[ Reflexões ]

No varejo a mesma nostalgia motiva os estressados seres humanos, triturados pela zoeira e dos congestionamentos das metrópoles, a buscar algumas horas ou momentos de paz, na penumbra silenciosa, porém, eloquente das árvores, povoadas de pássaros executando sons, músicas e sinfonias que, desde as longínquas brumas dos tempos passados, vem embalando os sonhos, os momentos tristes e sofridos e as horas de alegria, dos nossos antepassados de vinte, cinquenta, cem e mais mil anos passados. É na tentativa de saborear pelo menos por algumas horas o prazer de reencontra-se com o cenário que tornou possível a caminhada da espécie humana através dos tempos, que o homem esmagado pelo demiurgo da metrópole, procura em fins de semana um sitio, acampa aos pés de uma cascata, de mochila nas costas percorre trilhas nas florestas, ou fica horas e mais horas escutando a marulhar da água de um arroio de montanha, respirando o ar leve do planalto, contemplando as araucárias várias vezes seculares, ou fica a imaginar-se o “Alguém” quem mora nos abismos, o “Alguém” que faz de eterna sentinela nos mirantes sobre os penhascos.

A partir das constatações acima Edward Wilson sugere que a familiarização da criança com a natureza comece o mais cedo possível a ser estimulada observando o seu entorno natural até nas suas últimas minúcias. Para ele, os fundamentos para a construção de um conhecimento sólido, deve começar o mais cedo possível. E o primeiro passo consiste em despertar e estimular o interesse pelo mundo natural, que todo o ser humano, pela sua própria natureza, carrega consigo desde que veio mundo. 

A mente da criança se abre muito cedo para a natureza viva. Se for estimulada, ela se desdobra em estágios que vão fortalecendo seus laços com as formas de vida não humanas. O cérebro é programado para o que os psicólogos chamam de “aprendizado programado”: nós nos lembramos facilmente de algumas experiências. Em contraste, somos preparados para evitar e aprender outras experiências, ou então aprendê-las e depois evitá-las. Por exemplo, flores e borboletas sim; aranhas e cobras, não. Edward Wilson. 2006. p. 161)

O autor chama também a atenção de que o despertar das habilidades cognitivas na criança a partir da observação da natureza, consolida categorias mentais que encontram aplicação prática em outros departamentos da sociedade humana. A habilidade de classificar categorias naturais como plantas, animais, rochas, sedimentos, fontes, e mais ainda aprender a reconhecer por ex., as árvores de um bosque, os pássaros que vivem nele, os insetos que polinizam as flores, etc., organizam a mente e disciplinam seu uso também em outras atividades. Mesmo que se possa afirmar que toda a criança é um naturalista pela sua própria natureza, um número insignificante irá dedicar-se a algum campo das Ciências Naturais como profissão. Acontece, porém, que o treinamento e a disciplina mental adquiridos na infância e na adolescência, facilitam-lhe na futura profissão por ex., a dar importância a uma boa organização entre os diversos produtos que saem de uma indústria ou são postos à venda numa loja. Concluindo acrescenta: “É possível que o talento para reconhecer padrões recorrentes que identificamos nos artistas, poetas, cientistas sociais, cientistas naturais, seja construído sobre as habilidades fundamentais de percepções que encontramos na inteligência naturalista”. (cf. Wilson. 2006. p. 160)

Quem, como nenhum outro, percebeu o alcance do conhecimento intuitivo como instrumento pedagógico foi Pestalozzi, conterrâneo e contemporâneo de Rousseau. Ele fez da intuição, ou se preferirmos da percepção sensorial, a razão de ser, a base da sua filosofia educacional e do seu método pedagógico. A aplicação prática dos pressupostos pedagógicos de Pestalozzi veio a ser adotada na condição de método oficial para as escolas da Prússia. Desde meados do século XVIII os reis da Prússia foram investindo na educação das novas gerações. Entendiam que somente dessa maneira seria possível formar em grande número pessoas úteis ao Estado e à comunidade nacional, como cidadãos conscientes e comprometidos, como funcionários eficientes e como soldados leais. Um século mais tarde todas as crianças entre os seis e os quinze anos eram obrigadas a frequentar a escola. O resultado não deixa dúvidas. Em 1870 a porcentagem de analfabetos entre os meninos de mais de dez anos não passava dos dez por cento e das meninas de quinze por cento. Em não poucos lugares não passava dos cinco por cento. Somada à política oficial de por meio de dispositivos legais implantar a obrigatoriedade do ensino entre os seis e os quinze anos, foi de importância fundamental na estrutura educacional. Os povoados mais insignificantes contavam com uma escola primária e cada cidade um pouco mais importante oferecia um ginásio. O interesse pela educação fazia parte das preocupações, desde os mais altos funcionários, empresários, comerciantes, profissionais liberais, donas de casa e o povo em geral. Investiam tempo e dinheiro em parceria com o governo no esforço de erradicar a ignorância do povo e aprimorar cada vez mais a filosofia e os métodos da educação. 

E o esforço concentrou-se exatamente no ponto mais sensível, isto é, no pressuposto teórico e metodológico do sistema escolar que pode ser definido como “prussiano-pestalozziano”.  Fundamentou-se na doutrina de Rousseau de que a educação é um processo; que esse processo deve fluir livremente da natureza da criança que é boa por natureza; que cada uma é peculiar quanto à sua individualidade. Libânio destacou como ideias mais importantes de Rousseau:

1) A preparação da criança para a vida futura deve basear-se no estudo das coisas que correspondem às suas necessidades e interesses atuais. Antes de ensinar as ciências, elas precisam ser levadas a despertar o gosto pelo estudo. Os verdadeiros professores são a natureza, a experiência e o sentimento. O contato da criança com o mundo que a rodeia é que desperta o interesse e suas potencialidades naturais. 
2) A educação é um processo natural, ela se fundamenta no desenvolvimento interno do aluno. As crianças são boas por natureza, elas têm uma tendência natural de se desenvolverem. (Libâneo, J.   C. Didática. São Paulo: Cortez, 1991)

Não é aqui o lugar para detalhar a proposta pedagógica e o método didático de Pestalozzi, mas chamar a atenção para a importância do conhecimento construído a partir dos dados, ou, se preferirmos, da matéria prima que é oferecida pela via sensorial-intuitiva. Entre as perspectivas pelas quais seu significado pode ser apreciado, destacamos.

 Percebe-se um paralelismo sintomático, uma analogia que faz pensar, entre a construção do conhecimento de uma criança e o conhecimento elaborado pela humanidade nos assim chamada fase “pré-científica e pré-racionalista”, ou se preferirmos, antes de entrar em ação método sintético dedutivo e o analítico indutivo. Os sentidos captam as informações que são processadas e elaboradas intuitivamente. Os significados que lhes são atribuídos, o papel que lhes cabe cumprir no quotidiano das comunidades humanas e dos indivíduos, são determinados pela tradição cultural e pelas idiossincrasias individuais. Propomos como exemplo a astrologia. A impressão que os astros e a coreografia celeste deixam no homem que contempla o firmamento noturno sem nuvens, representam animais, personagens imaginários, eventos misteriosos, presságios, infortúnios e muito mais do que o espetáculo noturno é capaz de despertar na imaginação. Nesse processo de aprendizagem e de elaboração intuitiva e sensorial das informações captadas pelos sentidos, adquirem forma os muitos corpos de conhecimento construídos durante séculos e milênios. Corresponde à fase, diria, infantil, na qual tanto a criança como também a humanidade, atribuem personalidade, significado, simbologia ao mundo que entra pela janela dos sentidos. É nessa fase que se consolidam os elementos qualitativos das culturas expressos nas crenças, nas religiões, nos costumes, nos hábitos, nos valores sociais, éticos e morais. Enfim é nessa fase que acontece a educação e a formação da personalidade do ser humano. E é nessa fase, nesse patamar, também que se consolidam as linhas mestras das tradições culturais. E na analogia entre a fase “infantil”, a fase do aprendizado e da colocação dos fundamentos da personalidade pela percepção sensorial e a intuição na educação, tanto de uma criança, quanto os fundamentos das culturas, um elemento determinante merece atenção. Assim como a forma e, principalmente, a consistência do conteúdo assimilado pela criança determinam como o “Leitmotiv, como o Norte para o resto da vida, assim também as conquistas dos povos na sua fase “infantil”, continuam repercutindo de alguma forma até hoje. Representam o perene que perpassa o transitório da história da humanidade. Voltamos a chamar a atenção ao Horóscopo que continua, mais do que nunca, gozar de público e popularidade. O conhecimento adquirido via sensorial-intuitiva perpassa a história individual e a história coletiva como um “som subliminar e a ressonância que desperta” faz com que resulte numa sinfonia harmônica ou numa cacofonia desafinada. Foi essa, sem dúvida, a razão de ser porque a educação infantil e fundamental tinham em vista o desabrochar das potencialidades inatas na criança, pondo-a por meio dos sentidos em contato com o mundo em que vive. A proposta educacional e curricular, ditada pelo fato de a criança “ser boa por natureza” e ser levada pela “tendência natural de desenvolver-se”, foi, por isso, concebida como facilitadora para despertar e desenvolver as qualidades e potenciais inatos. O resultado prático da educação forma um cidadão útil à comunidade e um cidadão consciente das suas obrigações e direitos em relação à família, à comunidade local, regional e ao Estado. Ao educador, mestre ou professor cabe a tarefa de tornar o aprendizado o mais espontâneo e o mais amplo e completo possível. Os resultados dessa filosofia e prática educacional concebida e popularizada pela Prússia, foram tão espetaculares que foram sendo copiados e implantados em outros países, também fora da Europa. Forneceu, por ex., a base teórico-metodológica da proposta pedagógica executada nas escolas comunitárias teuto-brasileiras no sul do Brasil até 1940. Para maiores detalhes sobre essa escola recomendo os dois volumes que publiquei na década de 1990: “A escola Teuto-Brasileira Católica e “Escola Comunitária Teuto-Brasileira Católica – Associação dos Professores e Escola Normal”.

Uma vez consolidado o conhecimento obtido pela via sensorial-intuitiva e, paralelamente, definidos os traços fundamentais da personalidade, a criança e o adolescente estava em condições de avançar na construção do conhecimento, recorrendo a “dedução e a indução”. Seguia então a fase em que o educando apropriava-se                                                                                                                                                                                                                                                                                                         dos instrumentos indispensáveis para movimentar-se com sucesso nos campos das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas e das Artes e Letras. O currículo punha-o em contato com a matemática, a física, a química, a história natural, a geografia, as línguas clássicas e modernas, as artes, a filosofia. Só depois de ter-se familiarizado com esse vasto mundo de conhecimentos de cunho geral e com os respectivos métodos e ferramentas, oferecidos nos famosos “gymnasia”, o jovem partia para a especialização e ou profissionalização: Direito, medicina, engenharia, filosofia, línguas, literatura, biologia, botânica, zoologia, história, geografia, etc., em escolas técnicas, politécnicas e universidades convencionais. As crianças, candidatas a futuras produtoras de conhecimento, encontravam escolas e mestres que se valiam do potencial inato como ponto de partida para a educação. Desenvolvê-lo ao máximo despertando e aperfeiçoando ao máximo possível a percepção sensorial aliada à intuição, resumia a tarefa das escolas elementares e dos seus mestres. Superada essa etapa o esforço concentrava-se no aparelhamento do adolescente e do jovem com as ferramentas indispensáveis para enfrentar uma futura especialização acadêmica ou profissional, oferecidas por uma formação a nível genérico nos “gymnasia”. Nas duas fases iniciais a que nos acabamos de referir, a preocupação com a futura profissão dos alunos não entrava como fator, a não ser muito marginal e secundário, na proposta e execução do currículo. O que decidia é o fato de que o egresso dos “gymnasia” estivesse em condições de movimentar-se com desenvoltura na sociedade em que deveria atuar; tivesse consolidado uma personalidade que se rege por princípios e valores pessoais, sociais e éticos sólidos e coerentes; e que, por isso mesmo seja um membro útil à sua comunidade e um cidadão comprometido com o Estado, fosse  nas mais diversas eventualidades. A formação especializada só depois de vencidas as duas etapas anteriores. Engenheiros, médicos, advogados e juristas, políticos, economistas, pesquisadores especializados nas mais diversas áreas do conhecimento, acadêmicos, filósofos, teólogos, todos compartilham da base comum que lhes moldou a personalidade e as bases do conhecimento. Esse fato faz com que um médico esteja em condições de dialogar com um historiador, um filósofo ou um artista; um filósofo ou teólogo tenha condições de entender-se com um geneticista ou um físico; de um jurista ou economista analisar com proveito questões que importam em administração, com sociólogos, antropólogos, médicos, ...; os docentes e pesquisadores das universidades se darem conta de que a qualidade dos seus esforços têm tudo a ver com a troca dos resultados e, principalmente, com uma sincera e efetiva cooperação e colaboração interdisciplinar. 

[ Reflexões ]

A intuição

A intuição teve em Jean Jacques Rousseau a sua reabilitação como forma legítima de conhecimento. A percepção imediata das realidades naturais pelos sentidos resulta na construção informal e espontânea dos corpos de conhecimento que subjazem às mais diversas culturas. Com sua autoridade incontestável o grande filósofo da modernidade, deixou claro de que o homem busca a matéria prima do conhecimento no mundo ambiente em que vive e apropria-se dela por meio dos sentidos. A forma peculiar como essas percepções são percebidas e elaboradas depende da natureza de cada uma delas, do entorno cultural em que é recebida e da maneira única pela qual é elaborada pelas mentes individuais. Rousseau   intuiu o tamanho do potencial prático embutido nessa maneira de conceber a gênese do conhecimento. E o valor prático, inovador e revolucionário encontra-se exatamente no plano mais sensível e mais decisivo da vida individual e coletiva do homem: na Educação. 

A importância em começar a educação das crianças incentivando-as a entrar em contato com o maior número possível de estímulos vindos das mais diversas realidades que se encontram no seu entorno ambiental, tem, no presente, em Edward Wilson um dos seus propositores entusiastas de maior peso.  Com o nome consagrado entre as maiores autoridades em entomologia, é óbvio que suas sugestões sobre a educação de crianças tivessem como cenário privilegiado a “História Natural”. Sim, o velho e, por muitos desprezado e rejeitado, conceito de “História Natural” que para Wilson confere razão de ser e consistência a qualquer projeto ou iniciativa na pesquisa científica. Em outro momento já tivemos ocasião de destacar que para ele a “Natureza é um fato objetivo” e, portanto, tem uma “História”, uma “História Natural” também “Objetiva”. Não se trata apenas de uma cosmovisão construída a partir dos dados oferecidos por um momento determinado das pesquisas científicas. No capítulo 15 do seu livro “A Criação”, Wilson demorou-se em esboçar toda uma proposta pedagógica, em primeiro lugar destinada para a educação da criança a partir da natureza e numa imersão existencial progressiva nesse universo de surpresas sem conta, que vem a ser “mãe e pátria” do homem.  Mas voltemos a Edward Wilson. Apresenta sua proposta pedagógica com as palavras. 

A ascensão da natureza começa na infância, portanto o ideal é que a ciência da biologia   seja introduzida logo nos primeiros anos de vida. Toda a criança é um naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar, explorar novos territórios, buscar tesouros, examinar a geografia, descobrir novos mundos – tudo isso está presente em seu cerne mais íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as crianças foram criadas em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais silvestres. (Wilson, 2008, p. 158)

Wilson demora-se um pouco para chamar a atenção de que as raízes remotas do conhecimento devem ser procuradas entre os caçadores e coletores do paleolítico. Munidos com ferramentas as mais simples e rudimentares que se possam imaginar, a sobrevivência acontecia numa dependência total das condições ambientais. Valendo-se dos cinco sentidos como janelas, como pontes de contato com o meio ambiente, foi obtendo as informações necessárias para a sobrevivência. Orientado pelos instintos, instrumentalizados pela intuição e os resultados postos à disposição da inteligência reflexa, o homem foi colocando os fundamentos do conhecimento. A partir daí, somando observação a observação, experiência a experiência, intuição a intuição, explicação a explicação, resposta a resposta, consolidaram-se numa velocidade geométrica os corpos de conhecimento entre os grupos humanos que, ao mesmo tempo dispersavam-se pelas mais diversas regiões  disponíveis. Não se pode esquecer que em paralelo e em estreita interdependência e mútua emulação com o instinto, a intuição e a reflexão, aconteceu a descoberta, a diversificação e aperfeiçoamento de instrumentos. Do primitivo instrumento multifuncional, porém, pouco eficiente “machado de punho”, evoluiu, durante dezenas e centenas de milhares de anos, um arsenal de ferramentas e instrumentos líticos especializados: instrumentos para cortar, cavar, desbastar, arremessar, para a defesa, tirar a pele de animais, separar a carne dos ossos. Entre esse arsenal de pedra lascada merece destaque a infinita variedade de pontas de flecha, facas e punhais de vidro vulcânico alguns de proporções fora de comum, cujo acabamento exigiu técnicas refinadas de lascamento. Explica-se que entre os vestígios materiais que acompanharam o homem durante todo o paleolítico, predominem os artefatos de pedra. Pela sua própria natureza são muito mais duráveis e resistentes à ação do tempo do que qualquer outra matéria prima. Pelo fácil manuseio, disponibilidade em qualquer lugar, a versatilidade para usos e utilidades múltiplas, para muitas das quais a pedra, o sílex ou a obsidiana simplesmente não entravam em questão, a opção óbvia foi a madeira, o osso, o chifrem dentes, conchas e por aí vai. Muito mais perecíveis do que o sílex ou o vidro vulcânico, aparecem só bem mais tarde. 

A sobrevivência e o sucesso histórico do homem do paleolítico, portanto, até menos de 30.000 anos, dependia inteiramente dos seus instintos, sua intuição e sua inteligência reflexa, instrumentados por um complexo, variado e multifuncional aparato de tecnologias, tornadas práticas em matérias primas imediatamente disponíveis. Por todos os séculos, milênios, centenas de milênios que o paleolítico se prolongou, a humanidade vivia na mais completa simbiose com a natureza, na forma e modalidade própria de cada região geográfica. O grande salto veio por volta dos quinze a vinte mil anos atrás. Darci Ribeiro chamou-o de “Revolução dos Alimentos” que tem na agricultura e na domesticação e criação de animais seu fator dinâmico mais determinante. Mas não é só nessas duas conquistas. Ela é reforçada por outras que foram de uma importância difícil de ser dimensionada. Entre elas destacam-se o uso universal do fogo, a descoberta e a utilidade de metais “in natura”, como o cobre e o estanho, o ouro e a prata. A amálgama do cobre e do estanho foi uma das descobertas, sem dúvida mais importantes do período da Revolução dos Alimentos. O homem não só aperfeiçoou matérias primas disponíveis no seu entorno, como deu início a tecnologias que combinam as qualidades de matérias primas diversas obtendo ferramentas, utensílios e armas sempre mais vez mais sofisticados, diversificados, especializados e eficientes. Entre as tecnologias que acompanharam, implementaram e aperfeiçoaram a Revolução Agropastoril soma-se a fundição de ferro, técnicas de irrigação, seleção e aprimoramento de plantas úteis, seleção e aprimoramento das raças de animais domesticados, o aproveitamento da energia eólica e hidráulica. Não é aqui a ocasião de detalharmos o potencial de progresso e de perspectivas de desenvolvimento que essa sucessão de conquistas proporcionaram ao homem do neolítico e, considerando bem, continuam sendo os fundamentos das civilizações também do começo do terceiro milênio. 

No contexto da reflexão que estamos fazendo sobre a construção do conhecimento, a intenção foi chamar a atenção para a superação das muitas amarras que prendiam o homem às condições do seu entorno geográfico. Se de um lado significou a conquista ao superar condicionamentos inibidores do progresso do homem, de outro representou um afastamento sempre maior do contato com a natureza e seus estímulos telúricos. A distância alcançou um nível tal nos grandes centros urbanos que os homens vivem num mundo fabricado artificialmente ao ponto de que o lar, o berço original foi esquecido quase por completo. Mas, conforme observa Edward Wilson,

Mesmo assim, os instintos ancestrais continuam vivos dentro de nós. Eles se expressam na arte, nos mitos e na religião, nos parques e nos jardins, nos esportes da caça e da pesca, tão estranhos (pensando bem). Os americanos passam mais tempo nos jardins zoológicos do que em eventos esportivos profissionais, e ainda mais tempo em áreas protegidas dos parques nacionais, cada vez mais abarrotados de visitantes. A recreação nas florestas nacionais e reservas naturais – isto é, nas partes que permanecem intactas – gera uma renda de mais de vinte bilhões de dólares anuais ao Produto Interno Bruto do país. A televisão e o cinema do mundo industrializado estão saturados de imagens da Natureza virgem. Um símbolo de riqueza pessoal é a casa de campo, tipicamente localizada em um ambiente pastoral ou natural. Ela serve como refúgio para quem deseja encontrar paz de espírito e como ponto de retorno a algo que foi perdido, mas não esquecido. (Edward Wilson. 2006. p. 159)

Quem expressou da forma mais completa o fato de a natureza constituir-se na fonte, no manancial que irriga os sentidos e, a partir das impressões sensoriais, estimula a intuição e a reflexão, fornece os dados para fundamentar a ciência, a filosofia, a teologia e termina na Arte, em suas expressões mais sublimes, foi o Pe. Rambo.

A natureza de certo age sobre todos os sentidos a modo de arte musical, pictórica e espacial, a saber, a água em todas as suas formas de mar-oceano, de rio, de lago, de fonte, nuvens e gelo; a terra firme em todas as suas configurações de ilha, montanha, planície e a vegetação em todas as suas modificações de selva ou mata, de relva, estepe e pântano. Dessas partes componentes, estruturam-se em muitas combinações as paisagens predominantes, mas elas também se repetem no pequeno e no mínimo. Pode falar-se, outrossim, de direções ou correntes artísticas e de estilo da Natureza, ligadas ao tempo.                                                              Significativamente, elas valem tanto mais quanto mais próximo se acha o meio de representação. (Aparados da Serra – na trilha do P. Rambo. 2007. p. 19)

Mesmo nos ambientes urbanos onde a artificialização e o consequente distanciamento do mundo natural alcançou um ponto extremo, persiste uma espécie de nostalgia atávica, uma consciência coletiva nem tão adormecida, dos tempos em que o homem do paleolítico andava de pés descalços, pelas florestas, savanas, montanhas e planícies. Reencontrar-se com esse passado remoto e, contudo, tão presente, é um desejo, para não dizer instinto, que se faz valer também no homem que nasceu numa selva de arranha-céus e respira de dia e de noite o odor do asfalto. Creio que não é temerário afirmar que é exatamente nessa atmosfera de artificialidade, que se faz notar com crescente vigor a nostalgia da volta ao paraíso perdido mas não esquecido, pelo menos para usufruir pequenos intervalos de paz. Encontramos aqui, salvo melhor explicação, a resposta ou as respostas para uma série de fenômenos e movimentos que se tornaram evidentes depois da Segunda Grande Guerra e que acompanham o fenômeno da urbanização e se tornam cada vez mais comuns, na medida em que o homem do campo se transfere para os espaços das grandes cidades, metrópoles e áreas metropolitanas. O primeiro deles acontece a nível macro sob rótulos como salvemos o planeta terra, salvemos a biodiversidade, salvemos as florestas tropicais, salvemos as paisagens naturais, previnamos o aquecimento global, além de muitos outros rótulos. Na sua essência todos são manifestações comuns da natureza, ou se preferirmos, do “instinto” do homem que percebe que o chão em que estão fincadas suas raízes existenciais, está a perigo. Os alertas a respeito já se fazem ouvir, cá e lá, desde a segunda metade do século XIX. Cientistas, geógrafos, historiadores, filósofos, moralistas e teólogos ocuparam-se e ocupam-se cada vez mais com o assunto. A questão manteve-se, entretanto, a nível mais teórico e dela ocupavam-se intelectuais, cientistas e pensadores confinados em suas academias. A “questão ecológica”, como já afirmamos mais acima, baixou, entretanto,  ao nível dos interesses e preocupações das instituições responsáveis por traçar políticas públicas, cuidar da saúde pública, da condução da economia, do disciplinamento do uso do espaço, tanto rural quanto urbano, da educação e de uma jurisprudência em condições de criar parâmetros legais para coibir os abusos em relação ao aproveitamento dos recursos naturais e, ao mesmo tempo, estimular iniciativas que apresentem propostas para a preservação do que ainda existe de natureza original, prevenir danos futuros e  recuperar, o quanto possível, o já danificado. Essa preocupação motiva as iniciativas patrocinadas por organismos governamentais como o Ministério do Meio Ambiente, secretarias estaduais ou municipais do Meio Ambiente, etc., ou promovidas por ONGS e similares, ou ainda por empresas de natureza diversa ou indivíduos. Relevando os interesses menos “ecológicos” que acompanham, viciam ou até movem não poucas dessas iniciativas, no fundo, no fundo, são movidas por uma preocupação, sob todos os aspectos louvável, para não dizer impositiva. Evitar que ao homem desta e das futuras gerações não falte o mínimo de chão no qual captar a matéria prima indispensável para realizar o “humano” da sua natureza, assim como o fizeram sem preocupação os nossos ancestrais durante centenas de milhares de anos. Não é aqui o momento de nos alongarmos demais sobre essa questão. Mas vale acrescentar ainda que o homem “é filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual”. (Rambo. 1942. p. 337). E vale acrescentar que basta percorrer a história do homem enquanto dispomos de evidências objetivas, valendo-nos da lógica que comanda os processos históricos, que a arte, o imaginário, as crenças, as religiões, as mitologias, as próprias organizações espaciais, tem no entorno natural o seu grande inspirador, modelador e limitador. Cresce o receio, para não dizer pavor instintivo do homem vivendo em ambiente urbano cada vez mais distante dessa “mãe e pátria”, que seja privado da paisagem que o inspirou e iluminou na sua trajetória. 

[ Reflexões ]

Observando com um pouco mais de atenção constata-se que a construção do conhecimento a partir do método analítico-indutivo avança maravilhosamente bem até um determinado ponto. O mesmo observa-se com o recurso ao método sintético-dedutivo. Comparado à construção do conhecimento um arco ele começa sendo erguido, de um lado, sobre os resultados obtidos pelo método analítico e, do outro, pelo método sintético. Acontece que, ao aproximarem-se para fechar o arco ou a cúpula, nem um, nem outro, está em condições de oferecer a peça necessária para fazer o papel de pedra de fecho. Resultado. Dois mundos de conhecimentos de origem e natureza paralelos, mas complementares não conseguem amalgamar-se, melhor talvez, consumar a síntese sem a qual o conhecimento não se consolida a um nível qualitativamente superior. A pedra de fechamento do arco ou da cúpula, sem a qual nem o arco, nem a cúpula são possíveis e a sustentam, assim a pedra de fecho do conhecimento superior, chama-se “intuição”. A pedra de fecho em forma de cunha de duas faces num arco ou de quatro ou mais numa cúpula, representa o esforço solidário de dar um sentido superior comum aos dados obtidos por vias diferentes na construção do conhecimento. É a peça-síntese que permite um resultado de outro nível do que é um arco ou uma cúpula quando isolados. E esse nível que transcende o significado dos arcos convergentes em busca de um arco ou de uma cúpula, sugere uma reflexão complementar. O significado de um arco e ou cúpula não se esgota na sua concepção arquitetônica e na perfeição dos cálculos de engenharia, na qualidade do material empregado e na maestria do contramestre e na habilidade dos pedreiros. Sua realização foi invariavelmente motivada por alguma razão superior. Um arco de triunfo perpetua a memória de feitos heroicos na história de um povo. O arco de um portal de entrada de uma catedral, pelo seu acabamento e sua grandeza, alerta para os que por ele passam, que estão entrando num recinto de significado religioso importante ou de acesso a lugares onde se decidem os negócios púbicos ou se guarda a memória de um povo. O mesmo pode-se afirmar de uma cúpula. Assinala os lugares da realização de cultos nas igrejas e catedrais. Encimam os locais onde os poderes do estado governam os cidadãos, administram os recursos públicos, elaboram as leis que disciplinam a vida dos cidadãos e se julgam e emitem os veredictos em questões relativas à justiça. 

A lógica que nos vem orientando até aqui leva à conclusão de que os conhecimentos formais, as realizações concretas e os materiais que deles resultam, somente então têm valor como conhecimento quando dotados de significados. Acontece que os significados são resultados da elaboração e consolidação do conhecimento popular, que por sua vez é essencialmente intuitivo e concretiza-se num contexto histórico-cultural determinado, temperado pela forma peculiar com que cada indivíduo o expressa. É por meio da intuição que os fatos e realidades adquirem sentido e qualidade. Ao fazer ciência o verdadeiro pesquisador não se limita em identificar a natureza física, química, as leis que regem os processos naturais, a interdependência entre eles, a sequência em que acontecem e o proveito teórico e prático que oferecem. Move-o o desejo de avançar até deparar-se com a identificação daquele “misterioso motor” que de fato explica de forma convincente e definitiva a existência, o funcionamento e a razão de ser da natureza e o seu personagem maior, o homem. As hipóteses, as teorias e os modelos matmetmáticos que servem de orientação à pesquisa científica tem muito mais motivação de natureza intuitiva do que muitos se dispõem a admitir. Tomemos como exemplo o fenômeno conhecido como “genialidade”. O que faz com que um “gênio” se distingua de um cientista ou filósofo comum? O gênio, salvo melhor caracterização, pode ser definido como uma pessoa que, observando atentamente o que acontece em sua volta e pelo mundo afora, percebe, intui, o que se esconde de revolucionário, de potencial inovador, de explosivo numa determinada conjuntura, realidade ou descoberta. Poderíamos dizer que a intuição o leva a “farejar” o que o “olfato” do comum dos mortais não percebe. No momento em que me dedico a esta reflexão a grande mídia reservou um espaço privilegiado à confirmação da existência do “Bóson de Higgs”. Há quase cinquenta anos o físico inglês Peter Higgs, seguindo as pegadas do astrofísico belga Georges Lemaitre, que deu origem à teoria do Big Bang, propôs a teoria da existência do “bóson” como responsável pela mecânica que deflagrou o começo do universo. É claro que há uma diferença significativa entre o grau de intuição de um pastor do neolítico que interpretava a passagem de um cometa como prenúncio de catástrofes e Peter Higgs de posse dos dados empíricos da física moderna. Mas no essencial o pastor de ovelhas de dez mil anos passados e o físico de metade do século vinte coincidem. Observando o mundo que os rodeia, o primeiro o firmamento estrelado numa noite de vigília e o segundo tendo em mãos as informações oferecidas pelos laboratórios, intuem, “farejam” algo que se encontra para além do que vêm e observam. No fundo, no fundo, não faz diferença se a intuição do primeiro foi equivocada e a do segundo, pelo menos, confirmada na sua essência. O que é importante é que em ambos os casos e em inúmeros outros, senão em todos, está presente como fator desencadeador do conhecimento, a percepção intuitiva como “motor subliminar” que deu partida para posteriores comprovações. Peter Higgs não participou da comprovação experimental da sua teoria de cinco décadas passadas, mas passou a ser, ainda em vida, um exemplo paradigmático de como funciona a gênese e a construção do conhecimento.

O raciocínio que estamos desenvolvendo leva à conclusão de que tanto os dados obtidos a partir de bases analítico-indutivas quanto sintético-dedutivas, não tem condições de amalgamar-se na forma de uma síntese superior de conhecimento. Nenhum dos dois oferece em seu arsenal teórico-metodológico o potencial de moldar a peça de fechamento da cúpula ou do arco   sem a qual, aliás, não se pode falar nem em arco nem em cúpula. 

 O Pe. Balduino Rambo diante da dificuldade de harmonizar, de amalgamar o progresso das Ciências Naturais com o sistema Aristotélico-Tomista, pergunta se não seria oportuno  abandonar as vias convencionais da produção do conhecimento, ou pelo menos chamar em socorro o velho Platonismo com sua linha de pensamento e aproveitar das  Escolas convencionais somente aquilo que se enquadra nas leis perenes do Pensamento Humano, porque,

Entre a Ciência e a Fé (entre as Ciências Naturais, a Filosofia, a Teologia, as Ciências Humanas, as Letras e Artes. (inciso do autor), estende-se o vasto campo da intuição, que não é outra coisa senão um conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do significado e da expressão imediata da palavra, como do som subliminar que emite e da ressonância que desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana até hoje se prestou muito pouca atenção. Bem considerada ela não é um som secundário, e sim a nota dominante no concerto musical do espírito dinâmico do homem. (Rambo, Balduino. 1994.)

[ Reflexões ]

Na sua visita aos maiores museus de arqueologia nos Estados Unidos o Pe. Ballduino Rambo resumiu com precisão a importância de procurar na fase “pré-científica” as raízes de todo o conhecimento posteriormente construído. Chama a atenção de que muito pouco de essencialmente novo foi acrescentado ao que o homem da pré-história já conhecia e praticava. Na sua essência todas as realizações posteriores das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas e das Letras e Artes, devem ser procurados nos objetos expostos daqueles museus. Quem sabe ler e entender essa linguagem em pedra, osso, chifre, madeira, tecidos, vestígios de fogo, evidências de culto, demonstrações de arte, rituais  e monumentos fúnebres, convence-se que o gérmen do conhecimento foi concebido, plantado e cultivado a partir do momento em que  os primeiros homens deram os passos iniciais para a aventura da espécie humana através dos tempos. Para repetir novamente, pouco importa a aparência física desses seres humanos ou o local e a data em que entraram em cena. O que decide são os seus feitos e o potencial sem limites de desdobramentos em termos de cultura material e imaterial. O resumo da leitura que o Pe. Rambo fez do que viu nas  exposições no museu da Philadelphia deixou-a forma de duas reflexões. A primeira contempla a cultura material.

O homem que como caçador e coletor, há muitos milhares de anos, vagava pelas florestas e estepes, de forma alguma era meio ou rês quartos animal. Tratava-se de um verdadeiro homem, até certo ponto altamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como são os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos os instrumentos que servem para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo confeccionava de madeira, conchas, ossos, chifres e sílex, tudo que se fabrica hoje de aço e ferro. Inventou a técnica de assar, de fritar, de refogar, de cozinhar e, como isso, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa que hoje confiamos tranquilamente a cozinheiras e cozinheiros, o homem primitivo teve que tentar, experimentar e excogitar penosamente. Ele foi o descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual nenhuma tecnologia humana é possível. Se hoje acionamos o poder do fogo sob as panelas, atrelamos às máquinas a vapor, ao motor, aos nossos carros, aos navios, às máquinas voadoras, devemo-lo, em última análise, ao homem antigo, que entrou em contato com o fogo quando da queda de um raio, da erupção de um vulcão ou aprendeu a produzi-lo com a fricção de madeiras ou batendo um fragmento de sílex contra o outro. Ele foi também o inventor das armas: do arco e da flecha, do machado de guerra, dos punhais e lanças arremessadas com as mãos. Sorte sua que não desenvolveu a pólvora e a bomba atômica, porque a humanidade teria perecido já nos tempos primigênios. Foi inventor da arte de costurar, comprovada pelas numerosas agulhas de chifre e osso, com o mesmo feitio e quase tão finas quanto as nossas de aço. Confeccionava vestes com peles de animais e não vagava nu por aí como querem aqueles que gostam de venerar animais como seus avós. Foi o homem o inventor da moradia humana, primeiro em cavernas, depois em buracos subterrâneos, cabanas e, finalmente, em casas de verdade, mesmo que fossem menos confortáveis do que nossos arranha-céus e palácios, certamente tinham melhor ventilação e reuniam a família em volta da chama amiga como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas, comemos até nos saciar”. (Rambo, Balduino. Três Meses na América. p. 400-401))

Entre as relíquias expostas num museu caem em vista os fragmentos de um esqueleto de criança, procedente da Riviera Francesa, rodeado com um colar de milhares de conchas perfuradas. De pronto sugere o mundo imaginário humano e religioso, com destaque para a figura da mãe na história dos homens. 

Pode-se concluir que um dia estiveram unidos com um barbante e presas numa roupinha. Aqui uma mãe fez acompanhar o seu tesouro para a sepultura com o que tinha de mais valioso (...) E onde se manifestam semelhantes sentimentos está viva a crença num divindade e numa vida depois da morte, realidades que constatamos também hoje entre todos os povos primitivos, como comprova a gigantesca obra de seis volumes de Wilhelm Schmidt, com o titulo: “A Origem da Ideia de Deus”. (...) Nosso amigo e antepassado foi um poderoso artista, antes de mais nada um acabado pintor em preto e branco. Já em outra parte cantei um hino de louvor nesse sentido. Tiremos o chapéu perante o nosso antepassado caçador, inventor, artista dos tempos primigênios. (Rambo, Balduino. Três Meses na América. p. 401)

O conhecimento de que nos acabamos de ocupar é tão verdadeiro e tão útil quanto o conhecimento oferecido pelos recursos mais modernos. Como estes cumpre perfeitamente a finalidade essencial de suprir as necessidades do quotidiano naquelas circunstâncias. Avaliado de outra perspectiva, tem sido o primeiro passo, o primeiro elo na cadeia da construção do conhecimento. Sem esse primeiro elo não teria havido um segundo, um terceiro e os demais, ou simplesmente não teria havido construção de conhecimento algum. Com essa constatação impõe-se nada mais nada menos do que conceber o conhecimento como síntese e validar a “intuição” como um caminho objetivamente tão legítimo quanto a “dedução” e a “indução” para produzi-lo. Mais.  Durante milênios foi a ferramenta por excelência com a qual o homem lançou as bases e consolidou os corpos de conhecimento que terminaram nas grandes culturas do ocidente, da oriente próximo, médio e remoto, das altas culturas da América, e das milhares de culturas regionais e locais, dispersas pelos cinco continentes e as ilhas dos oceanos. Um outro fato não pode ser ignorado. Nos diversos grandes complexos culturais definiram-se, aos poucos, métodos e técnicas com a finalidade de lidar com a complexificação crescente. As cosmovisões daí resultantes, os desafios práticos engendrados pelo aperfeiçoamento tecnológico, a tendência natural do homem de obter respostas às perguntas colocadas pelo quotidiano, terminaram por formular propostas de métodos capazes de dar conta da tarefa. Dessa forma a civilização greco-romana como fundamento imediato da cultura ocidental consolidou quinhentos anos antes da nossa era o caminho da “lógica dedutiva” da linha Aristotélica e a Platônica com acento na “compreensão intuitiva”. Depois de séculos sob a influência do Platonismo, a redescoberta de Aristóteles com sua lógica racional e retilínea arredou-o para um plano secundário. Com a entrada triunfal das Ciências Naturais no cenário da dinâmica civilizatória, o empirismo, a experimentação, a observação, a análise e a indução como método de trabalho, foram-se impondo. Aos poucos o método sintético-dedutivo e o analítico indutivo, diminuíram cada vez mais a importância da “intuição” como fonte legítima de conhecer e explicar as realidades e dar uma contribuição de fundo para construção do conhecimento. Relembrando. Francis Bacon reduziu os pilares do conhecimento ao método “analítico-indutivo” e ao “sintético-dedutivo”. A “intuição” parece não ter tido lugar na sua mente racionalista. A utilidade dos dois métodos, o analítico-indutivo e sintético-dedutivo que oferecem quase que exclusivamente os elementos que conferem o perfil ao conhecimento que está sendo produzido pelo mundo afora e legitimado como tal, vem acompanhado de não pequenos riscos e lacunas. Teilhard de Chardin, como já registramos mais acima, depois de classificar o método analítico-indutivo como “esse maravilhoso instrumento do progresso”, chamou a atenção para o paradoxo ao que leva quando de uma aposta irrestrita nos seus resultados. Diante do monte de peças de uma máquina desmontada, perde-se a noção da própria máquina e da função de cada peça quando em funcionamento; de tanto dissecar um tecido ou um órgão vai-se a compreensão de que pertenceu a um ser vivo e de que fora desse contexto, não passa de uma estrutura orgânica qualquer e as informações que pode dar confinam-se ao nível da química e da física. O efeito generalizado dos limites da indução e da dedução formam a base da fragmentação em todos os níveis e em todos os setores que molda o rosto perturbador da pós-modernidade. 

[ Reflexões ]

Construção do Conhecimento

O recurso à metáfora foi sempre uma boa saída para tornar palpáveis pensamentos abstratos. A construção das sínteses do conhecimento tanto em áreas específicas, quanto numa síntese global, assemelha-se ao desenvolvimento de uma árvore. Escolhemos como representante emblemático a araucária, o símbolo das florestas do sul do Brasil. Observando com um pouco mais de atenção um desses gigantes várias vezes seculares, ele oferece todos os elementos de que necessitamos, para tornar compreensível a construção do conhecimento como uma síntese. Semelhante aos humanos suas raízes vigorosas mergulham fundo na mãe terra. De um lado garantem a solidez necessária para que o tronco e a copa que sobem a trinta, quarenta ou mais metros, resistam à fúria dos temporais. De outro lado captam os sais minerais e demais nutrientes através das radícolas nas extremidades das ramificações das raízes. Pela seiva são transportadas para o alto para dar vida ao todo, até as agulhas mais extremas. Na trajetória pelo tronco, pelos galhos e tufos de agulhas, são processados e incorporados na estrutura. Tudo acontece de forma harmônica, como é próprio de um sistema vivo, como é uma araucária. Assim como a araucária, para realizar a síntese do conhecimento, o homem capta a matéria prima no mundo mineral para garantir a vida.  E é nesse nível que a capacidade de reflexão entra em ação simultaneamente com os instintos. Estes, por assim dizer, fazem o papel de plataforma, de raízes sobre as quais a inteligência reflexa vai construindo o vigoroso tronco da majestosa árvore do conhecimento. Dele projetam-se para os lados e o alto os galhos. Tudo muito esbelto e harmonioso, mas sólido, vigoroso, simétrico, majestoso e imponente. O escritor Sérgio Farina, apaixonado pelas araucárias da sua terra natal, Veranópolis, costumava compará-las a alguém rezando com os braços levantados para o alto. O escritor Renato Dalto no texto que acompanha as fotos de Eduardo Tavares na obra “Aparados da Serra – Na trilha do Pe. Rambo”, resumiu o perfil da araucária: “Na visão de baixo para cima os galhos parecem tocar o céu. Mas é só desviar o olhar em direção à terra, para ver que há raízes fortes encravadas no chão”.  Reunindo os muitos simbolismos que uma araucária secular é capaz de sugerir, revela-se também como uma metáfora perfeita para o conhecimento. Suas raízes entram fundo no chão. Nas entranhas virgens da terra captam entre rochas, húmus, cascalhos, areias e aluviões, os nutrientes que garantem a sua vitalidade, sua estrutura, sua solidez e sua imponência. Seu tronco sólido e simétrico, elevando-se a prumo em busca das nuvens e do firmamento, prova a síntese bem sucedida dos processos vitais que a construíram. 

Na metáfora a que recorremos, minerais retirados da terra e da atmosfera são transformados em nutrientes e elementos estruturais característicos da espécie taxonômica da araucária. As mesmas matérias primas minerais entram na concretização de todas as outras espécies vegetais, conferindo-lhes as características de individualidade de acordo com o DNA de cada uma. Araucárias, cedros, carvalhos, gramíneas, flores do campo, musgos, todos são alimentados pelas mesmas matérias primas minerais. Todos, portanto, alimentam-se da mesma fonte, mas apresentam-se em milhões de formas individuais devidas às características genéticas   somadas às influências do meio ambiente. De maneira análoga o conhecimento começa a ser gerado a um nível em que o instintivo, o intuitivo e racional no homem se aliam, se confundem e se estimulam mutuamente. A matéria prima na araucária é captada pelas raízes e levada pela seiva, subindo a dezenas metros até as agulhas mais altas. A raízes que captam a matéria prima necessária para a construção do conhecimento são os cinco sentidos. As cores, as luzes e sombras, os espetáculos que empolgam, assustam ou comovem, as paisagens, os panoramas, as coreografias da natureza, entram pelos olhos. Os sons, os ruídos, as melodias, as dissonâncias, os sussurros, os uivos, os gritos, os choros, as risadas, as gargalhadas, o farfalhar das folhas, enfim a sinfonia ou as sinfonias dos sons da natureza, tem como porta de entrada o ouvido. O olfato capta os odores, os perfumes exalados pelas flores, pelas ervas, pela chuva, pela natureza como um todo, os maus cheiros denunciando decomposição, estagnação, mofo e podridão. Pelo tato transmitem-se as mensagens de um aperto de mão, de um abraço silencioso mais eloquente que palavras, de um afago, de uma palmada, de uma pancada, de uma arranhada, de uma mordida, de um ferimento, das dores, da brisa, do calor, do frio. Enfim o gosto é o responsável pela triagem dos alimentos e bebidas indispensáveis para a sobrevivência. O que significam as raízes para uma araucária os cinco sentidos significam para o homem, isto é, por meio deles permite-se o acesso às fontes de matérias primas que sustentam a vida biológica e municiam a construção do conhecimento que, por sua vez, determina o perfil da cultura. E, concluindo a metáfora: o ser humano ao morrer perde todos os sentidos e sobra apenas um cadáver. A araucária privada de suas raízes deixa de ser uma árvore para sobrar apenas madeira.

Como os sais minerais e demais nutrientes da nossa metáfora sofrem um processo de transformação para adequá-los às características de uma araucária, assim também as imagens, os sons, os gostos, os odores e as sensações são captados pelos sentidos como matéria prima. Para transformarem-se em conhecimento passam por um processo de significação e resignificação do papel que lhes cabe desempenhar na vida dos indivíduos e das sociedades humanas. Este processo é, em grandes linhas, alimentado pela tradição histórico-cultural em que ocorre e pelas idiossincrasias pessoais. As “matérias primas” captadas pelos sentidos passam por essa dupla via de significação na medida em que são incorporadas harmonicamente no corpo do conhecimento de alguma tradição cultural. As cores não ocorrem como tais na natureza, não são dados naturais objetivos.  O fato objetivo que vem a ser a base das cores e de suas combinações, são ondas luminosas de comprimentos diferentes. Para que a luminosidade emitida por um comprimento determinado seja percebida pelo olho como vermelha, azul, branca ou verde, não passa de uma convenção cultural que requer um aprendizado. A criança aprende que o vermelho é vermelho e o verde é verde, o branco é branco e o preto é preto. Mais. O simbolismo que acompanha as cores foi sendo consolidado pela tradição cultural. A mesma simboliza eventualidades opostas em culturas diferentes. Na cultura ocidental o branco inspira um clima festivo, simboliza a pureza, indica com uma bandeira branca a vontade de suspender as inimizades e convidar para a celebração da paz. Em outras tradições como por ex., na chinesa o branco significa luto. Na mesma linha vai o preto. Um traje preto com seus acessórios pode estar associado ao luto e a momentos que requerem respeito, sobriedade, a ocasiões de importância e de significado fora do comum, inclusive no traje da noiva entre descendentes de vesfalianos no sul do Brasil. 

Seria demasiadamente longo e não há necessidade de  insistir  que o que vale para as cores encontra aplicação, em cada caso à sua maneira, nos outros quatro sentidos. O que todos têm em comum é o de servirem como pontes, como janelas que permitem o contato das pessoas   com o mundo externo. A perda da visão ou da audição impossibilita ao cego ou ao surdo situar-se, movimentar-se e entender-se no universo de luzes, cores, paisagens, panoramas e   espetáculos da natureza, de um lado, e do mundo de sons, dissonâncias, sinfonias e harmonias que povoam o seu entorno. O surdo costuma ser mudo porque o ouvir vem a ser a condição espontânea para desenvolver a capacidade de falar e vem a ser o caminho mais importante para apropriar-se da língua a qual, por sua vez, é veículo convencional normal para contatar e manusear o universo simbólico e conceitual da cultura. Imagine-se agora uma pessoa privada da visão, da audição e como consequência também da fala. Estará condenada a passar uma existência na escuridão total e no silêncio mais absoluto. Nenhum artifício técnico é capaz de compensar satisfatoriamente tal limitação. Se a história registra casos de uma superação do problema ao nível da escritora norte-americana Hellen Keller cega, surda e muda, são, por assim dizer, exceções da exceção. Numa situação extrema de falha de todos os sentidos, a pessoa passaria a ser um ente vivo, reduzido à total inanição, inviável, a não ser por artifícios técnicos, semelhante ao estado de coma profunda ou anestesia geral. 

O conhecimento começa, portanto, a ser gerado a partir das informações captadas pelos sentidos e lavados aos centros de processamento do cérebro. A capacidade reflexiva, influenciada, de um lado pela própria natureza das informações, e do outro, pelas características culturais, somadas à percepção idiossincrática do receptor, molda o perfil do conhecimento, um processo por sua natureza dinâmico e sintético.  É nesse patamar “pré-científico” que são dados os primeiros passos em direção da construção do conhecimento. O termo “pré-científico” viria a ser injusto se fosse entendido como “o ainda não científico”. 

[ Reflexões ]

Theodosius Dobzhansky, um dos geneticistas mais importantes e mais influentes do século XX, explicitou, com rara precisão, a interdependência entre instinto e racionalidade, quando da elaboração da cultura. Como a cultura em última análise é fruto do conhecimento, a afirmação que ele faz da gênese e evolução da cultura é, por extensão, válida também para o conhecimento.

O homem e só ele possui a capacidade de pensamento simbólico e ter consciência de si mesmo. O ser humano tem a capacidade de contemplar-se como objeto entre outros objetos. Como consequência é capaz de optar, de relacionar e controlar-se a si mesmo, da mesma forma como está em suas mãos dominar e controlar a natureza. Da mesma maneira como os demais seres vivos, a natureza fornece as impressões sensoriais. Os animais conhecem as circunstâncias que os rodeiam, mas o homem tem a consciência do seu conhecimento.  Todas as espécies de multicelulares morrem, mas o homem é o único animal que sabe que vai morrer. A espécie humana e outras espécies biológicas evoluíram e se encontram em plena evolução, mas só o homem descobriu o fato da evolução. Como consequência somente o homem, se assim o desejar, pode aceitar ou rejeitar a linha da evolução, imposta pelas forças cegas da natureza. Só ele tem condições de entender, controlar e orientar a sua própria evolução. (Dobzhansky, Theodosius, 1969,  pág. 152.)

A tentativa de descrever a gênese da construção do conhecimento desde o seu nascedouro, não pode ignorar os pressupostos formulados por Dobzhansky. Colocado na perspectiva da evolução o homem evoluiu em dois planos: no biológico e no cultural. No biológico o processo evolutivo fundamenta-se nas mesmas bases bioquímicas das demais milhões de espécies de seres vivos. A natureza biológica resume-se no mesmo DNA de uma ameba, de uma planta, de um vertebrado, de um mamífero ou do homem. Sob este aspecto, portanto, o homem comporta-se exatamente da mesma forma   como uma ave, um peixe ou um vegetal. As características condicionadas pelo DNA, são transmitidas de geração em geração. Não podem ser compartilhadas a não ser pelos descendentes diretos.

Mas o que faz a diferença entre o homem e demais espécies vivas é sua capacidade de reflexão e, por isso mesmo, ter consciência de si mesmo e das realidades em sua volta. Isto se chama conhecer, isso se chama desenvolver uma cultura. Acontece que a capacidade de conhecer, de desenvolver cultura, não se herda pelo DNA. Aprende-se e transmite-se via aprendizado individual e coletivo. Foi, novamente Dobzhansky que resumiu com rara propriedade a questão.

O sentido técnico em que o termo “cultura” está sendo empregado aqui, todos os povos modernos e antigos, avançados e primitivos o possuem. A cultura não consiste apenas naquilo que se aprende nos livros e nos bons manuais. Compreende muito mais do que isso.  Consiste na soma total de hábitos, crenças, costumes, linguagens, técnicas, de modo geral tudo aquilo que pensam e fazem as pessoas como resultado de um aprendizado anterior. A cultura é exclusivamente humana. Nas demais espécies zoológicas só se encontram os vestígios mais rudimentares de transmissão cultural, suficientes para convencer os evolucionistas de que nossos antepassados humanos possuíam elementos a partir dos quais evoluiu a capacidade cultural no decorrer da história. A linguagem humana constitui-se numa característica especialmente distintiva da cultura. Por meio dela a cultura é transmitida de geração em geração. As assim chamadas “linguagens animais”, os gritos, os cantos ou ruídos por meio dos quais uma ave ou um mamífero se comunica com seus semelhantes são, na realidade, fenômenos muito distintos da linguagem humana. As palavras que a compõem são símbolos convencionais que representam objetos, ações e relações. A linguagem humana é muito mais eficiente como meio de comunicação pois, revela a capacidade de pensamento simbólico e abstração, dos quais se percebem apenas rudimentos entre os animais. (Dobzhansky. Op. Cit. p. 153)

Na passagem que acabamos de citar Dobzhansky condensou com perfeição os elementos desencadeadores do conhecimento. Mesmo que não faça uso do termo “conhecimento”, todos os elementos que o envolvem, encontram-se no conceito de “cultura”. Afinal, tanto um quanto o outro, lidam com o mesmo objeto formal, isto é, a construção da história do homem através dos tempos. Tomadas essas precauções, estamos em condições de acompanhar a evolução do conhecimento. E, para não ficar patinando em reflexões teóricas e abstratas, tentemos acompanhar a trajetória da construção do pensamento em algumas áreas que se tornaram os pilares mestres de culturas e civilizações. Pretendemos emprestar atenção especial à evolução do conhecimento em algumas delas.