Construção do Conhecimento
O recurso à metáfora foi sempre uma boa saída para tornar palpáveis pensamentos abstratos. A construção das sínteses do conhecimento tanto em áreas específicas, quanto numa síntese global, assemelha-se ao desenvolvimento de uma árvore. Escolhemos como representante emblemático a araucária, o símbolo das florestas do sul do Brasil. Observando com um pouco mais de atenção um desses gigantes várias vezes seculares, ele oferece todos os elementos de que necessitamos, para tornar compreensível a construção do conhecimento como uma síntese. Semelhante aos humanos suas raízes vigorosas mergulham fundo na mãe terra. De um lado garantem a solidez necessária para que o tronco e a copa que sobem a trinta, quarenta ou mais metros, resistam à fúria dos temporais. De outro lado captam os sais minerais e demais nutrientes através das radícolas nas extremidades das ramificações das raízes. Pela seiva são transportadas para o alto para dar vida ao todo, até as agulhas mais extremas. Na trajetória pelo tronco, pelos galhos e tufos de agulhas, são processados e incorporados na estrutura. Tudo acontece de forma harmônica, como é próprio de um sistema vivo, como é uma araucária. Assim como a araucária, para realizar a síntese do conhecimento, o homem capta a matéria prima no mundo mineral para garantir a vida. E é nesse nível que a capacidade de reflexão entra em ação simultaneamente com os instintos. Estes, por assim dizer, fazem o papel de plataforma, de raízes sobre as quais a inteligência reflexa vai construindo o vigoroso tronco da majestosa árvore do conhecimento. Dele projetam-se para os lados e o alto os galhos. Tudo muito esbelto e harmonioso, mas sólido, vigoroso, simétrico, majestoso e imponente. O escritor Sérgio Farina, apaixonado pelas araucárias da sua terra natal, Veranópolis, costumava compará-las a alguém rezando com os braços levantados para o alto. O escritor Renato Dalto no texto que acompanha as fotos de Eduardo Tavares na obra “Aparados da Serra – Na trilha do Pe. Rambo”, resumiu o perfil da araucária: “Na visão de baixo para cima os galhos parecem tocar o céu. Mas é só desviar o olhar em direção à terra, para ver que há raízes fortes encravadas no chão”. Reunindo os muitos simbolismos que uma araucária secular é capaz de sugerir, revela-se também como uma metáfora perfeita para o conhecimento. Suas raízes entram fundo no chão. Nas entranhas virgens da terra captam entre rochas, húmus, cascalhos, areias e aluviões, os nutrientes que garantem a sua vitalidade, sua estrutura, sua solidez e sua imponência. Seu tronco sólido e simétrico, elevando-se a prumo em busca das nuvens e do firmamento, prova a síntese bem sucedida dos processos vitais que a construíram.
Na metáfora a que recorremos, minerais retirados da terra e da atmosfera são transformados em nutrientes e elementos estruturais característicos da espécie taxonômica da araucária. As mesmas matérias primas minerais entram na concretização de todas as outras espécies vegetais, conferindo-lhes as características de individualidade de acordo com o DNA de cada uma. Araucárias, cedros, carvalhos, gramíneas, flores do campo, musgos, todos são alimentados pelas mesmas matérias primas minerais. Todos, portanto, alimentam-se da mesma fonte, mas apresentam-se em milhões de formas individuais devidas às características genéticas somadas às influências do meio ambiente. De maneira análoga o conhecimento começa a ser gerado a um nível em que o instintivo, o intuitivo e racional no homem se aliam, se confundem e se estimulam mutuamente. A matéria prima na araucária é captada pelas raízes e levada pela seiva, subindo a dezenas metros até as agulhas mais altas. A raízes que captam a matéria prima necessária para a construção do conhecimento são os cinco sentidos. As cores, as luzes e sombras, os espetáculos que empolgam, assustam ou comovem, as paisagens, os panoramas, as coreografias da natureza, entram pelos olhos. Os sons, os ruídos, as melodias, as dissonâncias, os sussurros, os uivos, os gritos, os choros, as risadas, as gargalhadas, o farfalhar das folhas, enfim a sinfonia ou as sinfonias dos sons da natureza, tem como porta de entrada o ouvido. O olfato capta os odores, os perfumes exalados pelas flores, pelas ervas, pela chuva, pela natureza como um todo, os maus cheiros denunciando decomposição, estagnação, mofo e podridão. Pelo tato transmitem-se as mensagens de um aperto de mão, de um abraço silencioso mais eloquente que palavras, de um afago, de uma palmada, de uma pancada, de uma arranhada, de uma mordida, de um ferimento, das dores, da brisa, do calor, do frio. Enfim o gosto é o responsável pela triagem dos alimentos e bebidas indispensáveis para a sobrevivência. O que significam as raízes para uma araucária os cinco sentidos significam para o homem, isto é, por meio deles permite-se o acesso às fontes de matérias primas que sustentam a vida biológica e municiam a construção do conhecimento que, por sua vez, determina o perfil da cultura. E, concluindo a metáfora: o ser humano ao morrer perde todos os sentidos e sobra apenas um cadáver. A araucária privada de suas raízes deixa de ser uma árvore para sobrar apenas madeira.
Como os sais minerais e demais nutrientes da nossa metáfora sofrem um processo de transformação para adequá-los às características de uma araucária, assim também as imagens, os sons, os gostos, os odores e as sensações são captados pelos sentidos como matéria prima. Para transformarem-se em conhecimento passam por um processo de significação e resignificação do papel que lhes cabe desempenhar na vida dos indivíduos e das sociedades humanas. Este processo é, em grandes linhas, alimentado pela tradição histórico-cultural em que ocorre e pelas idiossincrasias pessoais. As “matérias primas” captadas pelos sentidos passam por essa dupla via de significação na medida em que são incorporadas harmonicamente no corpo do conhecimento de alguma tradição cultural. As cores não ocorrem como tais na natureza, não são dados naturais objetivos. O fato objetivo que vem a ser a base das cores e de suas combinações, são ondas luminosas de comprimentos diferentes. Para que a luminosidade emitida por um comprimento determinado seja percebida pelo olho como vermelha, azul, branca ou verde, não passa de uma convenção cultural que requer um aprendizado. A criança aprende que o vermelho é vermelho e o verde é verde, o branco é branco e o preto é preto. Mais. O simbolismo que acompanha as cores foi sendo consolidado pela tradição cultural. A mesma simboliza eventualidades opostas em culturas diferentes. Na cultura ocidental o branco inspira um clima festivo, simboliza a pureza, indica com uma bandeira branca a vontade de suspender as inimizades e convidar para a celebração da paz. Em outras tradições como por ex., na chinesa o branco significa luto. Na mesma linha vai o preto. Um traje preto com seus acessórios pode estar associado ao luto e a momentos que requerem respeito, sobriedade, a ocasiões de importância e de significado fora do comum, inclusive no traje da noiva entre descendentes de vesfalianos no sul do Brasil.
Seria demasiadamente longo e não há necessidade de insistir que o que vale para as cores encontra aplicação, em cada caso à sua maneira, nos outros quatro sentidos. O que todos têm em comum é o de servirem como pontes, como janelas que permitem o contato das pessoas com o mundo externo. A perda da visão ou da audição impossibilita ao cego ou ao surdo situar-se, movimentar-se e entender-se no universo de luzes, cores, paisagens, panoramas e espetáculos da natureza, de um lado, e do mundo de sons, dissonâncias, sinfonias e harmonias que povoam o seu entorno. O surdo costuma ser mudo porque o ouvir vem a ser a condição espontânea para desenvolver a capacidade de falar e vem a ser o caminho mais importante para apropriar-se da língua a qual, por sua vez, é veículo convencional normal para contatar e manusear o universo simbólico e conceitual da cultura. Imagine-se agora uma pessoa privada da visão, da audição e como consequência também da fala. Estará condenada a passar uma existência na escuridão total e no silêncio mais absoluto. Nenhum artifício técnico é capaz de compensar satisfatoriamente tal limitação. Se a história registra casos de uma superação do problema ao nível da escritora norte-americana Hellen Keller cega, surda e muda, são, por assim dizer, exceções da exceção. Numa situação extrema de falha de todos os sentidos, a pessoa passaria a ser um ente vivo, reduzido à total inanição, inviável, a não ser por artifícios técnicos, semelhante ao estado de coma profunda ou anestesia geral.
O conhecimento começa, portanto, a ser gerado a partir das informações captadas pelos sentidos e lavados aos centros de processamento do cérebro. A capacidade reflexiva, influenciada, de um lado pela própria natureza das informações, e do outro, pelas características culturais, somadas à percepção idiossincrática do receptor, molda o perfil do conhecimento, um processo por sua natureza dinâmico e sintético. É nesse patamar “pré-científico” que são dados os primeiros passos em direção da construção do conhecimento. O termo “pré-científico” viria a ser injusto se fosse entendido como “o ainda não científico”.