A intuição
A intuição teve em Jean Jacques Rousseau a sua reabilitação como forma legítima de conhecimento. A percepção imediata das realidades naturais pelos sentidos resulta na construção informal e espontânea dos corpos de conhecimento que subjazem às mais diversas culturas. Com sua autoridade incontestável o grande filósofo da modernidade, deixou claro de que o homem busca a matéria prima do conhecimento no mundo ambiente em que vive e apropria-se dela por meio dos sentidos. A forma peculiar como essas percepções são percebidas e elaboradas depende da natureza de cada uma delas, do entorno cultural em que é recebida e da maneira única pela qual é elaborada pelas mentes individuais. Rousseau intuiu o tamanho do potencial prático embutido nessa maneira de conceber a gênese do conhecimento. E o valor prático, inovador e revolucionário encontra-se exatamente no plano mais sensível e mais decisivo da vida individual e coletiva do homem: na Educação.
A importância em começar a educação das crianças incentivando-as a entrar em contato com o maior número possível de estímulos vindos das mais diversas realidades que se encontram no seu entorno ambiental, tem, no presente, em Edward Wilson um dos seus propositores entusiastas de maior peso. Com o nome consagrado entre as maiores autoridades em entomologia, é óbvio que suas sugestões sobre a educação de crianças tivessem como cenário privilegiado a “História Natural”. Sim, o velho e, por muitos desprezado e rejeitado, conceito de “História Natural” que para Wilson confere razão de ser e consistência a qualquer projeto ou iniciativa na pesquisa científica. Em outro momento já tivemos ocasião de destacar que para ele a “Natureza é um fato objetivo” e, portanto, tem uma “História”, uma “História Natural” também “Objetiva”. Não se trata apenas de uma cosmovisão construída a partir dos dados oferecidos por um momento determinado das pesquisas científicas. No capítulo 15 do seu livro “A Criação”, Wilson demorou-se em esboçar toda uma proposta pedagógica, em primeiro lugar destinada para a educação da criança a partir da natureza e numa imersão existencial progressiva nesse universo de surpresas sem conta, que vem a ser “mãe e pátria” do homem. Mas voltemos a Edward Wilson. Apresenta sua proposta pedagógica com as palavras.
A ascensão da natureza começa na infância, portanto o ideal é que a ciência da biologia seja introduzida logo nos primeiros anos de vida. Toda a criança é um naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar, explorar novos territórios, buscar tesouros, examinar a geografia, descobrir novos mundos – tudo isso está presente em seu cerne mais íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as crianças foram criadas em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais silvestres. (Wilson, 2008, p. 158)
Wilson demora-se um pouco para chamar a atenção de que as raízes remotas do conhecimento devem ser procuradas entre os caçadores e coletores do paleolítico. Munidos com ferramentas as mais simples e rudimentares que se possam imaginar, a sobrevivência acontecia numa dependência total das condições ambientais. Valendo-se dos cinco sentidos como janelas, como pontes de contato com o meio ambiente, foi obtendo as informações necessárias para a sobrevivência. Orientado pelos instintos, instrumentalizados pela intuição e os resultados postos à disposição da inteligência reflexa, o homem foi colocando os fundamentos do conhecimento. A partir daí, somando observação a observação, experiência a experiência, intuição a intuição, explicação a explicação, resposta a resposta, consolidaram-se numa velocidade geométrica os corpos de conhecimento entre os grupos humanos que, ao mesmo tempo dispersavam-se pelas mais diversas regiões disponíveis. Não se pode esquecer que em paralelo e em estreita interdependência e mútua emulação com o instinto, a intuição e a reflexão, aconteceu a descoberta, a diversificação e aperfeiçoamento de instrumentos. Do primitivo instrumento multifuncional, porém, pouco eficiente “machado de punho”, evoluiu, durante dezenas e centenas de milhares de anos, um arsenal de ferramentas e instrumentos líticos especializados: instrumentos para cortar, cavar, desbastar, arremessar, para a defesa, tirar a pele de animais, separar a carne dos ossos. Entre esse arsenal de pedra lascada merece destaque a infinita variedade de pontas de flecha, facas e punhais de vidro vulcânico alguns de proporções fora de comum, cujo acabamento exigiu técnicas refinadas de lascamento. Explica-se que entre os vestígios materiais que acompanharam o homem durante todo o paleolítico, predominem os artefatos de pedra. Pela sua própria natureza são muito mais duráveis e resistentes à ação do tempo do que qualquer outra matéria prima. Pelo fácil manuseio, disponibilidade em qualquer lugar, a versatilidade para usos e utilidades múltiplas, para muitas das quais a pedra, o sílex ou a obsidiana simplesmente não entravam em questão, a opção óbvia foi a madeira, o osso, o chifrem dentes, conchas e por aí vai. Muito mais perecíveis do que o sílex ou o vidro vulcânico, aparecem só bem mais tarde.
A sobrevivência e o sucesso histórico do homem do paleolítico, portanto, até menos de 30.000 anos, dependia inteiramente dos seus instintos, sua intuição e sua inteligência reflexa, instrumentados por um complexo, variado e multifuncional aparato de tecnologias, tornadas práticas em matérias primas imediatamente disponíveis. Por todos os séculos, milênios, centenas de milênios que o paleolítico se prolongou, a humanidade vivia na mais completa simbiose com a natureza, na forma e modalidade própria de cada região geográfica. O grande salto veio por volta dos quinze a vinte mil anos atrás. Darci Ribeiro chamou-o de “Revolução dos Alimentos” que tem na agricultura e na domesticação e criação de animais seu fator dinâmico mais determinante. Mas não é só nessas duas conquistas. Ela é reforçada por outras que foram de uma importância difícil de ser dimensionada. Entre elas destacam-se o uso universal do fogo, a descoberta e a utilidade de metais “in natura”, como o cobre e o estanho, o ouro e a prata. A amálgama do cobre e do estanho foi uma das descobertas, sem dúvida mais importantes do período da Revolução dos Alimentos. O homem não só aperfeiçoou matérias primas disponíveis no seu entorno, como deu início a tecnologias que combinam as qualidades de matérias primas diversas obtendo ferramentas, utensílios e armas sempre mais vez mais sofisticados, diversificados, especializados e eficientes. Entre as tecnologias que acompanharam, implementaram e aperfeiçoaram a Revolução Agropastoril soma-se a fundição de ferro, técnicas de irrigação, seleção e aprimoramento de plantas úteis, seleção e aprimoramento das raças de animais domesticados, o aproveitamento da energia eólica e hidráulica. Não é aqui a ocasião de detalharmos o potencial de progresso e de perspectivas de desenvolvimento que essa sucessão de conquistas proporcionaram ao homem do neolítico e, considerando bem, continuam sendo os fundamentos das civilizações também do começo do terceiro milênio.
No contexto da reflexão que estamos fazendo sobre a construção do conhecimento, a intenção foi chamar a atenção para a superação das muitas amarras que prendiam o homem às condições do seu entorno geográfico. Se de um lado significou a conquista ao superar condicionamentos inibidores do progresso do homem, de outro representou um afastamento sempre maior do contato com a natureza e seus estímulos telúricos. A distância alcançou um nível tal nos grandes centros urbanos que os homens vivem num mundo fabricado artificialmente ao ponto de que o lar, o berço original foi esquecido quase por completo. Mas, conforme observa Edward Wilson,
Mesmo assim, os instintos ancestrais continuam vivos dentro de nós. Eles se expressam na arte, nos mitos e na religião, nos parques e nos jardins, nos esportes da caça e da pesca, tão estranhos (pensando bem). Os americanos passam mais tempo nos jardins zoológicos do que em eventos esportivos profissionais, e ainda mais tempo em áreas protegidas dos parques nacionais, cada vez mais abarrotados de visitantes. A recreação nas florestas nacionais e reservas naturais – isto é, nas partes que permanecem intactas – gera uma renda de mais de vinte bilhões de dólares anuais ao Produto Interno Bruto do país. A televisão e o cinema do mundo industrializado estão saturados de imagens da Natureza virgem. Um símbolo de riqueza pessoal é a casa de campo, tipicamente localizada em um ambiente pastoral ou natural. Ela serve como refúgio para quem deseja encontrar paz de espírito e como ponto de retorno a algo que foi perdido, mas não esquecido. (Edward Wilson. 2006. p. 159)
Quem expressou da forma mais completa o fato de a natureza constituir-se na fonte, no manancial que irriga os sentidos e, a partir das impressões sensoriais, estimula a intuição e a reflexão, fornece os dados para fundamentar a ciência, a filosofia, a teologia e termina na Arte, em suas expressões mais sublimes, foi o Pe. Rambo.
A natureza de certo age sobre todos os sentidos a modo de arte musical, pictórica e espacial, a saber, a água em todas as suas formas de mar-oceano, de rio, de lago, de fonte, nuvens e gelo; a terra firme em todas as suas configurações de ilha, montanha, planície e a vegetação em todas as suas modificações de selva ou mata, de relva, estepe e pântano. Dessas partes componentes, estruturam-se em muitas combinações as paisagens predominantes, mas elas também se repetem no pequeno e no mínimo. Pode falar-se, outrossim, de direções ou correntes artísticas e de estilo da Natureza, ligadas ao tempo. Significativamente, elas valem tanto mais quanto mais próximo se acha o meio de representação. (Aparados da Serra – na trilha do P. Rambo. 2007. p. 19)
Mesmo nos ambientes urbanos onde a artificialização e o consequente distanciamento do mundo natural alcançou um ponto extremo, persiste uma espécie de nostalgia atávica, uma consciência coletiva nem tão adormecida, dos tempos em que o homem do paleolítico andava de pés descalços, pelas florestas, savanas, montanhas e planícies. Reencontrar-se com esse passado remoto e, contudo, tão presente, é um desejo, para não dizer instinto, que se faz valer também no homem que nasceu numa selva de arranha-céus e respira de dia e de noite o odor do asfalto. Creio que não é temerário afirmar que é exatamente nessa atmosfera de artificialidade, que se faz notar com crescente vigor a nostalgia da volta ao paraíso perdido mas não esquecido, pelo menos para usufruir pequenos intervalos de paz. Encontramos aqui, salvo melhor explicação, a resposta ou as respostas para uma série de fenômenos e movimentos que se tornaram evidentes depois da Segunda Grande Guerra e que acompanham o fenômeno da urbanização e se tornam cada vez mais comuns, na medida em que o homem do campo se transfere para os espaços das grandes cidades, metrópoles e áreas metropolitanas. O primeiro deles acontece a nível macro sob rótulos como salvemos o planeta terra, salvemos a biodiversidade, salvemos as florestas tropicais, salvemos as paisagens naturais, previnamos o aquecimento global, além de muitos outros rótulos. Na sua essência todos são manifestações comuns da natureza, ou se preferirmos, do “instinto” do homem que percebe que o chão em que estão fincadas suas raízes existenciais, está a perigo. Os alertas a respeito já se fazem ouvir, cá e lá, desde a segunda metade do século XIX. Cientistas, geógrafos, historiadores, filósofos, moralistas e teólogos ocuparam-se e ocupam-se cada vez mais com o assunto. A questão manteve-se, entretanto, a nível mais teórico e dela ocupavam-se intelectuais, cientistas e pensadores confinados em suas academias. A “questão ecológica”, como já afirmamos mais acima, baixou, entretanto, ao nível dos interesses e preocupações das instituições responsáveis por traçar políticas públicas, cuidar da saúde pública, da condução da economia, do disciplinamento do uso do espaço, tanto rural quanto urbano, da educação e de uma jurisprudência em condições de criar parâmetros legais para coibir os abusos em relação ao aproveitamento dos recursos naturais e, ao mesmo tempo, estimular iniciativas que apresentem propostas para a preservação do que ainda existe de natureza original, prevenir danos futuros e recuperar, o quanto possível, o já danificado. Essa preocupação motiva as iniciativas patrocinadas por organismos governamentais como o Ministério do Meio Ambiente, secretarias estaduais ou municipais do Meio Ambiente, etc., ou promovidas por ONGS e similares, ou ainda por empresas de natureza diversa ou indivíduos. Relevando os interesses menos “ecológicos” que acompanham, viciam ou até movem não poucas dessas iniciativas, no fundo, no fundo, são movidas por uma preocupação, sob todos os aspectos louvável, para não dizer impositiva. Evitar que ao homem desta e das futuras gerações não falte o mínimo de chão no qual captar a matéria prima indispensável para realizar o “humano” da sua natureza, assim como o fizeram sem preocupação os nossos ancestrais durante centenas de milhares de anos. Não é aqui o momento de nos alongarmos demais sobre essa questão. Mas vale acrescentar ainda que o homem “é filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual”. (Rambo. 1942. p. 337). E vale acrescentar que basta percorrer a história do homem enquanto dispomos de evidências objetivas, valendo-nos da lógica que comanda os processos históricos, que a arte, o imaginário, as crenças, as religiões, as mitologias, as próprias organizações espaciais, tem no entorno natural o seu grande inspirador, modelador e limitador. Cresce o receio, para não dizer pavor instintivo do homem vivendo em ambiente urbano cada vez mais distante dessa “mãe e pátria”, que seja privado da paisagem que o inspirou e iluminou na sua trajetória.