Na sua visita aos maiores museus de arqueologia nos Estados Unidos o Pe. Ballduino Rambo resumiu com precisão a importância de procurar na fase “pré-científica” as raízes de todo o conhecimento posteriormente construído. Chama a atenção de que muito pouco de essencialmente novo foi acrescentado ao que o homem da pré-história já conhecia e praticava. Na sua essência todas as realizações posteriores das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas e das Letras e Artes, devem ser procurados nos objetos expostos daqueles museus. Quem sabe ler e entender essa linguagem em pedra, osso, chifre, madeira, tecidos, vestígios de fogo, evidências de culto, demonstrações de arte, rituais e monumentos fúnebres, convence-se que o gérmen do conhecimento foi concebido, plantado e cultivado a partir do momento em que os primeiros homens deram os passos iniciais para a aventura da espécie humana através dos tempos. Para repetir novamente, pouco importa a aparência física desses seres humanos ou o local e a data em que entraram em cena. O que decide são os seus feitos e o potencial sem limites de desdobramentos em termos de cultura material e imaterial. O resumo da leitura que o Pe. Rambo fez do que viu nas exposições no museu da Philadelphia deixou-a forma de duas reflexões. A primeira contempla a cultura material.
O homem que como caçador e coletor, há muitos milhares de anos, vagava pelas florestas e estepes, de forma alguma era meio ou rês quartos animal. Tratava-se de um verdadeiro homem, até certo ponto altamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como são os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos os instrumentos que servem para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo confeccionava de madeira, conchas, ossos, chifres e sílex, tudo que se fabrica hoje de aço e ferro. Inventou a técnica de assar, de fritar, de refogar, de cozinhar e, como isso, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa que hoje confiamos tranquilamente a cozinheiras e cozinheiros, o homem primitivo teve que tentar, experimentar e excogitar penosamente. Ele foi o descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual nenhuma tecnologia humana é possível. Se hoje acionamos o poder do fogo sob as panelas, atrelamos às máquinas a vapor, ao motor, aos nossos carros, aos navios, às máquinas voadoras, devemo-lo, em última análise, ao homem antigo, que entrou em contato com o fogo quando da queda de um raio, da erupção de um vulcão ou aprendeu a produzi-lo com a fricção de madeiras ou batendo um fragmento de sílex contra o outro. Ele foi também o inventor das armas: do arco e da flecha, do machado de guerra, dos punhais e lanças arremessadas com as mãos. Sorte sua que não desenvolveu a pólvora e a bomba atômica, porque a humanidade teria perecido já nos tempos primigênios. Foi inventor da arte de costurar, comprovada pelas numerosas agulhas de chifre e osso, com o mesmo feitio e quase tão finas quanto as nossas de aço. Confeccionava vestes com peles de animais e não vagava nu por aí como querem aqueles que gostam de venerar animais como seus avós. Foi o homem o inventor da moradia humana, primeiro em cavernas, depois em buracos subterrâneos, cabanas e, finalmente, em casas de verdade, mesmo que fossem menos confortáveis do que nossos arranha-céus e palácios, certamente tinham melhor ventilação e reuniam a família em volta da chama amiga como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas, comemos até nos saciar”. (Rambo, Balduino. Três Meses na América. p. 400-401))
Entre as relíquias expostas num museu caem em vista os fragmentos de um esqueleto de criança, procedente da Riviera Francesa, rodeado com um colar de milhares de conchas perfuradas. De pronto sugere o mundo imaginário humano e religioso, com destaque para a figura da mãe na história dos homens.
Pode-se concluir que um dia estiveram unidos com um barbante e presas numa roupinha. Aqui uma mãe fez acompanhar o seu tesouro para a sepultura com o que tinha de mais valioso (...) E onde se manifestam semelhantes sentimentos está viva a crença num divindade e numa vida depois da morte, realidades que constatamos também hoje entre todos os povos primitivos, como comprova a gigantesca obra de seis volumes de Wilhelm Schmidt, com o titulo: “A Origem da Ideia de Deus”. (...) Nosso amigo e antepassado foi um poderoso artista, antes de mais nada um acabado pintor em preto e branco. Já em outra parte cantei um hino de louvor nesse sentido. Tiremos o chapéu perante o nosso antepassado caçador, inventor, artista dos tempos primigênios. (Rambo, Balduino. Três Meses na América. p. 401)
O conhecimento de que nos acabamos de ocupar é tão verdadeiro e tão útil quanto o conhecimento oferecido pelos recursos mais modernos. Como estes cumpre perfeitamente a finalidade essencial de suprir as necessidades do quotidiano naquelas circunstâncias. Avaliado de outra perspectiva, tem sido o primeiro passo, o primeiro elo na cadeia da construção do conhecimento. Sem esse primeiro elo não teria havido um segundo, um terceiro e os demais, ou simplesmente não teria havido construção de conhecimento algum. Com essa constatação impõe-se nada mais nada menos do que conceber o conhecimento como síntese e validar a “intuição” como um caminho objetivamente tão legítimo quanto a “dedução” e a “indução” para produzi-lo. Mais. Durante milênios foi a ferramenta por excelência com a qual o homem lançou as bases e consolidou os corpos de conhecimento que terminaram nas grandes culturas do ocidente, da oriente próximo, médio e remoto, das altas culturas da América, e das milhares de culturas regionais e locais, dispersas pelos cinco continentes e as ilhas dos oceanos. Um outro fato não pode ser ignorado. Nos diversos grandes complexos culturais definiram-se, aos poucos, métodos e técnicas com a finalidade de lidar com a complexificação crescente. As cosmovisões daí resultantes, os desafios práticos engendrados pelo aperfeiçoamento tecnológico, a tendência natural do homem de obter respostas às perguntas colocadas pelo quotidiano, terminaram por formular propostas de métodos capazes de dar conta da tarefa. Dessa forma a civilização greco-romana como fundamento imediato da cultura ocidental consolidou quinhentos anos antes da nossa era o caminho da “lógica dedutiva” da linha Aristotélica e a Platônica com acento na “compreensão intuitiva”. Depois de séculos sob a influência do Platonismo, a redescoberta de Aristóteles com sua lógica racional e retilínea arredou-o para um plano secundário. Com a entrada triunfal das Ciências Naturais no cenário da dinâmica civilizatória, o empirismo, a experimentação, a observação, a análise e a indução como método de trabalho, foram-se impondo. Aos poucos o método sintético-dedutivo e o analítico indutivo, diminuíram cada vez mais a importância da “intuição” como fonte legítima de conhecer e explicar as realidades e dar uma contribuição de fundo para construção do conhecimento. Relembrando. Francis Bacon reduziu os pilares do conhecimento ao método “analítico-indutivo” e ao “sintético-dedutivo”. A “intuição” parece não ter tido lugar na sua mente racionalista. A utilidade dos dois métodos, o analítico-indutivo e sintético-dedutivo que oferecem quase que exclusivamente os elementos que conferem o perfil ao conhecimento que está sendo produzido pelo mundo afora e legitimado como tal, vem acompanhado de não pequenos riscos e lacunas. Teilhard de Chardin, como já registramos mais acima, depois de classificar o método analítico-indutivo como “esse maravilhoso instrumento do progresso”, chamou a atenção para o paradoxo ao que leva quando de uma aposta irrestrita nos seus resultados. Diante do monte de peças de uma máquina desmontada, perde-se a noção da própria máquina e da função de cada peça quando em funcionamento; de tanto dissecar um tecido ou um órgão vai-se a compreensão de que pertenceu a um ser vivo e de que fora desse contexto, não passa de uma estrutura orgânica qualquer e as informações que pode dar confinam-se ao nível da química e da física. O efeito generalizado dos limites da indução e da dedução formam a base da fragmentação em todos os níveis e em todos os setores que molda o rosto perturbador da pós-modernidade.