Voltando à rotina do internato no período da guerra, destaco que os primeiros meses de 1943, além de todas as restrições e dificuldades decorrentes da campanha de Nacionalização e da própria guerra, foram marcados por uma estiagem devastadora de 3 meses. A direção do colégio chegou a pensar na suspensão das atividades escolares e que os internos, pelo menos os que moravam menos longe, fossem para casa. O abastecimento de água foi comprometido e o arroio Salvador que alimentava o reservatório que movimentava a usina de geração elétrica do colégio quase sem água. As fontes responsáveis pela água potável e da limpeza da casa encontravam- se com a vasão em nível crítico. Foi preciso levar com carretas de bois os toneis da água buscada na piscina que ficava uns 100 metros distante. Vejo ainda hoje a figura esbelta e alta do prefeito geral, Pe. Oscar Müller, carregando baldes e mais baldes de água das carroças até os banheiros e os limpava nos fins de tarde enquanto nós nos ocupávamos na sala de estudo com os temas e demais obrigações das aulas. Registro aqui a minha homenagem especial a esse jesuíta suíço de coração de ouro que cuidou de nós seminaristas, diria quase como que uma mãe entre 1942 e 1945. Depois passou ocupar importantes cargos na formação do clero: reitor do Seminário Central de São Leopoldo de 1946-1948, quando foi nomeado reitor do Colégio Cristo Rei entre 1949-1951. De 1951-1955 foi reitor do Pio Brasileiro em Roma e de 1955-1967 foi orientador espiritual da mesma instituição. Voltando ao Brasil em 1967 foi diretor espiritual dos estudantes de teologia no colégio Cristo Rei e professor de Teologia. Dedicou os últimos anos a uma intensa atividade de retiros, cursos e, principalmente, de apoio psicológico-espiritual a sacerdotes, religiosos e religiosas. Numa dessas jornadas ao Ceará, faleceu em Fortaleza em consequência de um edema pulmonar e no dia seguinte foi sepultado no cemitério dos jesuítas em São Leopoldo. Devo a esse suíço uma enorme dívida de gratidão pelo apoio e compreensão quando da minha saída da Ordem em 1971.
Em 20 de agosto de 1942 o Brasil declarou guerra à Alemanha. Antes de falar sobre os reflexos desse ato extremo de demonstração de hostilidade contra a Alemanha, sobre a rotina do seminário em Salvador do Sul, creio ser útil mostrar os fatos imediatos que levaram o Brasil a tomar essa decisão extrema. Durante décadas discutiu-se mais tarde sobre o que na verdade estava atrás do afundamento dos navios brasileiros em águas territoriais na costa do nordeste naquele 15 de agosto e 1942. Acontece que o Brasil rompera as relações diplomáticas e comerciais com o Eixo já em janeiro de 1942, mas manteve-se neutro em relação ao conflito bélico propriamente dito. Nesse meio tempo o Comando da Guerra Naval alemão, montara a operação de guerra no 53 endereçada ao Brasil como retaliação ao rompimento das relações diplomáticas e comerciais. Essa operação previa um ataque de uma flotilha de submarinos a navios brasileiros. Conforme consta nos relatórios do Comando de Guerra Naval a operação no 53 foi cancelada por razões políticas. Supõe-se que o ministro das relações exteriores da Alemanha, Joachim von Ribbentropp teria convencido Hitler da inoportunidade da ação pois, poderia provocar uma reação em cascata na América do Sul, arrastando principalmente o Chile e a Argentina abandonar a neutralidade e passar para o lado dos Aliados. A Alemanha alertara o Chile e a Argentina que identificassem seus navios para não serem atacados pelos submarinos. Pelo que informou o tenente-coronel Durval Pereira o alerta da identificação dos navios não foi comunicado ao Brasil tornando-os alvos dos submarinos. Documentos do Arquivo Federal alemão informam que o submarino U53 sob o comando do capitão Harro Schacht recebeu a missão de interceptar navios isolados, navegando para a África do Sul, longe da costa do Brasil. Passou semanas sem encontra uma presa sequer e convencido que navios americanos navegavam por águas territoriais brasileiras, aproximou-se da costa e localizou um navio sem identificação no casco. Disparou dois torpedos que não acertaram o alvo. Aproximou-se até 100 metros mandou disparar mais dois torpedos que afundaram o Baependy, um barco misto de carga e passageiros. Naquela noite de 15 de agosto, um por um, cinco navios mistos foram afundados pelos torpedos de Harro Schacht. Como se pode deduzir o afundamento dos navios brasileiros foi na verdade o resultado da iniciativa do capitão de submarino Harro Schacht. Deixando de lado a discussão mais aprofundada sobre a verdadeira responsabilidade sobre o torpedeamento dos navios brasileiros e consequente declaração de guerra do Brasil ao Eixo em 20 de agosto, volto as atenções sobre a repercussão desses fatos sobre a rotina do meu internato.
Evidentemente quando esses acontecimentos se tornaram públicos a comoção tomou conta do País, ainda mais quando os corpos dos passageiros dos navios foram levados pelo oceano até as praias do Sergipe. O novo panorama desenhado por essa decisão tão relevante acirrou ainda mais as tensões motivadas pela Campanha de nacionalização. O cerco aos possíveis aliados e defensores do Eixo foi reforçado e a vigilância redobrada. É oportuno relembrar que a maioria dos padres meus professores eram alemães, austríacos e suíços natos. Na prática todos eles eram rotulados como alemães e tratados como estrangeiros. Como já anotei mais acima, não ocorreram devassas da parte da polícia, muito menos constrangimentos e prisões. Como qualquer outro estrangeiro eram obrigados a se munir de um salvo-conduto para viajar de um município a outro ou de um estado a outro. Mas, o torpedeamento dos navios na costa do nordeste teve um efeito colateral que afetou por meses toda a comunidade do Colégio Santo Inácio, tanto os internos quanto os professores e a direção. Na época mercadorias e produtos como sal e açúcar vinham via navegação costeira ou de cabotagem do nordeste para abastecer os mercados do sul. O ataque aos navios de passageiros e de carga em águas territoriais levou a interrupção da navegação de cabotagem. Para encurtar a história o colégio não tinha como conseguir sal e açúcar vindos do nordeste. Como consequência as refeições e o pão eram preparadas sem sal. Essa situação prolongou-se por aproximadamente meio ano. A falta de abastecimento de açúcar não foi tão dramático. De um lado porque seu uso era mais seletivo e do outro sempre havia a possibilidade de conseguir açúcar mascavo artesanal dos colonos da redondeza. Lembro-me como se tivesse sido ontem no dia em que o Reitor do Colégio entrou no refeitório durante a janta e nos deu a boa nova: “Voltou o sal e amanhã vamos comemorar com um “passeio grande”. Já instrui o padeiro para deixar pronto uma fornada de pão com sal par amanhã”. Foi uma festa. No dia seguinte fomos acampar no Campestre. Antes de sair para o piquenique cada interno recebeu um quarto de pão de farinha integral e, felizes, caminhamos pela estrada de terra que terminava perto das cascatas no Campestre onde armamos o acampamento para passar o dia. Ao chegar no local o pão tinha sumido. Durante a caminhada tinha sido “devorado” como uma guloseima.
No mais a rotina do colégio seguiu seu curso normal enquanto possível nas circunstâncias anômalas criadas pela guerra. Não me lembro que se tenham formado grupos definidos a favor ou contra o “Eixo” ou os “Aliados”. Os responsáveis pela instituição foram suficientemente hábeis para evitar esse tipo de radicalização. Presenciei um ou outro caso de discussões pontuais entre os alunos mas, nada que perturbasse o bom andamento do todo ou desandasse em quebra de amizades muito menos na formação de grupos fechados entre os seminaristas defendendo um ou outro lado do conflito. A situação assumiu contornos mais preocupantes no decorrer do ano de 1944 com a formação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) arregimentada para lutar, junto com os aliados, na frente de combate na Itália. Depois do primeiro escalão que partiu para a Itália, composto por tropas do Rio de Janeiro, Minas, São Paulo, o recrutamento foi se ampliando para as guarnições dos estados do Sul. Parentes próximos de não poucos alunos do colégio foram incorporados em sucessivos escalões com destino para a Itália. Um primo irmão meu e outros parentes de segundo e terceiro grau foram convocados. A maioria deles não chegou a embarcar porque a guerra terminou enquanto aguardavam no Rio de Janeiro ordens para partir para a frente de combate. O fato de três jovens padres jesuítas, mais acima já me referi a eles, se terem apresentado como voluntários para acompanhar as tropas como capelães militares aumentou os interesse em acompanhar mais de perto todos os lances do final do conflito. Suas vidas corriam os mesmos riscos da dos soldados envolvidos no fogo dos combates na linha de frente. Felizmente terminado o conflito os três voltaram sem terem sofrido nenhum ferimento. Passaram para a reserva como oficiais das forças armadas. O Pe. capelão Wendelino Junges trabalhou na pastoral e o Urbano Rausch e Emílio Schneider como assistentes nos Círculos Operários. Querendo ou não o fato de soldados brasileiros em frentes de combate, 450 dos 24.000 que foram para a Itália morreram em ação, despertou em nós seminaristas um sentimento de solidariedade com a tropa. Cantávamos nos encontros informais e formais a “Canção do Expedicionário” e o coral do colégioencerrava encontros culturais e outras programações do nosso calendário com a versão em português do “Coro dos Prisioneiros” da ópera Nabuco de Verdi, com a letra tendo como pano de fundo o drama dos expedicionários e seus familiares. Finalmente em começos de maio de 1945 terminou a guerra na Europa e em agosto também no Pacífico contra o Japão. O término da guerra forçou também a deposição de Getúlio Vargas e com isso o encerramento da ditadura do Estado Novo (1937-1945), numa ação conjunta da UDN (União Democrática Nacional) e as Forças Armadas. Em 1946 o marechal Eurico Gaspar Dutra foi eleito democraticamente pelo voto popular presidente da República.