Também o Colégio Santo Inácio não podia deixar de contar com um museu, porém, incomparavelmente mais modesto do que o de São Leopoldo. Em 1947 fui encarregado de cuidar do museu e ampliar e diversificar o seu acervo. Uma bela e rica coleção de coleópteros (besouros) e borboletas, devidamente classificada, ocupava três ou quatro mostruários de vidro. Num armário encostado na parede, com portas de vidro havia uma dúzia de frascos com serpentes, sapos e rãs conservados em formol e um número pequeno de pássaros empalhados. Assumi com muito interesse a responsabilidade pelo pequeno museu sob a orientação do Pe. Edwino Friderichs, professor de Ciências Naturais. Com ele aprendi as técnicas da taxidermia (empalhar animais). Na época não havia restrições legais à caça que fazia parte das modalidades e práticas de lazer das pessoas do interior em domingos e feriados. Com frequência vizinhos traziam algum gavião, ouriço, gambá, coati, pomba do mato, gato do mato, paca, cutia, raposa, etc., para serem empalhados. Foi assim que o pequeno museu em pouco tempo foi ampliando e diversificando o seu acervo.
Além de empalhar aves, mamíferos e répteis aprendi também a preparar e montar esqueletos de animais maiores. Lembro-me da epopeia para conseguir um esqueleto de cavalo. O primeiro desafio foi localizar um exemplar de preferência de raça apurada e sem defeitos na estrutura dos ossos e com a dentadura original completa e sem desgaste maior. Em resumo um animal sem defeitos e não velho demais e desgastado. Depois de algumas informações nas redondezas do colégio o Pe. Friderichs localizou um colono que comprava a troco de banana, como se dizia, cavalos de corrida “aposentados”, os engordava e sacrificava, misturando a carne com abóboras, batatas, chuchu e o que mais se possa imaginar para preparar um sopão para engordar porcos. No dia combinado o Pe. Friderichs, eu o irmão leigo Cláudio Leichtweis fomos de carroça de bois até a casa do dono do cavalo, distante uns 5 quilômetros do colégio. Como combinado o colono entregou-nos a carcaça sem pedir nada em compensação pelo trabalho que tivera para deixar os ossos sem um arranhão. Tenho certeza que o Pe. Friderichs, uma pessoa de uma sensibilidade como poucas que encontrei entre os jesuítas, deve ter deixado para o simpático e generoso colono, um mimo de não pouco valor e significado. Carregamos o espólio na carroça de bois e voltamos satisfeitos ao colégio. Acomodamos a carcaça do cavalo num tanque com água e cal. Depois de mais ou menos um mês coube-me o trabalho de limpar um por um as dezenas de ossos e ossinhos do esqueleto, dar-lhes um banho de água com sabão e secá-los e depois passar álcool. Concluída essa etapa os ossos foram levados até o recinto do museu para começar a montagem do esqueleto. O trabalho foi executado em parceria com meu colega de internato Carlos Roberto Cirne Lima, dois anos na minha frente, cursando o último ano do ginásio. Mais abaixo volto a falar em outro contexto desse filho de um dos mais conceituados juristas da época, o Dr. Rui Cirne Lima, professor de Direito na então Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, hoje UFRGS, dono de estâncias de gado, diretor da Previdência do Sul. Juntando osso por osso o esqueleto foi tomando forma e em questão de dois ou três meses ficou concluído. Depois da transferência do internato para o Colégio Catarinense, o museu ficou fechado até a década de 1980, quando suas peças ainda preservadas ou passíveis de restauração, foram transferidas para as dependências do Curso de Biologia da Unisinos. Montei mais dois outros esqueletos que também devem encontrar-se na Unisinos: um de cachorro e outro de um gato do mato. Além dos esqueletos reuni alguns crânios entre eles de gambá, cachorro, gato, cavalo e outros que não fixei na memória. Um enorme crânio de boi com os chifres medindo perto de um metro, pendurada na parede, vigiava do alto o conjunto do museu. Nos 3 anos que o museu ficou sob minha responsabilidade passei a maior parte do tempo livre, especialmente em fins de semana e feriados naquele recinto, ocupado com a preservação daquelas criaturas que em momentos passados fizeram parte da sinfonia sem igual da natureza de Deus. Vejo-me obrigado confessar que lidar com insetos, anfíbios, répteis, mamíferos e aves conservados em redomas de vidro com formol, presos com alfinetes em mostruários, empalhados ou seus esqueletos sem faltar uma unha ou um dente, não passam da administração de um cemitério. Por mais útil que sejam ou possam parecer para a ciência ou como instrumentos auxiliares para a educação, os museus, falo dos de História Natural, carecem o que, em última análise faz com os espécimes expostos façam sentido: A Vida. E a vida que em algum momento da passado os fez seres vivos e figurantes importantes, para não dizer indispensáveis para a perpetuação da história da vida na terra, deve ser procurada onde os sobreviventes e descendentes das múmias dos museus continuam a cumprir a tarefa que que lhes cabe na história da vida. A dedicação em tempo integral a um museu, em especial ao um museu de História Natural, implica no risco de afetar seriamente o que o homem tem de mais humano: a sensibilidade, a afetividade, as emoções. De tanto conviver e lidar com múmias, cadáveres e esqueletos, embora de animais, o Humano do museólogo –“ seine Menschlichkeit”, como definem os alemães, corre o risco de sofrer arranhões com reflexos sobre a personalidade e suas relações com as demais pessoas.