[ Reflexões ]

No varejo a mesma nostalgia motiva os estressados seres humanos, triturados pela zoeira e dos congestionamentos das metrópoles, a buscar algumas horas ou momentos de paz, na penumbra silenciosa, porém, eloquente das árvores, povoadas de pássaros executando sons, músicas e sinfonias que, desde as longínquas brumas dos tempos passados, vem embalando os sonhos, os momentos tristes e sofridos e as horas de alegria, dos nossos antepassados de vinte, cinquenta, cem e mais mil anos passados. É na tentativa de saborear pelo menos por algumas horas o prazer de reencontra-se com o cenário que tornou possível a caminhada da espécie humana através dos tempos, que o homem esmagado pelo demiurgo da metrópole, procura em fins de semana um sitio, acampa aos pés de uma cascata, de mochila nas costas percorre trilhas nas florestas, ou fica horas e mais horas escutando a marulhar da água de um arroio de montanha, respirando o ar leve do planalto, contemplando as araucárias várias vezes seculares, ou fica a imaginar-se o “Alguém” quem mora nos abismos, o “Alguém” que faz de eterna sentinela nos mirantes sobre os penhascos.

A partir das constatações acima Edward Wilson sugere que a familiarização da criança com a natureza comece o mais cedo possível a ser estimulada observando o seu entorno natural até nas suas últimas minúcias. Para ele, os fundamentos para a construção de um conhecimento sólido, deve começar o mais cedo possível. E o primeiro passo consiste em despertar e estimular o interesse pelo mundo natural, que todo o ser humano, pela sua própria natureza, carrega consigo desde que veio mundo. 

A mente da criança se abre muito cedo para a natureza viva. Se for estimulada, ela se desdobra em estágios que vão fortalecendo seus laços com as formas de vida não humanas. O cérebro é programado para o que os psicólogos chamam de “aprendizado programado”: nós nos lembramos facilmente de algumas experiências. Em contraste, somos preparados para evitar e aprender outras experiências, ou então aprendê-las e depois evitá-las. Por exemplo, flores e borboletas sim; aranhas e cobras, não. Edward Wilson. 2006. p. 161)

O autor chama também a atenção de que o despertar das habilidades cognitivas na criança a partir da observação da natureza, consolida categorias mentais que encontram aplicação prática em outros departamentos da sociedade humana. A habilidade de classificar categorias naturais como plantas, animais, rochas, sedimentos, fontes, e mais ainda aprender a reconhecer por ex., as árvores de um bosque, os pássaros que vivem nele, os insetos que polinizam as flores, etc., organizam a mente e disciplinam seu uso também em outras atividades. Mesmo que se possa afirmar que toda a criança é um naturalista pela sua própria natureza, um número insignificante irá dedicar-se a algum campo das Ciências Naturais como profissão. Acontece, porém, que o treinamento e a disciplina mental adquiridos na infância e na adolescência, facilitam-lhe na futura profissão por ex., a dar importância a uma boa organização entre os diversos produtos que saem de uma indústria ou são postos à venda numa loja. Concluindo acrescenta: “É possível que o talento para reconhecer padrões recorrentes que identificamos nos artistas, poetas, cientistas sociais, cientistas naturais, seja construído sobre as habilidades fundamentais de percepções que encontramos na inteligência naturalista”. (cf. Wilson. 2006. p. 160)

Quem, como nenhum outro, percebeu o alcance do conhecimento intuitivo como instrumento pedagógico foi Pestalozzi, conterrâneo e contemporâneo de Rousseau. Ele fez da intuição, ou se preferirmos da percepção sensorial, a razão de ser, a base da sua filosofia educacional e do seu método pedagógico. A aplicação prática dos pressupostos pedagógicos de Pestalozzi veio a ser adotada na condição de método oficial para as escolas da Prússia. Desde meados do século XVIII os reis da Prússia foram investindo na educação das novas gerações. Entendiam que somente dessa maneira seria possível formar em grande número pessoas úteis ao Estado e à comunidade nacional, como cidadãos conscientes e comprometidos, como funcionários eficientes e como soldados leais. Um século mais tarde todas as crianças entre os seis e os quinze anos eram obrigadas a frequentar a escola. O resultado não deixa dúvidas. Em 1870 a porcentagem de analfabetos entre os meninos de mais de dez anos não passava dos dez por cento e das meninas de quinze por cento. Em não poucos lugares não passava dos cinco por cento. Somada à política oficial de por meio de dispositivos legais implantar a obrigatoriedade do ensino entre os seis e os quinze anos, foi de importância fundamental na estrutura educacional. Os povoados mais insignificantes contavam com uma escola primária e cada cidade um pouco mais importante oferecia um ginásio. O interesse pela educação fazia parte das preocupações, desde os mais altos funcionários, empresários, comerciantes, profissionais liberais, donas de casa e o povo em geral. Investiam tempo e dinheiro em parceria com o governo no esforço de erradicar a ignorância do povo e aprimorar cada vez mais a filosofia e os métodos da educação. 

E o esforço concentrou-se exatamente no ponto mais sensível, isto é, no pressuposto teórico e metodológico do sistema escolar que pode ser definido como “prussiano-pestalozziano”.  Fundamentou-se na doutrina de Rousseau de que a educação é um processo; que esse processo deve fluir livremente da natureza da criança que é boa por natureza; que cada uma é peculiar quanto à sua individualidade. Libânio destacou como ideias mais importantes de Rousseau:

1) A preparação da criança para a vida futura deve basear-se no estudo das coisas que correspondem às suas necessidades e interesses atuais. Antes de ensinar as ciências, elas precisam ser levadas a despertar o gosto pelo estudo. Os verdadeiros professores são a natureza, a experiência e o sentimento. O contato da criança com o mundo que a rodeia é que desperta o interesse e suas potencialidades naturais. 
2) A educação é um processo natural, ela se fundamenta no desenvolvimento interno do aluno. As crianças são boas por natureza, elas têm uma tendência natural de se desenvolverem. (Libâneo, J.   C. Didática. São Paulo: Cortez, 1991)

Não é aqui o lugar para detalhar a proposta pedagógica e o método didático de Pestalozzi, mas chamar a atenção para a importância do conhecimento construído a partir dos dados, ou, se preferirmos, da matéria prima que é oferecida pela via sensorial-intuitiva. Entre as perspectivas pelas quais seu significado pode ser apreciado, destacamos.

 Percebe-se um paralelismo sintomático, uma analogia que faz pensar, entre a construção do conhecimento de uma criança e o conhecimento elaborado pela humanidade nos assim chamada fase “pré-científica e pré-racionalista”, ou se preferirmos, antes de entrar em ação método sintético dedutivo e o analítico indutivo. Os sentidos captam as informações que são processadas e elaboradas intuitivamente. Os significados que lhes são atribuídos, o papel que lhes cabe cumprir no quotidiano das comunidades humanas e dos indivíduos, são determinados pela tradição cultural e pelas idiossincrasias individuais. Propomos como exemplo a astrologia. A impressão que os astros e a coreografia celeste deixam no homem que contempla o firmamento noturno sem nuvens, representam animais, personagens imaginários, eventos misteriosos, presságios, infortúnios e muito mais do que o espetáculo noturno é capaz de despertar na imaginação. Nesse processo de aprendizagem e de elaboração intuitiva e sensorial das informações captadas pelos sentidos, adquirem forma os muitos corpos de conhecimento construídos durante séculos e milênios. Corresponde à fase, diria, infantil, na qual tanto a criança como também a humanidade, atribuem personalidade, significado, simbologia ao mundo que entra pela janela dos sentidos. É nessa fase que se consolidam os elementos qualitativos das culturas expressos nas crenças, nas religiões, nos costumes, nos hábitos, nos valores sociais, éticos e morais. Enfim é nessa fase que acontece a educação e a formação da personalidade do ser humano. E é nessa fase, nesse patamar, também que se consolidam as linhas mestras das tradições culturais. E na analogia entre a fase “infantil”, a fase do aprendizado e da colocação dos fundamentos da personalidade pela percepção sensorial e a intuição na educação, tanto de uma criança, quanto os fundamentos das culturas, um elemento determinante merece atenção. Assim como a forma e, principalmente, a consistência do conteúdo assimilado pela criança determinam como o “Leitmotiv, como o Norte para o resto da vida, assim também as conquistas dos povos na sua fase “infantil”, continuam repercutindo de alguma forma até hoje. Representam o perene que perpassa o transitório da história da humanidade. Voltamos a chamar a atenção ao Horóscopo que continua, mais do que nunca, gozar de público e popularidade. O conhecimento adquirido via sensorial-intuitiva perpassa a história individual e a história coletiva como um “som subliminar e a ressonância que desperta” faz com que resulte numa sinfonia harmônica ou numa cacofonia desafinada. Foi essa, sem dúvida, a razão de ser porque a educação infantil e fundamental tinham em vista o desabrochar das potencialidades inatas na criança, pondo-a por meio dos sentidos em contato com o mundo em que vive. A proposta educacional e curricular, ditada pelo fato de a criança “ser boa por natureza” e ser levada pela “tendência natural de desenvolver-se”, foi, por isso, concebida como facilitadora para despertar e desenvolver as qualidades e potenciais inatos. O resultado prático da educação forma um cidadão útil à comunidade e um cidadão consciente das suas obrigações e direitos em relação à família, à comunidade local, regional e ao Estado. Ao educador, mestre ou professor cabe a tarefa de tornar o aprendizado o mais espontâneo e o mais amplo e completo possível. Os resultados dessa filosofia e prática educacional concebida e popularizada pela Prússia, foram tão espetaculares que foram sendo copiados e implantados em outros países, também fora da Europa. Forneceu, por ex., a base teórico-metodológica da proposta pedagógica executada nas escolas comunitárias teuto-brasileiras no sul do Brasil até 1940. Para maiores detalhes sobre essa escola recomendo os dois volumes que publiquei na década de 1990: “A escola Teuto-Brasileira Católica e “Escola Comunitária Teuto-Brasileira Católica – Associação dos Professores e Escola Normal”.

Uma vez consolidado o conhecimento obtido pela via sensorial-intuitiva e, paralelamente, definidos os traços fundamentais da personalidade, a criança e o adolescente estava em condições de avançar na construção do conhecimento, recorrendo a “dedução e a indução”. Seguia então a fase em que o educando apropriava-se                                                                                                                                                                                                                                                                                                         dos instrumentos indispensáveis para movimentar-se com sucesso nos campos das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas e das Artes e Letras. O currículo punha-o em contato com a matemática, a física, a química, a história natural, a geografia, as línguas clássicas e modernas, as artes, a filosofia. Só depois de ter-se familiarizado com esse vasto mundo de conhecimentos de cunho geral e com os respectivos métodos e ferramentas, oferecidos nos famosos “gymnasia”, o jovem partia para a especialização e ou profissionalização: Direito, medicina, engenharia, filosofia, línguas, literatura, biologia, botânica, zoologia, história, geografia, etc., em escolas técnicas, politécnicas e universidades convencionais. As crianças, candidatas a futuras produtoras de conhecimento, encontravam escolas e mestres que se valiam do potencial inato como ponto de partida para a educação. Desenvolvê-lo ao máximo despertando e aperfeiçoando ao máximo possível a percepção sensorial aliada à intuição, resumia a tarefa das escolas elementares e dos seus mestres. Superada essa etapa o esforço concentrava-se no aparelhamento do adolescente e do jovem com as ferramentas indispensáveis para enfrentar uma futura especialização acadêmica ou profissional, oferecidas por uma formação a nível genérico nos “gymnasia”. Nas duas fases iniciais a que nos acabamos de referir, a preocupação com a futura profissão dos alunos não entrava como fator, a não ser muito marginal e secundário, na proposta e execução do currículo. O que decidia é o fato de que o egresso dos “gymnasia” estivesse em condições de movimentar-se com desenvoltura na sociedade em que deveria atuar; tivesse consolidado uma personalidade que se rege por princípios e valores pessoais, sociais e éticos sólidos e coerentes; e que, por isso mesmo seja um membro útil à sua comunidade e um cidadão comprometido com o Estado, fosse  nas mais diversas eventualidades. A formação especializada só depois de vencidas as duas etapas anteriores. Engenheiros, médicos, advogados e juristas, políticos, economistas, pesquisadores especializados nas mais diversas áreas do conhecimento, acadêmicos, filósofos, teólogos, todos compartilham da base comum que lhes moldou a personalidade e as bases do conhecimento. Esse fato faz com que um médico esteja em condições de dialogar com um historiador, um filósofo ou um artista; um filósofo ou teólogo tenha condições de entender-se com um geneticista ou um físico; de um jurista ou economista analisar com proveito questões que importam em administração, com sociólogos, antropólogos, médicos, ...; os docentes e pesquisadores das universidades se darem conta de que a qualidade dos seus esforços têm tudo a ver com a troca dos resultados e, principalmente, com uma sincera e efetiva cooperação e colaboração interdisciplinar. 

This entry was posted on domingo, 23 de outubro de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.