as descidas mais íngremes e acidentadas e acidentadas do planalto com seus arroios e córregos, abrigavam em boa parte ainda a vegetação nativa original. Belas faixas de mata virgem intata, pontilhadas por majestosas figueiras do mato, batingas, cangeranas, cabriúvas, louros, mata olhos e outras espécies nativas, cobriam a borda superior formada por rochas de basalto, às vezes de considerável altura. Ofereciam abrigos e refúgios naturais para pacas, cutias, tatus, aves, serpentes, lagartos, caranguejeiras e milhares de espécies de insetos, aracnídeos e outras mais, comuns nesse tipo de habitat. Pois, foi esse o cenário em que nós três perambulávamos desde o nascer ao por do sol nas quartas feiras durante todo ano de 1947. O Pe. Friderichs cuidava do almoço reforçado aprontado no dia anterior junto com o irmão cozinheiro. Depois do café da manhã com os demais internos, saíamos de mochilas nas costas, botas de couro e boné na cabeça para passar o dia vasculhando livres como nossos parceiros alados na copa das árvores, quadrúpedes e bípedes correndo na penumbra do chão da floresta. Impossível descrever o tamanho, o inesperado e o inusitado de sentimentos e emoções que emergem dos arcanos da memória no contato existencial com a natureza de cuja matéria prima somos feitos também nós humanos e dela dependemos para existir e subsistir e a ela um dia voltaremos. Naquelas quartas feiras inesquecíveis de 1947, vasculhamos de ponta a ponta as bordas do planalto de São Pedro da Serra e Salvador do Sul, mais a bela floresta virgem cobrindo mais da metade dos 400 hectares da propriedade do Colégio Santo Inácio. Ao meio dia almoçávamos acomodados perto de um córrego de água cristalina ou duma fonte brotando das entranhas da terra. O Pe. Friderichs abria um embrulho que carregava na mochila. Continha linguiça defumada e um pão misto delicioso, fazia o sinal da cruz e convidava para o almoço, frugal como convém a exploradores, regado com a água pura e fresca que descia pelo córrego ou diretamente da fonte brotando do meio das pedras. Depois de um descanso complementado com um papo enriquecedor, seguia mais uma exploração pelo mato e a beirada das roças, até pelas 5 horas da tarde. A expedição científica costumava terminar com um jogo de “peteca” de meia hora em algum lugar apropriado e chegando em casa um banho de piscina fazia esquecer o cansaço acumulado durante o dia. Para resumir numa só frase o significado daquela experiência em todos os sentidos, diria que equivaleu a um aprendizado de Ciências Naturais, na universidade ao ar livre, sem jalecos, sem poses de catedráticos, sem a parafernália de um laboratório, munidos apenas de uma lupa e a vontade de viver, sentir, observar, escutar, farejar e degustar a natureza no seu estado primigênio.

Alimentava um autêntico fascínio por aquele santuário de floresta que cobria o topo e parte das encostas do morro nos fundos do Colégio. Nos domingos de tarde ou feriados, enquanto meus colegas jogavam futebol ou se divertiam com outras modalidades de exporte, geralmente sozinho e com autorização dos meus superiores, percorria as trilhas abertas em todas direções na mata. Não poucas vezes arriscava um embrenhada naquele mundo misterioso, habitat predileto do inhambu, das saracuras, das pacas, cutias, ratos silvestres, aranhas caranguejeiras além de milhões de insetos. As cigarras cantavam agarradas à casca das árvores, abelhas zumbiam nas copas das árvores e arbustos em flor, moscas dançavam ao sol. Mas, era preciso muita atenção pois, aquele mato e seus arredores ofereciam um habitat privilegiado para a jararaca que costumava aproveitar as manchas de sol na beirada das trilhas para se aquecer. No começo movia-me a curiosidade e, principalmente, as muitas e difusas sensações de bem estar proporcionado por aquele ambiente. Resumindo, sentia-me “em casa”, não no sentido histórico cultural quando se fala em “querência” ou “Heim” como palcos planejados para convivência na intimidade com a família e pessoas muito chegadas a ela. Sentia-me “em casa” no sentido metafórico de fazer parte existencial, melhor talvez ontológica, desse maravilhoso cenário prenhe de vida, harmonia, encanto e beleza. Cada criatura ocupava o seu lugar e cumpria a sua função, todas, também eu, representantes de espécies vivas de todos os níveis taxonómicos, “nascidos da terra”. Em outras palavras, mais ao gosto de hoje, caminhando por aquelas trilhas, não passava de simples transeunte curioso, mas terminava por integrar, enriquecer e complementar de forma peculiar aquele ecossistema. A Sagrada Escritura ensina que Deus criou o “jardim da natureza para que o homem viva nele, o cultive e o faça produzir frutos. Nessa perspetiva o homem foi criado como chave de ouro da criação. Estou ciente que essa minha afirmação contenha munição para desencadear polêmicas acirradas tanto no campo científico, quanto filosófico e teológico. Se for o caso, tenho certeza que seja saudável. Paro por aí pois, aprofundar essas reflexões extrapola a finalidade do presente texto.

No começo essas caminhadas pelas trilhas da floresta não perseguiam um objetivo científico específico. Resumiam-se no que acabei de enunciar acima. Acontece que em 1848 veio-me o pedido da parte do Pe. Friederichs, nesse meio tempo transferido para Porto Alegre, para que colecionasse líquenes pois pretendia especializar-se nessa categoria taxonômica. Aceitei o pedido e nos dois últimos anos do ginásio em Salvador do Sul aproveitei minhas incursões na mata virgem para coletar o maior número possível de espécies de líquenes. Não guardei na memória o número exato de quantos coletei e mandei para Porto Alegre. Não sei também onde foram parar depois que o Pe. Friderichs foi nomeado provincial e terminou especializando-se na doutrina e práticas espíritas. Desconfio que se encontrem em algum lugar no Instituto Anchietano de Pesquisas na Unisinos.

Preenchia também parte dos espaços livres entre as atividades rotineiras e obrigatórias e nos domingos e feriados dando uma mão ao Ir. Christ, enfermeiro do colégio e responsável pelo pomar e apiário, a pegar jararacas, reuni-las num viveiro especialmente construído e instalado com refúgios próprios para acomodá-las. Depois de capturada uma dezena ou mais as acomodávamos em caixas de madeira especialmente concebidas para essa finalidade fornecidas pelo Instituto Butantã e as enviávamos por trem para São Paulo. Os colonos vizinhos ao saberem do interesse por cobras venenosas nos avisavam e nos indicavam os refúgios e assim foi possível mandar um número considerável, o número exato não guardei na memória. Com certeza passaram de 100. O Butantã, como acabo de lembrar fornecia os equipamentos de captura e as caixas para o transporte e, como retribuição nos mandava ampolas de soro antiofídico. Uma parte ficava à disposição na enfermaria do Colégio para a eventualidade de um picada em alguém da casa, enquanto os excedentes costumavam ser entregues ao hospital mais próximo. Familiarizei-me de tal modo com as características de ação e reação das jararacas que, munido com uma vara imobilizava-as no chão na altura da nuca e depois as pegava com o polegar e o indicador como pinça, encostado nas mandíbulas e com a outra mão segurando o rabo, colocava-as num saco para levá-las para o viveiro. Praticamente todas as serpentes mandadas para o Butantã pertenciam à espécie “Bothrops jararaca” e não a Urutu-cruzeira - Botrhrops neuwiedi” mais comum na região de São Leopoldo, morros de Porto Alegre e mais ao sul nos campos, até os pampas argentinos e uruguaios. Raramente aparecia um cobra coral venenosa, mais frequentes eram as não venenosas. E para concluir esse tópico, rendo minhas homenagens ao Ir. Christ, um homem simples, leal, amigo e parceiro fiel, um religioso leigo da velha estirpe de irmãos leigos – dos “Bruder” – que cumpriram no anonimato a tarefa da pregação do Evangelho pelo exemplo de vida. Morreu com centenas de picadas de um enxame de abelhas “africanas”. Por isso, como toda aquela estirpe de homens que pelo trabalho e a oração deram suporte à obra missionária e civilizatória dos jesuítas no sul do Brasil, terá seu nome brilhando como estrela no firmamento por perpétuas eternidades”, conforme promete a Sagrada Escritura.

O reitor do Colégio Pe. Jorge Scholl alimentava uma autêntica veneração por araucárias. Resolveu reflorestar as encostas que haviam sido desmatadas pelos antigos donos da área, cobertas com uma vegetação secundária composta por arbustos, capim “santa fé” e exemplares dispersos de ingá, canela do mato e outras. Durante o ano de 1944 pôs em prática o projeto do plantio de araucárias. Para começar organizou um viveiro para criar as mudas pondo os pinhões a brotar em cubos de xaxim. Enquanto os pinhões brotavam e as mudas se desenvolviam, convocou um grupo de voluntários para abrir brechas encosta acima até encostar na mata virgem, distando entre em torno de 10 metros e preservando a vegetação nos intervalos. Tive o privilégio de fazer parte desse pelotão. Já lembrei mais acima que depois das duas horas de aula depois do meio dia uma hora e meia estava reservada para cuidar da manutenção e limpeza das dependências do Colégio e cuidar do pomar, das piscinas, etc. Aproveitávamos esse horário para cada tarde avançar mais uns bons metros na abertura e limpeza das brechas. Duas ou três vezes ao mês as aulas da tarde de um dia qualquer da semana eram suspensas para acelerar e completar o trabalho de abertura das brechas. Assim, em questão de pouco mais de meio ano estava tudo preparado para as mudas de araucária que, à essa altura, já mediam 10 ou mais centímetros e as agulhas suficientemente duras evitando que as formigas as prejudicassem. A transferência das mudas do viveiro para o lugar definitivo foi rápida. Nunca contei quantas realmente vingaram. Mas, passando hoje, 80 anos passados por Salvador do Sul, pode-se observar na encosta nos fundos dos casarões do antigo Colégio Santo Inácio, um bosque fechado de araucárias de 20 ou mais metros de altura e de meio metro para mais de diâmetro. Orgulho-me de que, lá naquela encosta deixei unhas amassadas, pés e mãos maltratados, braços arranhados com os espinhos da amora silvestre e o suor escorrendo pelo rosto, repondo pelo menos algumas centenas de exemplares de araucárias, dos milhões que a ambição furiosa dos madeireiros derrubaria no planalto no decorrer da década seguinte. Espero que os atuais donos daquela antiga propriedade dos jesuítas, não cometam o desatino para não dizer crime de mexer nos pinheiros daquela encosta emblemática.

Desde a remota infância animais e aves silvestres sempre ocuparam um bom espaço na minha imaginação. Já lembrei dos encontros com esse fantástico mundo dos seres vivos, ao descrever as caminhadas pelas trilhas da mata virgem do Colégio. Aproveito a ocasião para lembrar dois animais que sob o aspeto taxonómico não tinham nada a ver uma com o outro: a Jaguatirica e aranhas caranguejeiras. Certo dia, no ano de 1948 se não me falha a memória, apareceu um colono conhecido, cujas terras parcialmente cobertas de mata virgem, emendavam na mata do Colégio. Na sacola levava um filhote de jaguatirica encontrado perdido no mato enquanto caçava. Como eu era o responsável pelo museu e sabia do meu interesse por novidades, chamaram-me para conversar com aquele senhor. El sem a mínima intenção de ficar com o filhote de jaguatirica perguntou se me interessava. Não duvidei um segundo. Peguei o filhote e o levei para o museu, acomodei-o num canto. Ao rejeitar o leite que lhe ofereci conclui que estava desmamado. Desci para a adega da cozinha onde se guardavam os quartos de rezes e porcos e levei um pedaço de carne. Devorou com gosto. Dai em diante alimentei-o um bom tempo no museu, depois armei um cercado bem grande atrás de um galpão no fundo do pátio e lá a jaguatirica foi crescendo e se desenvolvendo sem problema. Durante a noite deixava a portinhola aberta e ela se embrenhava nas manchas de mato das redondezas para ao clarear do dia voltar ao seu refúgio. Certo dia uma tarântula entrou no cercado e a jaguatirica resolveu brincar com ela. E o óbvio aconteceu. A tarântula pulou no nariz do gato, cravou os dentes e em questão de meia hora minha protegida estava morta.

Sempre cultivei um certo fascínio por caranguejeiras. Não saberia definir bem o motivo. Aprendi a pegá-las com a mão sem machuca-las e sem irrita-las e deixava-as caminhar sobre a mão e subir pelo braço. Acontece que nas salas de estudo os estudantes dispunham de escrevaninhas com o tampo inclinado sobre o compartimento em que se guardava o material escolar e os livros de uso diário em sala de aula. Bem arrumado o material escolar, sobrava um bom espaço para guardar objetos de uso pessoal. Pois, resolvi instalar um esconderijo naquele espaço e acomodar uma enorme caranguejeira. Os meus colegas, principalmente meus vizinhos, não gostaram nada da ideia. Por um bom tempo nada aconteceu. Quando levantava o tampão para pegar os cadernos, livros e caneta ou lápis para fazer os temas, o máximo que acontecia era a aranha sair do seu esconderijo, e dar uma volta por cima dos livros e cadernos e voltar para o seu canto tranquilo. Para alimentá-la bastava um pedacinho de carne. Num dia desses de vento norte, calor abafado, pressão atmosférica baixa, prenúncio de chuva, ao levantar o tampo, a aranha sempre tão pacífica parecia enlouquecida. Saltou para fora, subiu na beirada da escrevaninha e jogou-se nas costas do vizinho da frente. Podem imaginar-se a confusão dentro daquela sala de estudos. Nosso supervisor, o “prefeito”, pulou do estrado no fundo da sala onde estava sentado na sua escrevaninha. O colega quando se deu conta da aranha deu salto e com isso ela caiu no chão, consegui pega-la e leva-la para fora. O “prefeito” que era um homem de bom senso apenas me proibiu abrigar outra aranha dessas na minha escrevaninha e ficou por isso. O cantinho da caranguejeira passou um pouco mais tarde a ser ocupado por uma lagartixa pacífica e totalmente inofensiva.

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