Da Enxada à Cátedra [ 27 ]

Como em muitos outros níveis, também entre o clero secular e regular a Campanha de Nacionalização teve sequelas no mínimo discutíveis. Vou-me limitar ao caso dos jesuítas que me é mais familiar e conhecido. A partir do período que é nosso foco aqui começou-se a falar com sempre maior frequência na “Velha Guarda”. Pergunta-se: quem pertencia à “Velha Guarda”, quais seus protagonistas e qual foi o legado que deixaram para as futuras gerações de jesuítas e para a história da consolidação religiosa e sócio econômica do sul do Brasil como um todo. Não é aqui o lugar para entrar em detalhes pois, esses podem ser encontrados nos meus três livros que publiquei sobre a temática, todos pela Ed. da Universidade do Vale do Rio dos Sinos: “Um sonho e uma Realidade – 0 Projeto Educacional dos Jesuítas; Somando Forças – O Projeto Social dos Jesuítas; Os Jesuítas no sul do Brasil – O Projeto Pastoral. A justiça manda creditar esses três projetos à “Velha guarda”. Em termos históricos os últimos personagens e protagonistas dessa “Velha Guarda” saíram do cenário no decorrer da década de 1950, quando foram substituídos pelos irmãos de Ordem nativos. O período de transição e transferência do bastão de comando da Velha Guarda” para seus herdeiros nascidos no Brasil, não foi de todo tranquila. Como eu fui jesuíta dos 20 aos 41 anos, isto é, entre 1950 e 1971, suponho que tenha credenciais para opinar com conhecimento de causa. Olhando para trás mas, sempre com a precaução de que “as coisas não são como as vemos mas como as recordamos” (Caldera , 2004, p. 14), fica claro que a “Velha Guarda” incarnou o que poderíamos chamar de brigada de assalto na missão de conquista e consolidação das novas fronteiras para o Reino de Deus no sul do Brasil. Seus nomes, suas façanhas e sus obras estão registradas nos livros que citei mais acima. Tive a felicidade de conhecer e conviver entre 1942 e 1946 com o Pe. Johannes Rick, um dos personagens mais emblemáticos dessa brigada da velha guarda. Desgastado pelos 40 anos como pregador de missões populares, catequese aos ferroviários, consolidação da fronteira de colonização do oeste de Santa Catarina, secretário itinerante da Sociedade União Popular, além de especialista de renome internacional na pesquisa de fungos, passou os últimos anos no Colégio Santo Inácio. Por algum tempo ainda ministrou aulas de Ciências Naturais. Os últimos anos dedicou-se inteiramente à coleta e classificação de fungos que seriam enviados para especialistas principalmente nos Estados Unidos. Inúmeras vezes observei aquele homem de perto de 2 metros de altura, um tanto curvado pela idade, saindo do mato do colégio carregando a coleta do dia e recolher-se ao seu quarto no primeiro andar da ala onde moravam os padres professores. Já lembrei em outro lugar mais acima que o Pe. Rick foi meu confessor por um par de anos. Ele próprio definiu em poucas palavras o perfil da sua personalidade: “Se eu tivesse nascido na Renascença não me teria feito jesuíta mas, um Condottieri Italiano”, ou ainda “A minha vida se parece com uma tabuleiro de xadrez, sobre o qual cada lance deve ser atentamente calculado para chegar ao Xeque Mate”. Suas últimas palavras revelam o cerne de sua personalidade: “Nemo Pater nisi Deus” – “Ninguém é Pai senão Deus!E como o Pe. Rick todos da “velha guarda”, cada qual à sua maneira, arregimentados no Tirol do Sul e do Norte, nos cantões da Suíça alemã, na Baviera, na Renânia, no Palatinado, na Vestfália, na Áustria, na Boêmia, na Pomerânia e demais territórios de fala alemã, cumpriram bem ao estilo inaciano a grande missão de fazer do sul do Brasil uma terra economicamente próspera, social, cultural e religiosamente de um nível invejável. Cabe aqui um inciso de natureza pessoal. Ao decidir fazer-me jesuíta meus modelos, meus inspiradores, meus “ídolos”, foram representantes dessas “velha guarda” que me foram familiares desde que me conheci como gente. Na medida em que os últimos sobreviventes saíram de cena e em seu lugar entrou a nova geração de jesuítas que foi tomando um rumo divergente tácito, muitas vezes nem tanto, de questionamento e até de condenação da obra dos pais fundadores, comecei a perder o chão sob os pés e terminei me desligando da ordem depois de 21 anos. Mas, não é aqui o lugar para entrar em detalhes dessa transição penosa e sofrida da minha vida.

Da Enxada à Cátedra [ 26 ]

O Período da Segunda Guerra Mundial

Os quatros primeiros anos que passei no Colégio Santo Inácio, 1942-1945, coincidiram com a vigência do Estado Novo, da Campanha de Nacionalização e da Segunda Guerra Mundial. Mais acima já lembrei os reflexos negativos sobre minha formação primária decorrentes do Estado Novo e da Campanha de Nacionalização. Entrei no Colégio Santo Inácio um pouco mais do que alfabetizado o que me levou a ser matriculado no terceiro ano do primário, o que na verdade significou que era preciso começar tudo pelo começo. Lia, escrevia e falava sem dificuldade alemão. Dominava a aritmética e os cálculos básicos que tinha aprendido na escolinha do Morro da Manteiga. O meu português não passava dos rudimentos tanto para me fazer entender e, consequentemente, para entender os colegas falando. Redação e gramática algumas noções. Essa situação rendeu-me não poucos contratempos no convívio, com destaque para um tal ou qual isolamento pois, estava terminantemente proibido falarmos uns com os outros em alemão, por imposição dos decretos da nacionalização. Bastava chegar ao conhecimento da polícia a mínima suspeita que no Colégio se falava ou alemão, ou italiano, ou polonês, ou outra qualquer língua que não fosse o português, para sumariamente proceder uma vistoria e sem a menor cerimônia prender o reitor ou qualquer outro responsável pelos internos. Os responsáveis pelo estabelecimento não tinham outra alternativa senão impor com severidade o português. Essa situação agravou-se, no meu caso pelo menos, nos dois ou três primeiros meses pela saudade da minha casa, dos meus pais e irmãos. Num dos cantos do campo de futebol cercado com tela enxergava-se ao longe aquele morro triangular coberto de mata virgem e na encosta uma roça que fazia parte da propriedade da família. Naquele canto, agarrado às malhas da cerca, passei não poucos momentos, olhando aquele cenário lá ao longe, deixando correr livremente, sem me importar com os colegas por perto, lágrimas doídas, brotadas do fundo coração. Ainda bem que ninguém dos meus superiores teve a ideia de sugerir que alguém da família me buscasse. O responsável imediato pela “divisão dos pequenos”, o “Fr. Urbano Müller”, teve a sensibilidade e a compreensão de, naqueles momentos me socorrer e tratar-me como que um irmão menor. Deixo aqui o meu registro de gratidão pois, se estou escrevendo essas recordações 80 anos depois, devo-o, em grande parte, à sua compreensão pelo drama pelo qual eu estava passando naqueles momentos. O Ir. Vicente Slany, já me referi a ele mais acima, o regente da terceira série e responsável por todas as disciplinas do currículo, foi outro a quem devo não ter abandonado o colégio e voltado para a enxada. Esse irmão leigo jesuíta nascido na Áustria, um homem alto e atlético, passando um pouco dos 40 anos, invariavelmente bem-disposto e empolgado pelo que fazia, fez com que em pouco tempo tomasse um enorme gosto pelo estudo e superasse aquele começo tão desfavorável. Mais tarde, já no nível de ginásio, foi meu professor de desenho. No dia 19 de julho, aniversário do Ir. Slany, sempre havia uma comemoração em sua homenagem. O Pe. Oscar Müller, originário da Suíça, como “prefeito geral”, foi outro jesuíta daquela estirpe sonhada por Santo Inácio, que contribuiu decisivamente para que eu não desanimasse e desistisse.

Em 20 de agosto de 1942, portanto, no mesmo ano em que me internei no Colégio Santo Inácio, o Brasil declarou guerra ao “Eixo”, a aliança formada pela Alemanha, Itália e Japão. Com esse ato os decretos da Campanha de Nacionalização e a ação do seu braço e aparato policial, fecharam ainda mais o cerco a tudo que para as autoridades não correspondia ao figurino da “brasilidiade”. Acontece que entre os internos do Colégio Santo Inácio 90% ou mais eram descendentes de alemães, italianos e poloneses, com uma predominância numérica expressiva em favor dos primeiros. Além disso o reitor, o “prefeito geral”, e a maioria dos padres professores eram alemães, suíços de fala alemã e austríacos natos. Os demais jesuítas cumprindo o estágio de magistério vinham das colônias alemãs ou italianas. Para as autoridades civis e, de modo especial, para as policias estaduais, o colégio, situado longe de qualquer centro urbano maior, isolado nos morros nos confins do então município de Montenegro, concentrava uma população docente e discente no mínimo “pouco brasileira”. Mas, não me lembro de nenhuma ocorrência de devassa no estabelecimento ou intimação para se apresentar na subdelegacia de polícia, muito menos de alguma prisão. Com certeza os serviços de inteligência tinham em mãos informações de que no colégio não circulavam veículos de propaganda em favor da Alemanha muito menos a existência de algum grupo de resistência à nacionalização e apoio aos aliados do Eixo. Os internos não tinham acesso a jornais ou revistas, muito menos a noticiários de rádio ou a outras fontes de informação. Os ecos da guerra nos alcançavam dispersos e intermitentes de maneira que não foram consistentes ao ponto de estimular animosidades entre os alunos. Os padres e irmãos estrangeiros aos quais me referi mais acima abstinham-se de externar suas opiniões e muito menos polemizá-las em público. Em todo o caso, posso afirmar com toda a convicção que nenhum deles apoiava o regime nazista da Alemanha. Os austríacos detestavam esse regime porque incorporara à força a sua pátria ao “Terceiro Reich” e, evidentemente também pelo ódio que destilava contra o catolicismo e em especial contra os jesuítas. Pelos mesmos motivos religiosos também os suíços jamais contemporizariam com o nacional socialismo e seus métodos ainda mais que a Suíça se manteve neutra durante todo o período da segunda Guerra Mundial. Os padres e irmãos leigos cultivavam como qualquer filho de outro país, como é óbvio, uma profunda afeição pela pátria de origem, palco de uma guerra e devastação como nunca houve na história e, de modo especial, com o povo que nada tinha a ver com as razões da barbárie que os vitimava. Um bom número de irmãos de ordem foram confinados como criminosos em campos de concentração. O Pe. Rupert Maier, conhecido como o apóstolo de Munique, herói nacional condecorado com a “Cruz de Ferro” por atos de heroísmo como capelão militar na Primeira Guerra Mundial, quando perdeu uma perna, foi confinado no mosteiro de Ettal, ameaçado de prisão e morte. Aliás, lembro- me como se tivesse sido ontem quando em meados de fevereiro de 1945, o Pe. Oscar Müller, nosso “prefeito geral”, nos comunicou reunidos na sala de estudo, que acabara de receber a notícia que os jovens padres jesuítas, ambos com menos de 40 anos, Alfred Delp e Alois Grimm, tinham sido executados numa prisão em Berlim. Havia ainda uma série de outras razões pelas quais o Colégio Santo Inácio não oferecia risco algum para servir de abrigo a inimigos do Brasil infiltrados empenhados e fomentar nos seus pupilos qualquer tipo de simpatia pelo Nacional Socialismo e suas pretensões de conquista também fora da Europa. Nesse contexto chamo a atenção a uma autêntica guinada de 180o entre os jovens jesuítas alemães e italianos nascidos no Brasil. Não digo todos mas, a grande maioria aderiu à Campanha de Nacionalização ou, pelo menos, concordou com ela, obedecendo à orientação do arcebispo D. João Becker e seus sufragâneos no Rio Grande do Sul. Pelos menos 3 dos jovens jesuítas que cumpriam o estágio de magistério no Santo Inácio na época da guerra alinhavam-se com essa orientação. Mais um dado reforça adesão ao “abrasileiramento” entre os sacerdotes mais jovens dos jesuítas da Província Sul Brasileira. Por ocasião em que “Força Expedicionária a FEB” foi arregimentada para lutar na frente de guerra da Itália, ao lado dos aliados, o alto comando decidiu incorporar na tropa um número proporcional de capelães militares ao efetivo dos combatentes. O superior provincial do Sul solicitou que se apresentassem voluntários para a missão. Os 3 jesuítas que se apresentaram e partiram de fato com a FEB para a Itália e prestaram assistência nas frentes de combate, foram todos descendentes de imigrantes alemães: Emílio Schneider, Vendelino Junges, Urbano Rausch. A eles veio somar-se o padre diocesano Nilo Collet, também neto de imigrantes alemães.

Da Enxada à Cátedra [ 25 ]

A rotina do internato como a descrevi mais acima, pode dar a impressão de um dia a dia de quartel. Não vou negar que havia muito na disciplina que em pouco diferia dessas instituições militares ou de uma academia militar. Olhando para trás, porém, ressalvando alguns senões, só tenho a agradecer não só no que se refere à disciplina acadêmica como quanto ao regramento do quotidiano como um todo. De bom grado concordo que se nessa rotina apertada não tivesse havido momentos regulares de interrupção para sair dos muros e dar uma respirada, esquecer os livros, as salas de aula e os compromissos com a manutenção do casa, 9 meses confinados, com certeza poucos teriam suportado. Mas a sabedoria dos idealizadores do “Ratio Studiorum”, os planejadores dos currículos e da sua programação didático pedagógica, fez prever programações alternativas regulares para contornar os senões de que falei acima. Para começar uma recomendação, embora possa parecer detalhe, significou e continua significando muito em termos de higiene mental para quem se ocupa basicamente com trabalho intelectual e válido em qualquer situação em que ela ocorre. Depois de cada 2 horas de aula, de leitura ou de estudo, seguia obrigatoriamente um intervalo de no mínimo de 20 minutos, para a prática de algum lazer. Tanto fazia um papo sem compromisso com colegas, uma corrida pelos campos de exporte, uma ginástica na barra ou exercícios físicos de alongamento, flexão, levantar peso e outros, que coubessem dentro daquele período.

Uma segunda modalidade de quebra de rotina dava-se em não poucos domingos ou sábados à tarde. O início do ano escolar coincidia com a colheita da uva. Acontece que Salvador do Sul e São Pedro da Serra fazem limite com as colônias italianas. É por todos conhecido que a plantação de uvas e produção de vinho era quase que exclusividade dos colonos italianos. A mais ou menos uma hora de caminhada para o norte do atual município de São Pedro da Serra localizava-se a Linha Pimenta povoada exclusivamente por italianos cultivando belos parreirais alternando com milho e feijão. Na extremidade ocidental de Salvador do Sul, já na descida para Linha Comprida, a família Gasperin cultivava parreiras que enchiam os olhos, saturavam as redondezas com seu perfume suave e delicioso e convidavam para degustar o sabor ímpar que só uma uva madura é capaz de oferecer. Lembro-me como se tivesse sido ontem dos sábados à tarde que meu “prefeito” me destacava com dois ou três colegas para passarmos a tarde colhendo uvas nas parreiras de famílias amigas do Colégio. Dos nomes guardei na memória apenas a família Gasperin. Enchíamos três ou quatro grandes balaios de vime para, na tarde seguinte, domingo, a divisão inteira de internos, cerca de 35 adolescentes, sempre sob o comando do Prefeito, às vezes também do Prefeito Geral, passar uma alegre tarde comendo uvas nas sombra das árvores em volta da casa do colono. Antes de voltarmos para o Colégio costumávamos agradecer com canções populares italianas tão ao gosto daquela gente simpática e amiga, na época a maioria descendentes de primeira geração de imigrantes. Lembro aqui que em torno de um terço dos internos do Colégio Santo Inácio eram de origem italiana. Explica-se assim que no nosso repertório de cantos constavam tanto os em português, quanto alemão e italiano. Ao término da colheita das uvas seguia o período das bergamotas e laranjas no outono e inverno e começo da primavera. Uma ou duas vezes ao mês o programa da tarde do domingo consistia em degustar bergamotas, e laranjas na propriedade de algum colono amigo do Colégio. Como a laranja não costumava ser comercializada naquela região, enchíamos sacolas e mochilas para levar o mais possível para casa. Deixávamos o nosso agradecimento sempre na forma de meia dúzia de cantos para os benfeitores.

Dentre todas as modalidades de “quebra de rotina” destaco a mais esperada. No jargão do internato a chamávamos de dia de “passeio grande”. Um dia de semana por mês costumava ser reservado para passar acampados, normalmente no potreiro de alguma família amiga do Colégio. Na tarde da véspera deixava-se tudo pronto para sair de manhã cedo e voltar no fim da tarde. Cabia a meia dúzia de alunos destacados para tanto, “os cozinheiros”, deixar os ingredientes para o almoço acomodados, um tacho e pratos de alumínio, colheres garfos, reservados especialmente para essa finalidade. Vou adiantar que o almoço preparado no local consistia num prato único de pirão, isto é, farinha de mandioca fervida em água enriquecida com linguiça, temperos, carne moída e algum outro ingrediente. De manhã cedo pelas cinco horas o toque de despertar de uma clarineta nos acordava. Arrumávamos as camas e descíamos direto para a capela para a missa. Depois da missa e café sem perder tempo nos púnhamos a caminho. Não podiam faltar os tambores para marcar o ritmo da marcha nos trechos de estrada não muito acidentados. O destino costumava ser o potreiro ou propriedade de algum colono em São Pedro da Serra, Linha Babilônia, Campestre, Pinhal, Linha Júlio de Castilhos (na época Badensertal), Linha Bonita, Linha Comprida. Essas caminhadas, em parte, em ritmo de marcha com tambores, costumavam levar uma hora, uma hora e meia. Raras vezes acampava-se mais longe. Chegados no local o grupo encarregado da cozinha instalava o tacho par preparar o pirão e o grosso da turma passava o dia de acordo com suas preferências. Minha predileção acompanhado de um dois colegas resumia- se em vasculhar a natureza perto do acampamento, de preferência em restos de mata virgem. Se o espaço o permitia organizavam-se jogos de diversas modalidades. Nos locais acima lembrados onde acampávamos costumava haver araucárias que acrescentavam um ritmo todo especial nos acampamentos nos meses de março a julho, período em que as pinhas estavam maduras. Eu sentia um prazer enorme em subir nos pinheiros, derrubar as pinhas com taquara ou recolher o pinhão debulhado espalhado no chão e depois assá-lo em meio à queima de montes de grimpas secas. No outono, inverno e começo da primavera nunca faltavam bergamotas, laranjas e limas. É natural que entre os destinos para os dias de “passeio grande” havia aqueles com um apelo especial. Entre eles destacava-se a propriedade da família Hartmann do Campestre. Muitas araucárias centenares, mata virgem na descida do planalto para o lado da Linha Comprida, um belo potreiro plano e acima de tudo um enorme açude povoado com carpas. Jamais esquecerei esse pedaço de chão paradisíaco e a simpatia única da família proprietária. A lagoa dos Hartmann era destino obrigatória para um dos passeios na época do pinhão. Outro destino obrigatório para um passeio grande, também na época do pinhão era o potreiro da família Schmitz em São Pedro da Serra no caminho que vai em direção à Linha Babilônia e Francesa Baixa. Um pouco além da entrada para a Linha Babilônia a família Fritzen cedia com o máximo prazer o potreiro para acampar na margem de uma faixa de mata virgem ladeando um desses característicos arroios de montanha. Na descida do arroio erguia-se meia dúzia de enormes cabriúvas com troncos de dez metros de altura, a copa sobrepondo-se a vegetação e árvores menores. La do alto pendiam cipós da grossura de um polegar. Inventamos cortar um desses cipós rente ao chão e balançar de um lado para o outro do arroio. Meu primo Odilo se deu mal numa dessas travessias. Bateu com o joelho no tronco da cabriuva, caiu perto do arroio e não conseguiu mais se levantar e caminhar. Não tive outra saída senão carrega-lo nos ombros, à maneira de um soldado ferido em batalha. Pedi emprestado um cavalo ao Sr. Fritzen e levei meu primo para a enfermaria do Colégio, onde o Ir. Christ com sua habilidade resolveu o problema em dois ou três dias. No dia seguinte montei no cavalo e fui devolvê-lo ao dono e, naturalmente tive que voltar a pé para o Colégio. Cito mais um lugar de “passeio grande” que oferecia ótimas alternativas para passar um dia acampado. Refiro-me à propriedade da família Ritter na divisa de Júlio de Castilhos (Badensertal) com Tupandi. O potreiro terminava na barranca do arroio Salvador que descia de São Pedro da Serra para terminar no rio Caí na altura de Harmonia. De tamanho respeitável, quase um rio, cheio de corredeiras e remansos, habitat ideal para lambaris, jundiás e cascudos. Em companhia de dois amigos e colegas passávamos o dia inteiro explorando aquele lugar maravilhoso na sombra de faixas de mata virgem na margem, pegando com as mãos cascudos e jundiás escondidos sob os blocos de pedra do leito do arroio.

Pela meia tarde apitos do “prefeito” convocavam para recolher a tralha e uma reunião na frente da casa do “benfeitor”, como costumávamos chamar o dono da propriedade e nos despedirmos com uma breve fala de agradecimento de um estudante destacado para tanto, seguida de cantos geralmente de conteúdo humorístico tão ao gosto dos colonos da época. A volta para casa acontecia sempre ao escurecer e terminava com o pelotão marchando na cadência dos tambores até a entrada do Colégio. Ao me lembrar daquele tempo parece que escuto de novo aqueles tambores ecoando nos paredões de tijolo maciço dos prédios do Colégio e nas encostas em volta, mergulhadas nas brumas do entardecer

Da Enxada à Cátedra [ 24 ]

Excursões de coleta

Novamente não posso deixar de louvar e admirar a visão e compreensão da educação integral dos responsáveis pela minha formação e agradecer as oportunidades que impediram que caísse vítima dessa armadilha que acabo de mencionar. A justiça manda creditar o maior mérito, ao já mais vezes lembrado Pe. Edvino Friderichs, meu professor de Ciências Naturais e responsável maior também pelo museu e, mais tarde, já como jesuíta, por duas vezes meu superior provincial: a primeira no começo da década de 1950 e a segunda em meados da década de 1960, as duas em momentos importantes da minha formação acadêmica no nível superior e na implantação do projeto da Unisinos como universidade. Mais acima quando detalhei a rotina diária e semanal do colégio, lembrei que nas quartas feiras não havia aulas formais como nos outros dias e no sábado de manhã. Nesse dia, além das tarefas de manutenção e limpeza do estabelecimento, havia espaço para atividades esportivas, entre elas futebol, caminhadas pelas redondezas, incursões na mata virgem da propriedade, banho de piscina, leitura de livre escolha e por aí vai. Acontece que naqueles anos como professor de Ciências Naturais, o Pe. Friderichs dedicava-se à coleta e classificação de fanerógamos em parceria com o Pe. Rambo, com a pretensão de especializar-se na sistemática dessa categoria botânica. Sabendo do meu interesse como também do meu colega Cirne Lima pelas Ciências Naturais, convidou-nos, a nós dois, para acompanhá-lo nas quartas feiras em suas coletas por Salvador do Sul, São Pedro da Serra, Campestre e Pinhal. Embora as áreas planas desse planalto estivessem praticamente todas desmatadas e ocupadas por plantações, a coroa e as descidas mais íngremes e acidentadas e acidentadas do planalto com seus arroios e córregos, abrigavam em boa parte ainda a vegetação nativa original. Belas faixas de mata virgem intata, pontilhadas por majestosas figueiras do mato, batingas, cangeranas, cabriúvas, louros, mata olhos e outras espécies nativas, cobriam a borda superior formada por rochas de basalto, às vezes de considerável altura. Ofereciam abrigos e refúgios naturais para pacas, cutias, tatus, aves, serpentes, lagartos, caranguejeiras e milhares de espécies de insetos, aracnídeos e outras mais, comuns nesse tipo de habitat. Pois, foi esse o cenário em que nós três perambulávamos desde o nascer ao por do sol nas quartas feiras durante todo ano de 1947. O Pe. Friderichs cuidava do almoço reforçado aprontado no dia anterior junto com o irmão cozinheiro. Depois do café da manhã com os demais internos, saíamos de mochilas nas costas, botas de couro e boné na cabeça para passar o dia vasculhando livres como nossos parceiros alados na copa das árvores, quadrúpedes e bípedes correndo na penumbra do chão da floresta. Impossível descrever o tamanho, o inesperado e o inusitado de sentimentos e emoções que emergem dos arcanos da memória no contato existencial com a natureza de cuja matéria prima somos feitos também nós humanos e dela dependemos para existir e subsistir e a ela um dia voltaremos. Naquelas quartas feiras inesquecíveis de 1947, vasculhamos de ponta a ponta as bordas do planalto de São Pedro da Serra e Salvador do Sul, mais a bela floresta virgem cobrindo mais da metade dos 400 hectares da propriedade do Colégio Santo Inácio. Ao meio dia almoçávamos acomodados perto de um córrego de água cristalina ou duma fonte brotando das entranhas da terra. O Pe. Friderichs abria um embrulho que carregava na mochila. Continha linguiça defumada e um pão misto delicioso, fazia o sinal da cruz e convidava para o almoço, frugal como convém a exploradores, regado com a água pura e fresca que descia pelo córrego ou diretamente da fonte brotando do meio das pedras. Depois de um descanso complementado com um papo enriquecedor, seguia mais uma exploração pelo mato e a beirada das roças, até pelas 5 horas da tarde. A expedição científica costumava terminar com um jogo de “peteca” de meia hora em algum lugar apropriado e chegando em casa um banho de piscina fazia esquecer o cansaço acumulado durante o dia. Para resumir numa só frase o significado daquela experiência em todos os sentidos, diria que equivaleu a um aprendizado de Ciências Naturais, na universidade ao ar livre, sem jalecos, sem poses de catedráticos, sem a parafernália de um laboratório, munidos apenas de uma lupa e a vontade de viver, sentir, observar, escutar, farejar e degustar a natureza no seu estado primigênio.

Alimentava um autêntico fascínio por aquele santuário de floresta que cobria o topo e parte das encostas do morro nos fundos do Colégio. Nos domingos de tarde ou feriados, enquanto meus colegas jogavam futebol ou se divertiam com outras modalidades de exporte, geralmente sozinho e com autorização dos meus superiores, percorria as trilhas abertas em todas direções na mata. Não poucas vezes arriscava um embrenhada naquele mundo misterioso, habitat predileto do inhambu, das saracuras, das pacas, cutias, ratos silvestres, aranhas caranguejeiras além de milhões de insetos. As cigarras cantavam agarradas à casca das árvores, abelhas zumbiam nas copas das árvores e arbustos em flor, moscas dançavam ao sol. Mas, era preciso muita atenção pois, aquele mato e seus arredores ofereciam um habitat privilegiado para a jararaca que costumava aproveitar as manchas de sol na beirada das trilhas para se aquecer. No começo movia-me a curiosidade e, principalmente, as muitas e difusas sensações de bem estar proporcionado por aquele ambiente. Resumindo, sentia-me “em casa”, não no sentido histórico cultural quando se fala em “querência” ou “Heim” como palcos planejados para convivência na intimidade com a família e pessoas muito chegadas a ela. Sentia-me “em casa” no sentido metafórico de fazer parte existencial, melhor talvez ontológica, desse maravilhoso cenário prenhe de vida, harmonia, encanto e beleza. Cada criatura ocupava o seu lugar e cumpria a sua função, todas, também eu, representantes de espécies vivas de todos os níveis taxonómicos, “nascidos da terra”. Em outras palavras, mais ao gosto de hoje, caminhando por aquelas trilhas, não passava de simples transeunte curioso, mas terminava por integrar, enriquecer e complementar de forma peculiar aquele ecossistema. A Sagrada Escritura ensina que Deus criou o “jardim da natureza para que o homem viva nele, o cultive e o faça produzir frutos. Nessa perspetiva o homem foi criado como chave de ouro da criação. Estou ciente que essa minha afirmação contenha munição para desencadear polêmicas acirradas tanto no campo científico, quanto filosófico e teológico. Se for o caso, tenho certeza que seja saudável. Paro por aí pois, aprofundar essas reflexões extrapola a finalidade do presente texto.

No começo essas caminhadas pelas trilhas da floresta não perseguiam um objetivo científico específico. Resumiam-se no que acabei de enunciar acima. Acontece que em 1848 veio-me o pedido da parte do Pe. Friederichs, nesse meio tempo transferido para Porto Alegre, para que colecionasse líquenes pois pretendia especializar-se nessa categoria taxonômica. Aceitei o pedido e nos dois últimos anos do ginásio em Salvador do Sul aproveitei minhas incursões na mata virgem para coletar o maior número possível de espécies de líquenes. Não guardei na memória o número exato de quantos coletei e mandei para Porto Alegre. Não sei também onde foram parar depois que o Pe. Friderichs foi nomeado provincial e terminou especializando-se na doutrina e práticas espíritas. Desconfio que se encontrem em algum lugar no Instituto Anchietano de Pesquisas na Unisinos.

Preenchia também parte dos espaços livres entre as atividades rotineiras e obrigatórias e nos domingos e feriados dando uma mão ao Ir. Christ, enfermeiro do colégio e responsável pelo pomar e apiário, a pegar jararacas, reuni-las num viveiro especialmente construído e instalado com refúgios próprios para acomodá-las. Depois de capturada uma dezena ou mais as acomodávamos em caixas de madeira especialmente concebidas para essa finalidade fornecidas pelo Instituto Butantã e as enviávamos por trem para São Paulo. Os colonos vizinhos ao saberem do interesse por cobras venenosas nos avisavam e nos indicavam os refúgios e assim foi possível mandar um número considerável, o número exato não guardei na memória. Com certeza passaram de 100. O Butantã, como acabo de lembrar fornecia os equipamentos de captura e as caixas para o transporte e, como retribuição nos mandava ampolas de soro antiofídico. Uma parte ficava à disposição na enfermaria do Colégio para a eventualidade de um picada em alguém da casa, enquanto os excedentes costumavam ser entregues ao hospital mais próximo. Familiarizei-me de tal modo com as características de ação e reação das jararacas que, munido com uma vara imobilizava-as no chão na altura da nuca e depois as pegava com o polegar e o indicador como pinça, encostado nas mandíbulas e com a outra mão segurando o rabo, colocava-as num saco para levá-las para o viveiro. Praticamente todas as serpentes mandadas para o Butantã pertenciam à espécie “Bothrops jararaca” e não a Urutu-cruzeira - Botrhrops neuwiedi” mais comum na região de São Leopoldo, morros de Porto Alegre e mais ao sul nos campos, até os pampas argentinos e uruguaios. Raramente aparecia um cobra coral venenosa, mais frequentes eram as não venenosas. E para concluir esse tópico, rendo minhas homenagens ao Ir. Christ, um homem simples, leal, amigo e parceiro fiel, um religioso leigo da velha estirpe de irmãos leigos – dos “Bruder” – que cumpriram no anonimato a tarefa da pregação do Evangelho pelo exemplo de vida. Morreu com centenas de picadas de um enxame de abelhas “africanas”. Por isso, como toda aquela estirpe de homens que pelo trabalho e a oração deram suporte à obra missionária e civilizatória dos jesuítas no sul do Brasil, terá seu nome brilhando como estrela no firmamento por perpétuas eternidades”, conforme promete a Sagrada Escritura.

O reitor do Colégio Pe. Jorge Scholl alimentava uma autêntica veneração por araucárias. Resolveu reflorestar as encostas que haviam sido desmatadas pelos antigos donos da área, cobertas com uma vegetação secundária composta por arbustos, capim “santa fé” e exemplares dispersos de ingá, canela do mato e outras. Durante o ano de 1944 pôs em prática o projeto do plantio de araucárias. Para começar organizou um viveiro para criar as mudas pondo os pinhões a brotar em cubos de xaxim. Enquanto os pinhões brotavam e as mudas se desenvolviam, convocou um grupo de voluntários para abrir brechas encosta acima até encostar na mata virgem, distando entre em torno de 10 metros e preservando a vegetação nos intervalos. Tive o privilégio de fazer parte desse pelotão. Já lembrei mais acima que depois das duas horas de aula depois do meio dia uma hora e meia estava reservada para cuidar da manutenção e limpeza das dependências do Colégio e cuidar do pomar, das piscinas, etc. Aproveitávamos esse horário para cada tarde avançar mais uns bons metros na abertura e limpeza das brechas. Duas ou três vezes ao mês as aulas da tarde de um dia qualquer da semana eram suspensas para acelerar e completar o trabalho de abertura das brechas. Assim, em questão de pouco mais de meio ano estava tudo preparado para as mudas de araucária que, à essa altura, já mediam 10 ou mais centímetros e as agulhas suficientemente duras evitando que as formigas as prejudicassem. A transferência das mudas do viveiro para o lugar definitivo foi rápida. Nunca contei quantas realmente vingaram. Mas, passando hoje, 80 anos passados por Salvador do Sul, pode-se observar na encosta nos fundos dos casarões do antigo Colégio Santo Inácio, um bosque fechado de araucárias de 20 ou mais metros de altura e de meio metro para mais de diâmetro. Orgulho-me de que, lá naquela encosta deixei unhas amassadas, pés e mãos maltratados, braços arranhados com os espinhos da amora silvestre e o suor escorrendo pelo rosto, repondo pelo menos algumas centenas de exemplares de araucárias, dos milhões que a ambição furiosa dos madeireiros derrubaria no planalto no decorrer da década seguinte. Espero que os atuais donos daquela antiga propriedade dos jesuítas, não cometam o desatino para não dizer crime de mexer nos pinheiros daquela encosta emblemática.

Desde a remota infância animais e aves silvestres sempre ocuparam um bom espaço na minha imaginação. Já lembrei dos encontros com esse fantástico mundo dos seres vivos, ao descrever as caminhadas pelas trilhas da mata virgem do Colégio. Aproveito a ocasião para lembrar dois animais que sob o aspeto taxonómico não tinham nada a ver uma com o outro: a Jaguatirica e aranhas caranguejeiras. Certo dia, no ano de 1948 se não me falha a memória, apareceu um colono conhecido, cujas terras parcialmente cobertas de mata virgem, emendavam na mata do Colégio. Na sacola levava um filhote de jaguatirica encontrado perdido no mato enquanto caçava. Como eu era o responsável pelo museu e sabia do meu interesse por novidades, chamaram-me para conversar com aquele senhor. El sem a mínima intenção de ficar com o filhote de jaguatirica perguntou se me interessava. Não duvidei um segundo. Peguei o filhote e o levei para o museu, acomodei-o num canto. Ao rejeitar o leite que lhe ofereci conclui que estava desmamado. Desci para a adega da cozinha onde se guardavam os quartos de rezes e porcos e levei um pedaço de carne. Devorou com gosto. Dai em diante alimentei-o um bom tempo no museu, depois armei um cercado bem grande atrás de um galpão no fundo do pátio e lá a jaguatirica foi crescendo e se desenvolvendo sem problema. Durante a noite deixava a portinhola aberta e ela se embrenhava nas manchas de mato das redondezas para ao clarear do dia voltar ao seu refúgio. Certo dia uma tarântula entrou no cercado e a jaguatirica resolveu brincar com ela. E o óbvio aconteceu. A tarântula pulou no nariz do gato, cravou os dentes e em questão de meia hora minha protegida estava morta.

Sempre cultivei um certo fascínio por caranguejeiras. Não saberia definir bem o motivo. Aprendi a pegá-las com a mão sem machuca-las e sem irrita-las e deixava-as caminhar sobre a mão e subir pelo braço. Acontece que nas salas de estudo os estudantes dispunham de escrevaninhas com o tampo inclinado sobre o compartimento em que se guardava o material escolar e os livros de uso diário em sala de aula. Bem arrumado o material escolar, sobrava um bom espaço para guardar objetos de uso pessoal. Pois, resolvi instalar um esconderijo naquele espaço e acomodar uma enorme caranguejeira. Os meus colegas, principalmente meus vizinhos, não gostaram nada da ideia. Por um bom tempo nada aconteceu. Quando levantava o tampão para pegar os cadernos, livros e caneta ou lápis para fazer os temas, o máximo que acontecia era a aranha sair do seu esconderijo, e dar uma volta por cima dos livros e cadernos e voltar para o seu canto tranquilo. Para alimentá-la bastava um pedacinho de carne. Num dia desses de vento norte, calor abafado, pressão atmosférica baixa, prenúncio de chuva, ao levantar o tampo, a aranha sempre tão pacífica parecia enlouquecida. Saltou para fora, subiu na beirada da escrevaninha e jogou-se nas costas do vizinho da frente. Podem imaginar-se a confusão dentro daquela sala de estudos. Nosso supervisor, o “prefeito”, pulou do estrado no fundo da sala onde estava sentado na sua escrevaninha. O colega quando se deu conta da aranha deu salto e com isso ela caiu no chão, consegui pega-la e leva-la para fora. O “prefeito” que era um homem de bom senso apenas me proibiu abrigar outra aranha dessas na minha escrevaninha e ficou por isso. O cantinho da caranguejeira passou um pouco mais tarde a ser ocupado por uma lagartixa pacífica e totalmente inofensiva.

Da Enxada à Cátedra [ 23 ]

Atividades complementares.
No Museu.

Nas suas instituições de ensino de maior porte e importância dos jesuítas do sul do Brasil não podia faltar um Museu de História Natural. O primeiro deles foi montado no Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo a partir da década de 1870. Pelo que me consta foi o primeiro museu desse feitio no sul do País. Encontravam-se nele, principalmente exemplares da fauna e flora nativa da região a maioria extintos, só encontráveis hoje em áreas de preservação como o Guarita, nos parques dos aparados da Serra, ou então no Pantanal e na Amazônia. Expostos ao público ou como reforço para as aulas práticas das Ciências Naturais, podiam ser admirados exemplares empalhados de onça, puma, capivara, lobo guará, diversas espécies de veados, emas, coatis, jacarés, lagartos, aves das mais diversas espécies. Além dos animais maiores empalhados outros como serpentes venenosas ou não, rãs, sapos, lagartixas e outros répteis e anfíbios de menor porte foram preservados em formol e expostos em recipientes de vidro. O mais vistoso e singular dessa categoria de preservação foi um terneiro de duas cabeças preservado em formol numa grande redoma de vidro. Coleções de rochas e fósseis encontráveis na região, enfim, o museu concentrava toda a riqueza e diversidade da natureza mineral, vegetal e animal da região. Infelizmente esse museu foi uma das lamentáveis vítimas do incêndio que destruiu, em 1982, os prédios que ocupavam a quadra toda onde se ergue hoje a prefeitura de São Leopoldo.

Também o Colégio Santo Inácio não podia deixar de contar com um museu, porém, incomparavelmente mais modesto do que o de São Leopoldo. Em 1947 fui encarregado de cuidar do museu e ampliar e diversificar o seu acervo. Uma bela e rica coleção de coleópteros (besouros) e borboletas, devidamente classificada, ocupava três ou quatro mostruários de vidro. Num armário encostado na parede, com portas de vidro havia uma dúzia de frascos com serpentes, sapos e rãs conservados em formol e um número pequeno de pássaros empalhados. Assumi com muito interesse a responsabilidade pelo pequeno museu sob a orientação do Pe. Edwino Friderichs, professor de Ciências Naturais. Com ele aprendi as técnicas da taxidermia (empalhar animais). Na época não havia restrições legais à caça que fazia parte das modalidades e práticas de lazer das pessoas do interior em domingos e feriados. Com frequência vizinhos traziam algum gavião, ouriço, gambá, coati, pomba do mato, gato do mato, paca, cutia, raposa, etc., para serem empalhados. Foi assim que o pequeno museu em pouco tempo foi ampliando e diversificando o seu acervo.

Além de empalhar aves, mamíferos e répteis aprendi também a preparar e montar esqueletos de animais maiores. Lembro-me da epopeia para conseguir um esqueleto de cavalo. O primeiro desafio foi localizar um exemplar de preferência de raça apurada e sem defeitos na estrutura dos ossos e com a dentadura original completa e sem desgaste maior. Em resumo um animal sem defeitos e não velho demais e desgastado. Depois de algumas informações nas redondezas do colégio o Pe. Friderichs localizou um colono que comprava a troco de banana, como se dizia, cavalos de corrida “aposentados”, os engordava e sacrificava, misturando a carne com abóboras, batatas, chuchu e o que mais se possa imaginar para preparar um sopão para engordar porcos. No dia combinado o Pe. Friderichs, eu o irmão leigo Cláudio Leichtweis fomos de carroça de bois até a casa do dono do cavalo, distante uns 5 quilômetros do colégio. Como combinado o colono entregou-nos a carcaça sem pedir nada em compensação pelo trabalho que tivera para deixar os ossos sem um arranhão. Tenho certeza que o Pe. Friderichs, uma pessoa de uma sensibilidade como poucas que encontrei entre os jesuítas, deve ter deixado para o simpático e generoso colono, um mimo de não pouco valor e significado. Carregamos o espólio na carroça de bois e voltamos satisfeitos ao colégio. Acomodamos a carcaça do cavalo num tanque com água e cal. Depois de mais ou menos um mês coube-me o trabalho de limpar um por um as dezenas de ossos e ossinhos do esqueleto, dar-lhes um banho de água com sabão e secá-los e depois passar álcool. Concluída essa etapa os ossos foram levados até o recinto do museu para começar a montagem do esqueleto. O trabalho foi executado em parceria com meu colega de internato Carlos Roberto Cirne Lima, dois anos na minha frente, cursando o último ano do ginásio. Mais abaixo volto a falar em outro contexto desse filho de um dos mais conceituados juristas da época, o Dr. Rui Cirne Lima, professor de Direito na então Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, hoje UFRGS, dono de estâncias de gado, diretor da Previdência do Sul. Juntando osso por osso o esqueleto foi tomando forma e em questão de dois ou três meses ficou concluído. Depois da transferência do internato para o Colégio Catarinense, o museu ficou fechado até a década de 1980, quando suas peças ainda preservadas ou passíveis de restauração, foram transferidas para as dependências do Curso de Biologia da Unisinos. Montei mais dois outros esqueletos que também devem encontrar-se na Unisinos: um de cachorro e outro de um gato do mato. Além dos esqueletos reuni alguns crânios entre eles de gambá, cachorro, gato, cavalo e outros que não fixei na memória. Um enorme crânio de boi com os chifres medindo perto de um metro, pendurada na parede, vigiava do alto o conjunto do museu. Nos 3 anos que o museu ficou sob minha responsabilidade passei a maior parte do tempo livre, especialmente em fins de semana e feriados naquele recinto, ocupado com a preservação daquelas criaturas que em momentos passados fizeram parte da sinfonia sem igual da natureza de Deus. Vejo-me obrigado confessar que lidar com insetos, anfíbios, répteis, mamíferos e aves conservados em redomas de vidro com formol, presos com alfinetes em mostruários, empalhados ou seus esqueletos sem faltar uma unha ou um dente, não passam da administração de um cemitério. Por mais útil que sejam ou possam parecer para a ciência ou como instrumentos auxiliares para a educação, os museus, falo dos de História Natural, carecem o que, em última análise faz com os espécimes expostos façam sentido: A Vida. E a vida que em algum momento da passado os fez seres vivos e figurantes importantes, para não dizer indispensáveis para a perpetuação da história da vida na terra, deve ser procurada onde os sobreviventes e descendentes das múmias dos museus continuam a cumprir a tarefa que que lhes cabe na história da vida. A dedicação em tempo integral a um museu, em especial ao um museu de História Natural, implica no risco de afetar seriamente o que o homem tem de mais humano: a sensibilidade, a afetividade, as emoções. De tanto conviver e lidar com múmias, cadáveres e esqueletos, embora de animais, o Humano do museólogo –“ seine Menschlichkeit, como definem os alemães, corre o risco de sofrer arranhões com reflexos sobre a personalidade e suas relações com as demais pessoas.

Da Enxada à Cátedra [ 22 ]

A programação acadêmica.

O subtítulo pode parecer pomposo demais para introduzir a reflexão sobre a minha formação no nível que hoje corresponde ao fundamental e médio. Na época usavam-se os conceitos “Primário” e “Ginasial”. Começo pelo “Primário”. Acima já lembrei que fui classificado para começar meus estudos no terceiro ano do primário. Concluído esse ano, passei para o quarto ano do primário eno fim prestei o exame “de admissão” para o ginásio. Tive que provar conhecimentos básicos de português: gramática, leitura, conversação, aritmética, cálculo; história e geografia. Passado no exame de admissão fui matriculado no primeiro ano do ginásio para o ano de 1944.

Com o primeiro ano do ginásio começou para valer a formação no nível médio. Não vou me demorar em muitos detalhes sobre o método nem os conteúdos para não me tornar demasiadamente longo. No primeiro ano deparei-me com a grande novidade da iniciação na língua latina, que abriria progressivamente as portas para me apropriar da cultura clássica e, mais tarde, seria a língua de comunicação diária ao entrar na Ordem dos jesuítas além de as aulas de Filosofia e Teologia serem ministradas em latim. Para começar tínhamos todos os dias aulas de latim, começando pelas conjugações e declinações, gramática, leitura, redação, conversação e uma imersão para valer na literatura e o estudo dos principais poetas, escritores, oradores e características da cultura greco-romana. Paralelo em importância ao latim caminhava o estudo da língua portuguesa: gramática, ortografia, redação, literatura portuguesa e brasileira, os principais representantes das duas vertentes. O latim e o português constituíram-se, ao lado da aritmética e matemática, por assim dizer, no tripé que garantia a solidez para toda a formação ginasial prevista no currículo. Por isso ocupavam o maior espaço em número de aulas em todos os cinco anos do ginásio. Paralelo ao português, o latim e a matemática caminhava o aprofundamento na História e Geografia Universal e do Brasil. Aliás, e só por curiosidade, a História e a Geografia foram, até aqui, sempre as minhas disciplinas favoritas às quais somar-se-iam, na terceira série, as Ciências Naturais. A novidade no currículo previsto para o segundo ano foi a língua francesa e a Álgebra na rubrica da matemática. Na terceira série entraram duas novas disciplinas: a Língua Inglesa e as Ciências Naturais e na Matemática a Geometria. Mais abaixo vou detalhar porque as Ciências Naturais ocupariam um espaço privilegiado na minha formação acadêmica posterior a ponto de me bacharelar em História Natural e Geologia pela UFRGS em 1959. Na quarta série além de um aprofundamento de todas as disciplinas já em andamento, a matemática avançou mais um grau com a trigonometria e logaritmos e a novidade foi a língua alemã oferecida para os descendentes dos alemães que falavam o dialeto ou, como eu, foram ainda alfabetizados naquela língua. No quinto e último ano a iniciação à língua grega veio a ser a última disciplina completando o currículo do ginásio. Com a disponibilidade de apenas um ano não foi possível passar muito da familiarização com o alfabeto, noções básicas de gramática e a leitura e compreensão de textos mais simples. Condensado em poucas páginas foi essa a minha formação no nível médio. Na nomenclatura de hoje diríamos: “fundamental e médio”. Acontece que essa formação não terminou resumindo-se ao cumprimento formal do currículo. Paralelamente a ele e nas circunstâncias em que aconteceu, na década de 1940, proporcionou-me um enriquecimento da minha formação integral que ainda hoje não consigo dimensionar em toda a sua amplitude e significado.

Em primeiro lugar não posso deixar de destacar o que para mim significou para o resto da minha vida aquele período de internato entre 1942 e 1949. Ao detalhá-lo mais acima pode dar a impressão que vivíamos num quartel, pior talvez, num presídio. É verdade que os internatos da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, são hoje vistos pelos educadores encantados por um Paulo Freire, Pyaget, Noam Chomski e outras vacas sagradas de plantão da pedagogia, como fantasmas de uma formação humana que merece todos os adjetivos, menos o de politicamente corretos e alinhados com a cultura errática, despida dos valores mais elementares do humano no homem, empurrados criminosamente goela abaixo às gerações do começo do terceiro milênio. Podem classificar-me de romântico saudosista, de fóssil vivo, de dinossauro da academia ou qualquer outro adjetivo que acharem para me definir. Nada disso me importa. Com mais de nove décadas de vida no lombo, seis décadas de magistério no meu currículo, 4 bacharelados, uma licenciatura, uma livre docência, um doutorado em filosofia, um pós doutorado em Paris, dois títulos de professor titular emérito, um pela UFRGS e outro pela Unisinos, não tenho nenhuma dúvida em creditar em grande parte essa trajetória à disciplina “prussiana”, ao currículo acadêmico e ao método pedagógico da “Ratio Studiorum” dos jesuítas, aplicado no internato do Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. A outra parte cabe à educação que minha família e a escolinha primária do Morro da Manteiga me proporcionaram.

Acontece que o Colégio Santo Inácio oferecia espaço para complementar a formação obrigatória. Bastava interessar-se e a direção da instituição não só autorizava com incentivava iniciativas ao gosto de cada estudante. Foi assim que acumulei e enriqueci minha formação formal com atividades complementares cujo significado não tenho como avaliar. Só sei que naquele caldo de experiências e oportunidades aproveitadas, encontro as raízes das quais se alimentaram em grande parte as etapas posteriores da minha formação e a atividade acadêmica assim como a minha personalidade. A seguir detalho algumas delas.