Da Enxada à Cátedra [ 25 ]

A rotina do internato como a descrevi mais acima, pode dar a impressão de um dia a dia de quartel. Não vou negar que havia muito na disciplina que em pouco diferia dessas instituições militares ou de uma academia militar. Olhando para trás, porém, ressalvando alguns senões, só tenho a agradecer não só no que se refere à disciplina acadêmica como quanto ao regramento do quotidiano como um todo. De bom grado concordo que se nessa rotina apertada não tivesse havido momentos regulares de interrupção para sair dos muros e dar uma respirada, esquecer os livros, as salas de aula e os compromissos com a manutenção do casa, 9 meses confinados, com certeza poucos teriam suportado. Mas a sabedoria dos idealizadores do “Ratio Studiorum”, os planejadores dos currículos e da sua programação didático pedagógica, fez prever programações alternativas regulares para contornar os senões de que falei acima. Para começar uma recomendação, embora possa parecer detalhe, significou e continua significando muito em termos de higiene mental para quem se ocupa basicamente com trabalho intelectual e válido em qualquer situação em que ela ocorre. Depois de cada 2 horas de aula, de leitura ou de estudo, seguia obrigatoriamente um intervalo de no mínimo de 20 minutos, para a prática de algum lazer. Tanto fazia um papo sem compromisso com colegas, uma corrida pelos campos de exporte, uma ginástica na barra ou exercícios físicos de alongamento, flexão, levantar peso e outros, que coubessem dentro daquele período.

Uma segunda modalidade de quebra de rotina dava-se em não poucos domingos ou sábados à tarde. O início do ano escolar coincidia com a colheita da uva. Acontece que Salvador do Sul e São Pedro da Serra fazem limite com as colônias italianas. É por todos conhecido que a plantação de uvas e produção de vinho era quase que exclusividade dos colonos italianos. A mais ou menos uma hora de caminhada para o norte do atual município de São Pedro da Serra localizava-se a Linha Pimenta povoada exclusivamente por italianos cultivando belos parreirais alternando com milho e feijão. Na extremidade ocidental de Salvador do Sul, já na descida para Linha Comprida, a família Gasperin cultivava parreiras que enchiam os olhos, saturavam as redondezas com seu perfume suave e delicioso e convidavam para degustar o sabor ímpar que só uma uva madura é capaz de oferecer. Lembro-me como se tivesse sido ontem dos sábados à tarde que meu “prefeito” me destacava com dois ou três colegas para passarmos a tarde colhendo uvas nas parreiras de famílias amigas do Colégio. Dos nomes guardei na memória apenas a família Gasperin. Enchíamos três ou quatro grandes balaios de vime para, na tarde seguinte, domingo, a divisão inteira de internos, cerca de 35 adolescentes, sempre sob o comando do Prefeito, às vezes também do Prefeito Geral, passar uma alegre tarde comendo uvas nas sombra das árvores em volta da casa do colono. Antes de voltarmos para o Colégio costumávamos agradecer com canções populares italianas tão ao gosto daquela gente simpática e amiga, na época a maioria descendentes de primeira geração de imigrantes. Lembro aqui que em torno de um terço dos internos do Colégio Santo Inácio eram de origem italiana. Explica-se assim que no nosso repertório de cantos constavam tanto os em português, quanto alemão e italiano. Ao término da colheita das uvas seguia o período das bergamotas e laranjas no outono e inverno e começo da primavera. Uma ou duas vezes ao mês o programa da tarde do domingo consistia em degustar bergamotas, e laranjas na propriedade de algum colono amigo do Colégio. Como a laranja não costumava ser comercializada naquela região, enchíamos sacolas e mochilas para levar o mais possível para casa. Deixávamos o nosso agradecimento sempre na forma de meia dúzia de cantos para os benfeitores.

Dentre todas as modalidades de “quebra de rotina” destaco a mais esperada. No jargão do internato a chamávamos de dia de “passeio grande”. Um dia de semana por mês costumava ser reservado para passar acampados, normalmente no potreiro de alguma família amiga do Colégio. Na tarde da véspera deixava-se tudo pronto para sair de manhã cedo e voltar no fim da tarde. Cabia a meia dúzia de alunos destacados para tanto, “os cozinheiros”, deixar os ingredientes para o almoço acomodados, um tacho e pratos de alumínio, colheres garfos, reservados especialmente para essa finalidade. Vou adiantar que o almoço preparado no local consistia num prato único de pirão, isto é, farinha de mandioca fervida em água enriquecida com linguiça, temperos, carne moída e algum outro ingrediente. De manhã cedo pelas cinco horas o toque de despertar de uma clarineta nos acordava. Arrumávamos as camas e descíamos direto para a capela para a missa. Depois da missa e café sem perder tempo nos púnhamos a caminho. Não podiam faltar os tambores para marcar o ritmo da marcha nos trechos de estrada não muito acidentados. O destino costumava ser o potreiro ou propriedade de algum colono em São Pedro da Serra, Linha Babilônia, Campestre, Pinhal, Linha Júlio de Castilhos (na época Badensertal), Linha Bonita, Linha Comprida. Essas caminhadas, em parte, em ritmo de marcha com tambores, costumavam levar uma hora, uma hora e meia. Raras vezes acampava-se mais longe. Chegados no local o grupo encarregado da cozinha instalava o tacho par preparar o pirão e o grosso da turma passava o dia de acordo com suas preferências. Minha predileção acompanhado de um dois colegas resumia- se em vasculhar a natureza perto do acampamento, de preferência em restos de mata virgem. Se o espaço o permitia organizavam-se jogos de diversas modalidades. Nos locais acima lembrados onde acampávamos costumava haver araucárias que acrescentavam um ritmo todo especial nos acampamentos nos meses de março a julho, período em que as pinhas estavam maduras. Eu sentia um prazer enorme em subir nos pinheiros, derrubar as pinhas com taquara ou recolher o pinhão debulhado espalhado no chão e depois assá-lo em meio à queima de montes de grimpas secas. No outono, inverno e começo da primavera nunca faltavam bergamotas, laranjas e limas. É natural que entre os destinos para os dias de “passeio grande” havia aqueles com um apelo especial. Entre eles destacava-se a propriedade da família Hartmann do Campestre. Muitas araucárias centenares, mata virgem na descida do planalto para o lado da Linha Comprida, um belo potreiro plano e acima de tudo um enorme açude povoado com carpas. Jamais esquecerei esse pedaço de chão paradisíaco e a simpatia única da família proprietária. A lagoa dos Hartmann era destino obrigatória para um dos passeios na época do pinhão. Outro destino obrigatório para um passeio grande, também na época do pinhão era o potreiro da família Schmitz em São Pedro da Serra no caminho que vai em direção à Linha Babilônia e Francesa Baixa. Um pouco além da entrada para a Linha Babilônia a família Fritzen cedia com o máximo prazer o potreiro para acampar na margem de uma faixa de mata virgem ladeando um desses característicos arroios de montanha. Na descida do arroio erguia-se meia dúzia de enormes cabriúvas com troncos de dez metros de altura, a copa sobrepondo-se a vegetação e árvores menores. La do alto pendiam cipós da grossura de um polegar. Inventamos cortar um desses cipós rente ao chão e balançar de um lado para o outro do arroio. Meu primo Odilo se deu mal numa dessas travessias. Bateu com o joelho no tronco da cabriuva, caiu perto do arroio e não conseguiu mais se levantar e caminhar. Não tive outra saída senão carrega-lo nos ombros, à maneira de um soldado ferido em batalha. Pedi emprestado um cavalo ao Sr. Fritzen e levei meu primo para a enfermaria do Colégio, onde o Ir. Christ com sua habilidade resolveu o problema em dois ou três dias. No dia seguinte montei no cavalo e fui devolvê-lo ao dono e, naturalmente tive que voltar a pé para o Colégio. Cito mais um lugar de “passeio grande” que oferecia ótimas alternativas para passar um dia acampado. Refiro-me à propriedade da família Ritter na divisa de Júlio de Castilhos (Badensertal) com Tupandi. O potreiro terminava na barranca do arroio Salvador que descia de São Pedro da Serra para terminar no rio Caí na altura de Harmonia. De tamanho respeitável, quase um rio, cheio de corredeiras e remansos, habitat ideal para lambaris, jundiás e cascudos. Em companhia de dois amigos e colegas passávamos o dia inteiro explorando aquele lugar maravilhoso na sombra de faixas de mata virgem na margem, pegando com as mãos cascudos e jundiás escondidos sob os blocos de pedra do leito do arroio.

Pela meia tarde apitos do “prefeito” convocavam para recolher a tralha e uma reunião na frente da casa do “benfeitor”, como costumávamos chamar o dono da propriedade e nos despedirmos com uma breve fala de agradecimento de um estudante destacado para tanto, seguida de cantos geralmente de conteúdo humorístico tão ao gosto dos colonos da época. A volta para casa acontecia sempre ao escurecer e terminava com o pelotão marchando na cadência dos tambores até a entrada do Colégio. Ao me lembrar daquele tempo parece que escuto de novo aqueles tambores ecoando nos paredões de tijolo maciço dos prédios do Colégio e nas encostas em volta, mergulhadas nas brumas do entardecer

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