Archive for junho 2022

Bicentenário da Imigração - 49

O Projeto Educacional dos Jesuítas

Apesar das enormes dificuldades enfrentadas pelos padres Lipinski e Sedlac nos primeiros anos da sua atividade pastoral entre os imigrantes alemães do Brasil, o projeto da colonização começava a emitir  sinais de consolidação.

Finalmente em 1858 aportaram os padres Michael Kellner e Bonifaz Klüber e o irmão leigo Franz Rutkamp. O reforço veio em boa hora. O campo da atividade pastoral entrara num ritmo de expansão fora do comum. Na direção oeste do Estado do Rio Grande do Sul, estavam sendo abertas novas fronteiras de colonização, nos vales do Rio Taquari, Pardo e Jacuí. Dezenas de novas comunidades foram sendo organizadas nas picadas abertas na mata virgem. No mesmo ritmo multiplicaram-se igrejas, capelas e escolas. Não demorou e novas paróquias surgiram: São Leopoldo em 1859, santa Cruz em 1865, Porto Alegre em 1867, Bom Jardim em 1867, Estrela em 1873, Montenegro em 187l, Bom Princípio em 1873, São Salvador em 1875, São Sebastião em 1881, Feliz em 1884, Novo Hamburgo em 1895, Taquara em 1898. Em termos espaciais essas paróquias cobriam uma área de aproximadamente 250 por 50 quilômetros. A maioria delas foi implantada pelos padres jesuítas e na primeira fase por eles administradas. 

Paralelamente à expansão da infra-estrutura eclesiástica deu-se a multiplicação das escolas comunitárias. Entre 1824 e 1850 foram criadas 10 dessas escolas. Até 1875 acresceram mais 40, um aumento, portanto, de 400%. Ao termino do século dezenove o número subira a 150. O resultado deste esforço no plano educacional é facilmente imaginável. Alem de significar um poderoso e decisivo aliado no incentivo à religiosidade, evitou a instalação do analfabetismo entre os imigrantes alemães e seus descendentes. 

Se os primeiros jesuítas alemães haviam sido convocados para socorrer  espiritualmente os colonos alemães, sua missão na verdade não se restringiu à pastoral propriamente dita. Os padres espanhóis que em 1842 se fixaram em Porto Alegre, receberam do bispo do Rio de Janeiro a incumbência de renovar e dinamizar o catolicismo na Província do Rio Grande do Sul, de acordo com o que previa o Projeto da Restauração Católica em vias de implantação em toda a Igreja. Sua atividade pastoral pautou-se, desde o começo, de acordo com essa perspectiva. Depois que a Missão passou para a jurisdição da Província Alemã, a linha mestra desse objetivo não sofreu modificação. A implantação  do espírito da Igreja da Restauração entre toda a população, independentemente da origem étnica, motivou os jesuítas que vinham chegando em número cada vez maior, a lançar mão de um dos instrumentos evangelizadores mais conhecidos e mais tradicionais da Ordem: A educação em todos os níveis. O que se passou no sul do Brasil nada mais foi do que colocar a serviço da evangelização esse instrumento infalível.

Ao assumirem a missão pastoral entre as comunidades de imigrantes alemães, encontraram essas organizadas em torno de suas capelas e, principalmente, em torno de suas escolas. A capela até que podia ser dispensada, a escola não. Os padres acharam assim postas as bases para, de imediato, porem em andamento uma promissora atividade pastoral e, ao mesmo tempo, cuidar da educação popular que, por sua vez, significava a garantia do êxito da primeira. Até aí as escolas haviam assegurado o ensino religioso paralelamente com a formação profana. As crianças aprendiam simultaneamente a tabuada, as quatro operações, o ler e o escrever, os rudimentos essenciais da religião e assimilavam os preceitos morais e disciplinares da Igreja. Essa realidade fez com que os padres intuíssem, desde logo, o grande alcance da escola. E não vacilaram. Fieis aos preceitos a Ordem fizeram da escola e da educação o grande aliado na atividade pastoral. Desde então trabalharam com convicção de que a compreensão das verdades da fé e a interiorização do espírito cristão, acontece via educação. A partir daí a  escola e a educação passaram a ser uma  das suas grandes prioridades. 

Os primeiros contatos com os assentamentos  dos colonos alemães convenceram os jesuítas de um fato inegável. Os núcleos de colonização consolidavam-se no mesmo ritmo em que se multiplicavam. A evolução de um bom número deles  em centros urbanos com um comércio crescente, uma industrialização incipiente, dotada de grande potencial de crescimento, somada a uma sociedade em processo de urbanização, ocupariam, em questão de uma ou duas gerações, o espaço de não poucas comunidades de colonos. Em segundo lugar  não havia dúvida de que no Rio Grande do Sul o poder político e a hegemonia econômica, concentrava-se exclusivamente nas mãos dos estancieiros de origem luso-açoriana. Frente a essa realidade não restava dúvida de que os imigrantes alemães e seus descendentes permaneceriam à mercê à margem da dinâmica política e econômica por mais algumas décadas, na hipótese de não se partir para iniciativas capazes de franquear aos filhos dos colonos os caminhos da ascensão social e conseqüentemente o acesso às decisões políticas e econômicas. Confinar as comunidades alemãs em suas picadas e linhas equivalia a condená-las à estagnação, à decadência e ao insucesso. O bom senso e a lógica mandavam que fossem construídas, o mais depressa possível, pontes em  condições de superar a justaposição, no mesmo espaço geográfico e reunidos sob o mesmo regime jurídico e legal, de lusos, açorianos, alemães e, mais tarde italianos, poloneses e demais vertentes étnicas. Somente assim seria possível assegurar para o futuro a consciência de uma cidadania comum, a serviço da mesma nação. Perguntar a um jesuíta pelo caminho a ser escolhido, significava perguntar o óbvio: a escola, a educação, a formação em sintonia com as exigências concretas do tempo.

De um lado era inadiável  criar e fazer funcionar uma instituição de ensino capaz de formar lideranças  econômicas, sociais, educacionais, políticas e religiosas, acessível a todas as procedências étnicas. De outro lado não há necessidade de insistir que, pela sua própria natureza, as escolas comunitárias não estavam em condições de assumir essa tarefa. Impunha-se, portanto, a criação de escolas de nível mais elevado, preparadas para receber os filhos das oligarquias estancieiras e oferecer-lhes a formação e a educação exigida para cumprirem as funções que no futuro lhes caberia exercer na sociedade local, regional, nacional e até internacional. A escola deveria formar ao mesmo tempo as primeiras gerações de lideres religiosos e leigos surgidos  entre os imigrantes.

O ensino elementar já não bastava para responder às exigências de formação que se vinham manifestando também no seio das comunidades coloniais. A consolidação e o êxito da colonização haviam alcançado um nível tal que para os filhos dos colonos, dos artesãos, dos comerciantes, etc., a formação elementar já não bastava. Exigiam-se conhecimentos técnicos mais apurados para tocar uma casa de comércio de maior porte, desenvolver empreendimentos artesanais em indústrias nascentes e sobretudo o manejo da língua do Pais. De outra parte tornava-se cada vez mais visível entre os filhos dos imigrantes aspiração de, por meio de uma formação mais elaborada, abrir caminho para os postos de maior relevância na sociedade, como o magistério, o sacerdócio, a medicina, a jurisprudência e, por que não, a vida pública na condição de funcionários, políticos, magistrados, militares, diplomatas, etc. 

Essa situação fez com que o Pe. Feldhaus, recém nomeado pároco de São Leopoldo, começasse com tratativas concretas para a instalação  e uma escola que ultrapassasse o nível do ensino elementar. Como primeira evidência impunha-se a aquisição de instalações apropriadas para acomodar a escola e os alunos. 

Os prédios desativados de um antigo moinho de tanino, de um curtume e de uma casa de  moradia, localizados próximos ao rio ao lado da igreja, terminaram sendo o local escolhido para abrigar a futura escola. A aquisição da propriedade foi autorizada pelo Pe. Ponza, visitador da Missão, então subordinada à Província Romana e, em 22 de junho de 1869, aconteceu a assinatura dos documentos de transferência da propriedade. 

O Colégio que abriu as portas para os 12 primeiros alunos,  e foi solenemente inaugurado por D. Sebastião Dias Laranjeira, bispo da diocese do Rio Grande do Sul, na festa do Rosário de 1869, com o nome  de Colégio Nossa Senhora da Conceição de São Leopoldo. Naquele momento, com certeza, ninguém teria sido capaz de prognosticar a importância que o “Conceição”, como seria carinhosamente chamado por alunos, ex-alunos e a sociedade em geral, desempenharia nos 40 anos que se seguiram, formando uma influente elite intelectual para o Estado e o Pais. O respeito e o reconhecimento que conquistou pode ser avaliado pela manifestação de um ex-aluno, o médico e botânico João Dutra, feita no final da década de 1930: “Eu doaria aos jesuítas todos os meus bens se fizessem funcionar novamente uma instituição de ensino como foi o Colégio Conceição”. 

O colégio fora inicialmente pensado pelos fundadores como seminário para a formação do clero e seminário ou escola normal para a formação de professores. Uma seqüência de percalços, porém, chegaram a comprometer seriamente a consolidação da obra. Ora foi a concorrência de escolas protestantes, ora a enchente devastadora de 1873, forçando a interrupção temporária das atividades, ora o clima hostil ao clero, principalmente aos jesuítas, durante o gabinete Rio Branco, ora o episódio Mucker, ora o susto causado pela varíola, etc. Não faltaram também momentos de grande estímulo como foi a visita por parte do Presidente do Estado acompanhado pelo bispo, aproveitando o lançamento da pedra fundamental para a estrada de ferro Porto Alegre – São Leopoldo. Um outro fator decisivo para a continuidade do Colégio, foi a chegada a São Leopoldo de um número considerável de reforços de jesuítas de ótima formação, expulsos da Alemanha pelo Kulturkampf.

Aos alunos das primeiras  levas exclusivamente de origem alemã, foram-se somando, em número crescente até se tornarem maioria, filhos de luso-brasileiros. A instituição na condição de seminário tanto para a formação  de sacerdotes como de professores provara, em pouco tempo, ser ilusória. Uma decisão tomada em 1877 imprimiria então ao Conceição o rumo definitivo até o  encerramento das suas atividades em São Leopoldo em 1912. O Colégio apostou na preparação dos seus alunos para os chamados “Exames Parcelados”, realizados em Porto Alegre. O resultou superou todas as expectativas. Entre os seis candidatos conceituados como excelentes, figuravam três do Colégio Conceição, todos filhos de imigrantes: Nicolau Knob, Heinrich  Konzen e Lucas Hansel. O fato obteve tamanha repercussão que o jornal “Deutsche Zeitung”, notório pela hostilidade aos jesuítas registrou: 

Fomos informados que os alunos Nicolau Knob, Heinrich Konzen e Lucas Hansel de fato se distinguiram. De maneira alguma concordamos com a orientação do ensino e da educação dos jesuítas. Não nos é licito, entretanto, deixar de cumprir o dever de justiça, reconhecendo os resultados exitosos da instituição tornados públicos.  (Deutsche Zeitung) 

Com esse resultado o gelo estava quebrado e o Colégio Conceição enveredou por um ritmo de crescimento acelerado. O número de alunos foi crescendo de ano para ano. Só para se ter uma idéia desse crescimento: em 1880 os alunos somavam 65 e dez anos depois, em 1890 eram 223.

A década de 1880 marcou a consolidação tanto física como acadêmica do Colégio Conceição. Foram erguidos os prédios definitivos que abrigavam todos os setores da instituição: alojamentos para os alunos, salas de aula, um amplo salão de atos  e teatro, museu, laboratórios, capela, moradia dos padres, oficinas, etc. No plano acadêmico uma estrutura, um currículo e um regime disciplinar severo, inspirado no famoso Colégio Stella Matutina, que os jesuítas mantinham em Feldkirch na Áustria, conferiu consistência e profundidade à formação dos alunos. O estudo de línguas, a formação clássica, complementada por disciplinas de cunho mais prático e profissional, fez com que os egressos do  Conceição não tivessem dificuldades maiores em competir em qualquer nível. Nos seus apontamentos pessoais o Pe. Johannes Rick, por algum tempo professor da instituição anotou:

No tempo em que lecionei Matemática e História Natural no Ginásio Nossa Senhora da Conceição a instituição estava equiparada aos ginásios do Estado, significa que os egressos podiam freqüentar universidades. O currículo durava seis anos e estava abarrotado com um monstruoso conteúdo didático. Só para as línguas: português, latim, grego, francês, inglês e alemão, exigia-se mais conteúdo do que nos ginásios alemães de oito anos. A atividade como um todo era insalubre, corporal e espiritualmente em todos os sentidos. Encontrei os alunos no seu conjunto aplicados e também inteligentes, alguns até prematuros. Obviamente não era possível profundidade. Excetuando as revoluções que faziam parte da vida sulamericana e que repercutiam intermitentemente no internato, o comportamento dos alunos era tão bom quanto nos ginásios alemães. A disciplina germânica agradava aos pais, mas com certeza nem sempre aos alunos! (Rick, 2.004, p. 18)

A fama do Conceição como instituição de ensino de alto nível, espalhara-se no início dos aos noventa, por todo o Sul do Pais e até despertara as atenções das autoridades educacionais federais. De todo o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e até do Paraná afluíam os alunos, filhos de fazendeiros, comerciantes, profissionais liberais, funcionários graduados, etc., para na condição de internos, assimilar uma sólida  formação acadêmica e plasmar suas personalidades em meio a uma atmosfera de cultura, religiosidade de alto nível e de uma disciplina quase prussiana.

O Pe. Balduino Rambo, referido-se ao período do apogeu do Colégio Conceição, escrevendo, em 1958, a biografia do Pe. Rick na revista Montfort da Áustria, assim se manifestou:

O Ginásio Conceição em São  Leopoldo, então no auge de sua atuação, fora pensado originalmente como Seminário para formar professores para as colônias. Depois de pouco tempo abriu as portas também para a juventude de língua portuguesa. Conquistou rapidamente tamanha fama que, ainda hoje, ecoa como uma longínqua saga no ouvido dos alunos ainda vivos. Cavalgando durante semanas acorriam os filhos dos fazendeiros ricos por 600 quilômetros de distância, vindos de todos os recantos do Estado e até do Estado de Santa Catarina. Em Porto Alegre e nas cidades vizinhas, era de bom tom que os rapazes estudassem em São Leopoldo. (Rambo, Balduino, 1958, p.9)

A esta altura faltava ao Conceição conquistar mais um titulo: o de “equiparado ao Colégio D. Pedro II”. O Pe. Schupp resumiu a façanha assim:

Desta vez foi o Pe. Konrad Menz, prefeito geral, que se empenhou pessoalmente na questão com extraordinário entusiasmo e extrema energia, junto ao Ministro da Educação e junto a outras personalidades com poder de decisão.  Tudo se encaminhou para uma solução favorável e finalmente no dia três de fevereiro de 1890, o Ministro assinou o decreto de nº 3580, conferindo à instituição o caráter de um “Gymnasio equiparado”. Este ato teve como conseqüência que a instituição, embora sob a fiscalização de um funcionário do governo, um “fiscal delegado”, detinha as credenciais legais para realizar não apenas os exames de madureza, como também conferir o grau de bacharel. Desta maneira alcançara-se tudo, tanto na organização material quanto na consolidação interna do Colégio. Em relação ao primeiro o Pe. Luiz Sarazin, como excelente ecônomo, soube salvaguardar os interesses da obra e em relação ao segundo o grande mérito cabe ao Pe. Mereg. Este último levou o Colégio ao apogeu como instituição de ensino. (Schupp, 2.004, p. 18)

O episódio da equiparação do Colégio Conceição levanta uma questão digna de reflexão. O Colégio dos Padres é contemplado com uma demonstração suprema de reconhecimento por parte das autoridades da República recém instalada. Pelo fato de consagrar o regime de separação do Estado e da Igreja, era de se esperar no mínimo uma protelação da equiparação duma instituição sob a condução e orientação de jesuítas, a maioria deles vítimas do Kulturkampf na Alemanha. Um segundo ponto, até certo modo complementar, tem relação com o fato de persoalidades muito influentes na República, como Rui Barbosa, articulavam um projeto de lei visando expulsar os jesuítas do Pais. Se, apesar de tudo, a equiparação foi concedida, é sinal que o Colégio Conceição gozava  de um conceito inquestionável e contava com o apoio e a  provação de personalidades não menos influentes. 

Embora o Colégio Nossa Senhora da Conceição se tivesse desviado significativamente da sua proposta original como Seminário de formação de sacerdotes e Escola Normal para a formação de professores contribuiu contudo decisivamente, de forma indireta, para com a renovação espiritual e cultual. Desde a sua fundação até o seu encerramento passaram pelas suas salas de aula, mais de 2000 alunos internos. Entre os egressos  do Conceição contam-se comerciantes, industriais, magistrados, médicos, dentistas, advogados, militares, professores, políticos, administradores públicos, sacerdotes. Outros ainda ocuparam postos na hierarquia eclesiástica incluindo um  arcebispo.

Formando elites atuando em todas as esferas da vida civil, militar e eclesiástica, o Ginásio Nossa Senhora da Conceição foi o grande responsável direto e indireto por uma série  de benefícios para o clero e a Igreja. Entre eles merecem citação: o nível do ensino e o contato pessoal com os padres devolveu a eles, em grande parte o respeito, desfez preconceitos de modo especial em relação aos jesuítas, a religião voltou a fazer parte da vida de uma parcela crescente da sociedade. O Pe. Schupp resumiu a questão:

É óbvio que entre os alunos houvesse sempre aqueles  nos quais qualquer arte de educar resultava estéril. Isso, entretanto, não impediu que lentamente uma nova percepção tomasse conta de camadas sempre mais amplas da sociedade, levando aos poucos a uma total reviravolta da opinião pública em favor da religião e do estado religioso. Evidentemente isso não significa que o povo começasse logo a praticar a religião. Até chegar a esse ponto era necessário ainda um bom tempo. Não se pode ignorar também o fato de que os alunos que no tempo do Colégio freqüentavam os sacramentos, apos o seu egresso, afastavam-se, na sua grande maioria da religião. Mas o terreno para um futuro melhor estava preparado e isso se deve em última análise ao Colégio de São Leopoldo e com isso o Colégio cumpriu a sua missão. (Schupp, 2.004, p. 20)

Infelizmente e, 1912 a lei Rivadavia privou o Colégio Senhora da Conceição do status de equiparado ao D. Pedro II.

Além da perda da equiparação do Conceição com o D. Pedro II, um segundo fator de peso não menor, levou à decisão do encerramento das atividades da instituição como colégio interno para leigos. A evolução de Porto Alegre para centro econômico, financeiro e cultural, além de administrativo de que gozava como capital do Estado, rendeu-lhe um desenvolvimento extraordinário em todos os sentidos. Tornou-se o mais importante pólo de atração para comerciantes, industrialistas, profissionais liberais, artistas, artesãos, intelectuais, militares, funcionários, magistrados, etc. etc. Esse processo colocou São Leopoldo cada vez mais na posição de cidade periférica de segunda grandeza.

Face à nova realidade gerada com a perda da equiparação e a crescente hegemonia de Porto Alegre, foram decisivos para o encerramento das atividades do Colégio Conceição como internato para leigos e a concentração do esforço na formação de lideranças no Ginásio Anchieta na capital, com a opção paralela pelo regime preferencial de externato. É do Pe. Schupp a observação:

Impuseram-se as nítidas vantagens do externato sobre o internato: a maior liberdade, tão importante para a formação do caráter e a livre decisão dos alunos  em aceitar a prática da religião, somados à maior facilidade para estabelecer uma sintonia da parte da instituição e os pais. (Schupp, 2.004, p. 20)

Além desses motivos mais visíveis um outro contribuiu para a decisão. Em 1903 o Ginásio Anchieta conseguira também a equiparação ao  D. Pedro II, na condição de externato do Conceição de São Leopoldo. Essa conquista imprimiu-lhe um crescimento fora do comum. Tanto assim que em pouco tempo o número de alunos subiu para 300 e logo depois para 400, com pedidos de vagas em contínuo aumento. 

A evolução dos acontecimentos e a interdependência  dos dois ginásios, um como externato do outro, não tardou em revelar uma serie de inconvenientes. A administração comum de ambos, somada à complicação oriunda do planejamento e execução dos programas de ensino, aconselhavam a desvinculação entre si das duas instituições. Sem perda de tempo o Pe. Johannes Lütgen, reitor em São Leopoldo, muniu-se de uma carta de recomendação do Dr. Borges de Medeiros, Presidente do Estado e, com ela na mão, viajou para o Rio de Janeiro. Escudado pela intermediação de personagens importantes, logrou a separação dos dois  ginásios, mediante um decreto do Ministério da Educação datado em 23 de junho de 1809. A partir daí o número de alunos do Anchieta não parou de crescer. Num único ano foi preciso recusar mais de 100 candidatos. Consolidaram-se assim os pressupostos para que o Ginásio Anchieta enveredasse pelo caminho da formação sólida que fez dos egressos de suas salas de aula candidatos competitivos, para as vagas oferecidas pelas  faculdades e cursos superiores então existentes. Convém ainda chamar a atenção que o Anchieta, embora  disputando hoje o espaço com dezenas de escolas públicas e privadas, de alguma forma, continua cumprindo a sua missão original, isto é, oferecendo um ensino de qualidade e uma sólida formação do caráter aos alunos que o freqüentam. 

Acontece que para os jesuítas  a finalidade dos colégios, universidades e demais instituições de ensino que mantém, perseguem um objetivo que ultrapassa em muito a simples formação acadêmica ou profissional. Esses não passam de instrumentos limitados que exigem a complementação por outros

Bicentenário da Imigração - 48

A situação legal da Missão no Rio Grande do Sul

Os padres Lipinski e Sedlalc que começaram a atuar  entre os imigrantes alemães a partir de 1849, encontraram-se inicialmente sob a jurisdição da Província dos jesuítas da Espanha. Quando o Pe. Lipinski foi nomeado superior da Missão, o cargo conferia-lhe  autoridade apenas sobre a atividade entre os colonos alemães. Essa situação prolongou-se até 1861. Naquele ano a Missão passou para a jurisdição da Província Romana. Seguiram-se depois as visitas de vários visitadores romanos, entre eles o Pe, Rafael de Ponza,  em 1868, antigo Provincial da Província Romana. Seus relatórios ao geral da Ordem, Pe. Beckx, resultaram em 14 de julho de 1869, na transferência da Missão dos jesuítas no Rio Grande do Sul para a jurisdição da província da Alemanha. A dependência da Província Alemã se prolongaria  até o final da década de 1920, quando passaria a província autônoma, como Província Sul-Brasileira da Companhia de Jesus com jurisdição sobre os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e os dois Mato Grosso. O Pe. Feldhaus foi nomeado primeiro superior de toda a Missão dos jesuítas no Rio Grande do Sul.

No ano da chegada dos primeiros padres alemães (1849), os imigrantes alemães e a primeira geração nascida no Brasil, concentravam-se ao norte e noroeste de São Leopoldo, do foco inicial da expansão, num raio de aproximadamente 50 quilômetros. Dezenas de comunidades viviam confinadas nas suas picadas e linhas, em torno de três pólos de  maior expressão: Dois Irmãos, São José do Hortêncio e Bom Jardim.

A situação religiosa dos colonos privados durante um quarto de século de uma ausência religiosa regular, foi assim descrita pelo Pe. Ambros Schupp.

Ao chegarem os dois padres encontraram as picadas numa situação religiosa nada animadora. A população estava fortemente misturada. Protestantes e católicos somavam aproximadamente o mesmo número. Esse estado de coisas oferecia sérios problemas para o exercício da cura de almas, como sem tardar se verificaria. A conseqüência mais imediata e mais visível foram os casamentos mistos e a indiferença religiosa. Entre as duas confissões estabelecera-se, pouco a pouco, uma realidade parecida à fratura mal curada de um osso, cuja posterior correção implicaria em consideráveis sofrimentos. A prolongada privação de uma cura de almas regular, generalizara também entre os católicos, uma espécie de embrutecimento religioso.

Apesar de tudo, porém, a necessidade religiosa subsistira. E como careciam de um sacerdote, recorreram a um culto divino leigo e confiaram a sua condução a um colono escolhido do seu meio. Esse, entretanto, mais piedoso do que sensato, desgarrou-se pouco a pouco de todo do aminho correto, permitindo-se os procedimentos mais inusitados. 

Dirigia-se ao altar vestindo uma simples túnica de cujos bolsos emergiam  as cartas do baralho. Dois meninos vestindo sobrepelís o auxiliavam enquanto ele próprio imitava todos os procedimentos do sacerdote. Valia-se de um missal e entoava o Glória, cantava as Orações, a Epístola, o Evangelho, o Credo, o Prefácio. Em resumo fazia tudo o que o sacerdote costumava fazer, apenas não pronunciava fórmula da consagração.

A situação já se prolongara por um longo tempo, quando em 1847 e 1848 veio um grande número de novos imigrantes. Obviamente ficaram muito escandalizados com as atitudes indignas e ridículas do homem e exigiram o seu afastamento. Encontraram, porém, uma decidida resistência. Os velhos colonos haviam-se acostumado demais aos abusos e protegeram o homem, ao mesmo tempo em que enfrentaram os recém-chegados com os qualificativos mais pesados.

A discórdia avolumava-se a cada dia que passava, dando a impressão que os colonos se encontravam aos domingos e feriados, não para rezar, mas para brigar. Faltou pouco para se agredirem com machados e machadinhas. (Schupp, 2.004, p 178-179)

Para completar o cenário em que os missionários iriam trabalhar temos as difíceis condições de locomoção. O cavalo e a mula eram as únicas  alternativas para percorrer a região. Além das grandes distâncias, as trilhas abertas na mata, os caminhos precários e as estradas primitivas, se é que se pode falar em estradas, tornavam as cavalgadas  solitárias  por horas a fio,  cansativas, desgastantes e, não raro, perigosas. Mais tarde ocorreram casos fatais em que padres pereceram em conseqüência  de quedas do cavalo ou afogamento na correnteza dos rios. 

Foi nesse contexto social, religioso e físico geográfico que os padres Lipinski e Sedlac e o irmão Sontag, fixaram residência em Dois Irmãos e deram início à obra missionária que evoluiria, nas décadas que se seguiram, para uma autêntica obra civilizatória. 

Uma dos desafios mais urgentes a enfrentar foi a disputa religiosa entre os colonos mais antigos e os recém-chegados da Europa. Depois de ouvir detalhadamente as duas facções, o Pe. Lipinski chegou à conclusão que os últimos estavam mais próximos do caminho certo. Num tom muito sério durante o sermão, traçou as diretrizes para a prática religiosa, colocando um ponto final às desinteligências. Em questão de pouco tempo a crise estava superada e a vida religiosa nas comunidades entrou num ritmo afinado com os ensinamentos e as normas disciplinares oficiais da Igreja. O ensino religioso intenso e sistemático ministrado pelos missionários, os sermões com seu sólido conteúdo doutrinário e um forte apelo moralizador dos costumes, dirigido às crianças, aos jovens e adultos, o estímulo diuturno para a recepção dos sacramentos, fizeram das comunidades católicas, em questão de poucos anos, modelos de vida e prática religiosa, afinadas com o Projeto da Restauração Católica.

Ainda no mês de agosto o Pe. Lipinski experimentou o seu batismo de fogo ao deslocar-se a cavalo para Bom Jardim, duas horas distante de Dois Irmãos. Contam os relatos que chegou no destino depois de atravessar a mata virgem, cruzar por pântanos e enfrentar arbustos cobertos de espinhos. Precisou de ajuda para desmontar e tratar as mãos ensangüentadas, para depois continuar a cavalgada e pernoitar na casa de um colono.

Nada disso, porém, assustou ou deteve o zeloso missionário. No dia 24 de agosto encontramos o Pe. Lipinski em São José do Hortêncio. Essa primeira incursão no território confiado à responsabilidade dos dois padres, foi suficiente para dar-lhe uma idéia inicial do porte do empreendimento. Tratava-se de uma região montanhosa, coberta de mata virgem, retalhada por inúmeros vales e arroios, medindo cerca de cinco milhas quadradas, abrigando uma população de 3500 a 4000 almas, em constante crescimento pelo acréscimo vegetativo e o aporte de novos imigrantes. 

O Pe. Lipinski fixou residência em Dois Irmãos e o Pe. Sedlac em São José do Hortêncio. A fisionomia da colônia foi mudando pouco a pouco. Crescia a piedade e a observância dos domingos e dias santificados, enquanto cediam na mesma proporção as diversões menos recomendáveis como a bebida, o jogo e os casamentos irregulares eram postos em dia. 

Logo no início veio à tona  quão nefasta tinha sido a longa privação de uma assistência  espiritual  regular somada à convivência com os protestantes. A animosidade contra os padres tinha a sua origem principalmente em duas questões nas quais o direito canônico os impedia de contemporizar: os casamentos mistos e a aceitação de protestantes como padrinhos em batismos católicos. No primeiro caso a exigência do compromisso da parte não protestante de não interferir na prática religiosa do cônjuge católico,  o compromisso de educar os filhos na confissão católica, significava na prática  a renúncia  à tradição protestante da parte dos filhos e netos. A proibição de protestantes servirem de padrinhos para crianças católicas para muitos, também católicos, não passava de uma intransigência inaceitável. 

Já pelo ano da chegada em 1849 o clima de hostilidade contra os padres atingira um nível  critico. O Pe. Lipinski  encontrava-se em  Hamburgo Velho por ocasião da festa da Imaculada Conceição. Num tom provocador foi-lhe deixado claro que sem demora os padres seriam obrigados a partir. Foi desenterrado o velho boato a respeito das fortunas, dos tesouros dos jesuítas que, afirmava-se, teriam a seu dispor navios para o transporte marítimo. O resultado prático dessas suspeitas desabanadoras refletiram-se no suporte material dos padres. Também não faltaram tentativas para denegrir moralmente os missionários, sendo espalhado o boato que mantinham mulheres em suas casas. Chegou-se ao ponto de tornar pública a notícia absurda  que os padres impunham como penitência às mulheres casadas com protestantes o envenenamento dos maridos.

Tendo São Leopoldo como foco de todas as intrigas um libelo acusatório foi apresentado ao Presidente da Província. À essa altura algumas damas do círculo das relações do Presidente, haviam tomado conhecimento da trama e alertaram o P. Martos, superior dos padres, em Porto Alegre. Este chamou o Pe. Lipinski a Porto Alegre. 

O Pe. Lipinski tinha trabalhado demais, estava cansado e doente, mas atendeu prontamente ao chamado. Em Hamburgo Velho tinha-se conhecimento da convocação. As pessoas gritavam-lhe ofensas enquanto acenavam com a condenação. Ao passar por São Leopoldo foi obrigado a ouvir as “gentilezas” da parte do pároco. Embarcou numa lancha para chegar em Porto Alegre tarde da noite. No dia seguinte aconteceu o encontro como o Presidente da Província. Este mostrou-se satisfeito com as explicações do Pe. Lipinski e como demonstração pública  de que não havia nada de errado com o comportamento dos missionários, foi em pessoa ao embarque do padre, tirou o chapéu  e, para que todos ouvissem, despediu-se em voz alta: “Boa viagem padre Agostinho!”

Como era de esperar as hostilidades não terminaram com esse revés dos inimigos dos padres, principalmente com seu crescente êxito pastoral. O boato sobre os supostos  tesouros em poder dos jesuítas, por pouco não lhes custou a permanência no Rio Grande do Sul. As esmolas e as contribuições espontâneas foram minguando, comprometendo seriamente o mais indispensável para o sustento. Um outro foco de atrito resultou do hábito de  os jesuítas não cobrarem  emolumentos pelos batizados, sermões, etc. Desta maneira os párocos ficavam privados das eventuais porcentagens que costumavam canalizar para si. Os auxílios oriundos das  contribuições  caridosas de alguns fieis não eram suficientes para assegurar um mínimo de segurança. Na prática os padres dependiam dos meios oriundos da “Propaganda Fidei” de Roma. Desta forma a situação alcançara um nível critico. 

A todas essas dificuldades veio somar-se uma outro ainda mais séria. Neste meio tempo surgira um movimento muito forte na Câmara no sentido de expulsar os padres espanhóis dos seus trabalhos nas reduções e da própria cidade de Porto Alegre. Concretizando-se a ameaça a permanência dos missionários alemães estava comprometida. 

O Pe. Lipinski empenhou-se o quanto pôde junto ao Pe. Verdugo e este junto ao Geral da Ordem em Roma, Pe. Roothaan, no sentido de salvar a obra começada e assegurar a sua continuidade. Felizmente a questão teve um desfecho favorável da parte de Roma e os dois jesuítas puderam retomar o seus trabalhos entre os colonos. Começaram então a enfrentar  uma série de obstáculos, desta vez  inerentes ao próprio contexto  social, religioso e confessional da colônia alemã. As causas resumiam-se quase sempre na insolúvel questão  dos casamentos mistos, padrinhos nos batizados, conversões de protestantes ao catolicismo e na lendária hostilidade dos maçons aos jesuítas.

A situação chegou a ponto tal que o Pe. Lipinski sofreu um atentado numa emboscada perto da localidade de “14 Colônias”. Felizmente nenhum dos três tiros disparados contra ele acertou o alvo. Não ficou claro se foi uma advertência ou  má pontaria. 

 Perceberem que nenhum dos recursos até então empregados surtira os resultados desejados, os inimigos dos padres recorreram às autoridades civis. Um documento entregue nas mãos do Presidente da Província ameaçava livrar-se dos padres com as armas na mão. O presidente mandou o chefe de policia inteirar-se da situação. O relatório elaborado pela autoridade policial, favorável aos padres, logrou acalmar de alguma forma a situação. 

A tempestade mal amainara quando um novo contratempo veio perturbar a tranqüilidade dos dois jesuítas. Desta vez partiu do pároco de São Leopoldo. Este endereçou ao bispo um verdadeiro libelo acusatório, relatando tudo o que de desfavorável aos padres lhe havia chegado aos ouvidos. O bispo mandou uma severa advertência aos  dois. Nela alertava que se ativessem estritamente ao que dispunha o vigário e se abstivessem de administrar os sacramentos sem a sua autorização. 

O Pe. Lipinski doente e acamado mandou o escrito do bispo para o Pe. Martos em Porto Alegre. Este dirigiu-se imediatamente a Dois Irmãos e aproveitou a passagem por São Leopoldo para uma visita ao pároco e tentar equacionar a situação. Constatou de imediato que se tratava, em última análise, apenas dos emolumentos. Após entender-se como o pároco sobre esta questão, dirigiu-se a Dois Irmãos para buscar copias  autenticadas das autoridades concedidas  aos padres pelo bispo, regressando depois a Porto Alegre para um encontro com D. Feliciano.

Este reconheceu a precipitação no envio da admoestação, reafirmou o reconhecimento e o apreço pelo trabalho dos padres. Assim estava superado também este desencontro. 

No ano de 1858 a peste assolou Porto Alegre. O interior da Província inclusive as colônias alemãs não foram poupadas. Os jesuítas espanhóis sediados na capital, deram o melhor de si na assistência e socorro às vitimas da epidemia. Entretanto na colônia os dois jesuítas trabalhavam incansavelmente na organização das duas primeiras paróquias: Dois Irmãos e São José do Hortêncio para, a partir delas, consolidar as bases para a expansão e o florescimento do catolicismo entre os imigrantes e seus descendentes.

Superada a peste na capital o Pe. Verdugo percorreu a colônia numa viagem de observação mais atenta. Deixou registrado no seu  diário o que observou e o que sentiu. A uma certa altura lê-se: 

Nas colônias em que os nossos padres põem em prática o seu zelo apostólico, permite-se vislumbrar um futuro auspicioso apesar da mistura de católicos e protestantes. Entre uns preservou-se o espírito religioso, entre os outros os bons costumes e entre todos a bela harmonia, mérito depois de Deus, dos nossos padres. Evitam propositadamente ocupar-se no púlpito com as diferenças doutrinarias religiosas. Em compensação insistem, para o bem de todos, numa vida de costumes puros. Desta maneira  preserva-se a boa ordem e harmonia nas famílias. O jogo e as bebidas vão desaparecendo e o número de nascimentos extra-matrimoniais diminuiu a tal ponto que entre os católicos se igual a zero. Alimenta-se um verdadeiro horror aos casamentos mistos. Os costumes e hábitos alemães, alicerçados  no amor, na vontade de trabalhar, na submissão dos filhos e na sua educação rigorosa, permanecem em pé.

Grande foi a minha alegria e não menos a edificação, ao assistir à maneira como celebravam os domingos e dias santificados. Os fieis vêm de longe percorrendo caminhos incômodos, passando por matos e morros, normalmente a cavalo, mas também a pé. Muitos põem-se muito cedo a caminho para não se atrasar para o  sermão. Com verdadeira fome escutam a palavra de Deus e não cansam ou demonstram tédio mesmo que a prédica dura uma hora ou passa dela. Depois acompanham  a missa geralmente cantada. Mesmo durante as missas comuns homens e mulheres, separados em ambos os lados da igreja, cantam com grande disciplina e ritmo as orações e demais cerimônias, num tom que se assemelha ao gregoriano. No ofertório levantam-se dos seus lugares e em fila aproximam-se do altar. Depositam suas esmolas conforme a preferência de cada um e, passando por trás do altar,  retornam aos seus lugares. 

Os homens seguem as mulheres, sem que na época, se percebessem olhares indiscretos, como lamentavelmente se observam em outros lugares nas igrejas. Terminada a missa reza-se a ladainha de Nossa Senhora. Em alguns domingos caminha-se depois até a cruz da missão que os nossos padres (espanhóis) ergueram em 1843. Na frente vai a cruz ladeada por duas bandeirinhas carregadas por meninos. Em duas filas seguem os outros meninos, depois os rapazes e, finalmente, os homens casados. O sacerdote fecha o cortejo. Ladeiam-no dois coroinhas portando bandeirinhas, com forma e colorido diferentes das primeiras. Seguem as mulheres, em primeiro lugar as meninas, depois as moças, as mulheres casadas e. por fim, as viúvas e as anciãs. Durante o percurso todos cantam a ladainha de Todos os Santos. (Schupp, 2.004, p. 183-184)

O relato do Pe. Verdugo não deixa dúvidas de que no Rio Grande do Sul germinava  a semente de uma obra que prometia frutos abundantes para o futuro do catolicismo não só daquela Província como de todo o Brasil. As décadas que se seguiram comprovaram à saciedade esse prognóstico. O constante aporte de novas levas de imigrantes, o crescimento vegetativo dos já aqui radicados, somados à multiplicação e a intensificação das necessidades materiais e espirituais das comunidades coloniais, reclamavam reforços urgentes para auxiliar os dois primeiros jesuítas alemães, na ingente obra evangelizadora e civilizatória em gestação. Os  superiores da Ordem, atentos aos fatos, mandaram em 1858 mais dois sacerdotes, os padres Bonifaz Klüber e Michael Kellner, acompanhados pelo irmão leigo Franz Ruhkamp.
(N.B. O Projeto Pastoral dos jesítas foi contemplado por um livro do autor dessas linhas e editado pela Editora Unisinos, em 2013)

Bicentenário da Imigração - 47

Jesuítas alemães

Neste meio tempo acontecimentos adversos aos jesuítas  na Europa Central vieram em benefício dos colonos alemães no sul do Brasil. A revolução de 1848 fizera seus estragos também na Áustria. Os jesuítas  perderam propriedades, tiveram seus colégios fechados e um grande número ficou liberado para qualquer tipo de convocação por parte dos superiores. O Pe. geral da Ordem solicitou então ao superior da província da Galícia que destacasse alguns jesuítas dos seus quadros a fim de envia-los para o Brasil. Este pediu aos interessados que lhe mandassem seus nomes para escolher entre eles aqueles com perfil adequado para a missão. Da lista de voluntários os nomes escolhidos foram: P. Augustin Lipinski, Pe. Johann Sedlac e o irmão leigo Anton Sontag. Os  critérios de seleção foram  determinados pelo tipo de trabalho a ser desenvolvido. Como primeira condição constava o domínio perfeito da língua alemã, uma saúde física à toda a prova, criatividade, versatilidade, bom trato e um excepcional solidez psicológica e religiosa. 

O Pe. Schupp resumiu o perfil de cada um dos escolhidos.

O Pe. Lipinski era um silesiano austríaco nascido em 1809. Possuidor de um caráter enérgico, entrara com 19 anos na Companhia de Jesus.  ( ... ) Méritos especiais lhe rendeu o apaziguamento dos colonos da Galícia, sublevados em 1848. Chegou ao Brasil com 40 anos de idade, portanto, em pleno vigor físico.

O Pe. Sedlac nasceu em 1812 na diocese de Budweis na Boêmia. Ordenara-se sacerdote em 1837, para entrar na Companhia de Jesus depois de sete anos de atividade como padre secular. 

O irmão Sontag natural da Silésia foi a incarnação do modelo do bom irmão leigo, distinguindo-se além disto, pela inteligência e a grande versatilidade. (Schupp, 2,004, p. 139)

Os três embarcaram no dia primeiro de fevereiro de 1849. Depois de sobreviver a pesadas tempestades no mar do norte e apos uma travessia do Atlântico cheia de perigos, desembarcaram no Rio de Janeiro no dia cinco de maio. De lá seguiram viagem até Rio Grande no navio Imperatriz Tereza. Finalmente pisaram em terra firme na capital da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, no dia 14 de julho de 1849. Os padres espanhóis os receberam com júbilo e, apos alguns dias de descanso, depois da apresentação protocolar ao Presidente da Província, não havia ainda bispo embora a diocese estivesse erigida desde 14 de maio por meio de bula de Pio IX. Com a devida jurisdição em mãos, partiram para Dois Irmãos, ponto de partida para a sua missão definitiva. Chegaram ao destino no dia 14  de agosto sob um céu chuvoso e toldado, depois de passar por caminhos  lamacentos e escorregadios, como é comum nesta época do ano. 

Este 14 de agosto não foi um dia qualquer para o  sul do Brasil. Foi um marco  de repercussão histórica de difícil avaliação não só para o futuro dos imigrantes alemães, como para a história das demais vertentes étnicas radicadas na região.

Começa a atividade regular dos Jesuítas
Até  aqui nos ocupamos com a presença dos jesuítas no Sul do Brasil após a restauração da Ordem, traçamos um perfil da situação religiosa da região na primeira metade do século XIX. Sob o regime do padroado, vigente então, predominava um tipo de Igreja mais afinada com os ditames dos administradores seculares, com os caprichos das lideranças leigas e, não em último lugar, dos hábitos locais, do que com as ordens e diretrizes emanadas de Roma. A própria organização eclesiástica dificultava em muito a melhoria da situação. A criação das paróquias e capelanias dependia  do “placet”  da Câmara Provincial, assim como a escolha dos párocos. Na criação e na ereção de uma paróquia decidia simultaneamente a autoridade eclesiástica. A civil, representada pela Câmara  dos Deputados, estabelecia os limites de cada paróquia, na maioria dos casos em sintonia com as autoridades eclesiásticas. Em seguida decretava-se a ereção da paróquia. 

Com a ereção de uma nova paróquia vinculava-se uma série de direitos e privilégios civis. Nomeava-se um juiz e um escrivão de paz com poder de assinar contratos com validade legal. Esse simples fato evitava que as pessoas tivessem que se deslocar por distancias enormes a fim de legitimar documentos de primeira necessidade. Uma segunda vantagem tinha a ver com o exercício  do voto  exercido na sede do distrito paroquial. A confirmação eclesiástica de uma ereção civil de paróquia podia ser imediata, levar algum tempo ou simplesmente  não acontecer. A instalação tanto civil com canônica de uma paróquia implicava nos emolumentos, subsídios ou “côngruas”, que na época importavam e 200 mil eis ao ano, concedidas  ao pároco pelo governo, motivo de constantes atritos, reclamações e desentendimentos. Aos sacerdotes estrangeiros era vedado o recebimento desses subsídios a não ser depois de naturalizados. Essa situação iria mudar radicalmente depois da proclamação da República em 1889, quando todos os sacerdotes, brasileiros natos, naturalizados e estrangeiros perderam o direito ao apoio financeiro do Estado. 

Além disso, até 1848, o sul do Brasil estava sob a jurisdição do bispo do Rio de Janeiro. Os imensos territórios que costumavam abranger as jurisdições paroquiais, somavam-se  aos demais problemas como mais um a entravar uma atividade pastoral com as mínimas condições de êxito. 

Na data em que os três jesuítas iniciaram a sua atividade na Colônia Alemã de São Leopoldo, a situação da organização eclesiástica no Sul era em resumo  esta. Até o ano de 1842 O Rio Grande do Sul fizera parte da diocese do Rio de Janeiro. Em maio daquele ano  o papa Pio IX criou a diocese do Rio Grande do Sul. A posse do primeiro bispo ocorreu, porém, somente em 30 de julho de 1853, na pessoa de D. Feliciano José Rodrigues Pimenta. O novo bispo como relatam  as fontes, não era nenhum intelectual de renome. Como pároco da cidade de Encruzilhada, no interior da Província, gozava de uma grande estima entre o povo. Ele próprio dedicava-se à agricultura ao ao ser convocado pelo papa para assumir e organizar a nova diocese. O fato de a freguesia de Encruzilhada ser  uma exceção para a época com sua extraordinário afluência aos sacramentos, deve  ter sido decisivo na escolha do seu pároco para administrar  a nova diocese. Ainda mais. Pio IX propusera-se, desde a sua eleição, fazer do seu pontificado um período de renovação da Igreja, por meio de um amplo,  profundo e ambicioso projeto de Restauração Católica. E, como o fomento da vida sacramental se constituiu num dos pilares mestres do Projeto, a escolha recaiu sobre um sacerdote que fizera dessa prática a base da  sua atividade pastoral, transformando a freguesia sob sua responsabilidade, numa exceção em meio ao contexto religioso da Província.

Na época da criação da diocese do Rio Grande do Sul existiam poucas paróquias  na Província. Nos 283000 quilômetros  quadrados cada uma delas exercia jurisdição sobre áreas imensas. O território de quase todas elas era maior do que as atuais dioceses no Rio Grande do Sul. 

No ano da chegada dos primeiros jesuítas de fala alemã em 1849, a região colonial alemã encontrava-se sob a jurisdição  de três paróquias: São José do Hortêncio, desmembrada da paróquia de Sant´Ana  em 1848, Dois Irmãos pertencente a São Leopoldo e toda a margem direita do Rio Caí sob a jurisdição de Triunfo.

Ao desembarcarem os padres alemães encontraram o campo de trabalho relativamente organizado. As comunidade dos colonos estavam formadas ou em vias de  formação e não poucas já consolidadas em torno das suas capelas, escolas e cemitério. Para entender melhor essa organização comunal faz-se necessário destacar as características dessa organização e a nomenclatura usual nas áreas de colonização alemã.

O conceito talvez mais recorrente  nesse contexto foi provavelmente o de “colônia”. Dependo do caso podiam ter vários  sentidos. Um deles designa toda área inicialmente  colonizada pelos imigrantes alemães e mais tarde também pelos italianos e outras vertentes imigratórias. Num segundo sentido toma-se como referencia  os promotores  das colonizações. Nesse caso fala-se em “colônias imperiais”, “colônias provinciais”, “colônias estaduais”, “colônias municipais”, “colônias de empresas de colonização”, “colônias de associações”, “colônias particulares”. Um terceiro sentido vinha da composição étnica e ou religiosa dos assentamentos. Fala-se neste caso em “colônias mistas”, colônias religiosa ou etnicamente separadas”. Colônia designava também o lote de terra ou “colônia de terra” em poder de um determinado colono, cujo tamanho, em grandes linhas oscilava entre 25 e 70 hectares. Finalmente era corrente também um sentido atribuído ao termo colônia que nada tem a ver com a posse ou distribuição de terra. Tem a sua origem em comunidades étnicas urbanas: “colônia portuguesa” do Rio de Janeiro, “colônia italiana” de São Paulo, “colônia alemã” de Porto Alegre. 

Ocorrem ainda outras designações conforme já lembramos mais acima, que se repetem constantemente e são importantes para a compreensão do entorno geográfico e humano em que os jesuítas desenvolveram  a sua atividade pastoral. O mais comum talvez venha a ser o de “picada”. O sentido original designava a trilha aberta na mata virgem pelos agrimensores responsáveis  pela delimitação e demarcação  dos lotes. Uma vez ocupados os lotes ampliavam-se e melhoravam-se as trilhas transformando-as aos poucos em caminhos e, finalmente, em estradas.

As moradias do colonos acrescidas das diversas benfeitorias, eram instaladas ao longo e próximo às picadas, assumindo uma disposição linear. Daí surgiu um segundo conceito presente em toda a região colonial, “a linha”. Como se vê também esse conceito teve, na sua origem, um sentido geográfico, referindo-se  à sucessão de mordias alinhadas ao longo das picadas ou trilhas abertas na mata virgem.

Ao serem colonizadas, a partir de 1880, as regiões virgens no norte e noroeste do Rio Grande do Sul, um terceiro conceito vai somar-se aos anteriores. “o lajeado” Sua origem remonta aos leitos rochosos e pedregosos  dos arroios e rios do planalto. Nessa região  eles serviram não poucas vezes como referência  para a demarcação dos lotes e a posterior instalação dos colonos. Como nos dois casos anteriores também neste, uma realidade geográfica originou o termo.

Numa localização central, tanto na linha como na picada e o lajeado, costumava construir-se  a igreja, capela e a escola, instalava-se o cemitério, a casa de comércio e os artesanatos, enfim, a infra-estrutura básica que permitia o funcionamento da comunidade. Dessa forma o que de início não passava de uma denominação geográfica espacial foi assumindo o significado de unidades comunais, isto é, a picada, a linha e o lajeado, passaram a identificar comunidades; Picada Café, Linha Bonita, Lajeado Grande.

Bicentenário da Imigração - 46

A visita dos primeiros jesuítas

A primeira visita de jesuítas ao Sul do Brasil após a restauração da Ordem, aconteceu em 1842, como consequência  da sua atuação tumultuada sob o regime do ditador Rosas na Argentina (1830-1852). No começo ele os tratara muito bem. Pretendia coopta-los para servirem às suas intenções despóticas. Como se recusaram a fazer esse papel, determinou a sua expulsão do território argentino, por meio de um decreto de 22 de março de 1841, dando-lhes oito dias para abandonar o pais. O Pe. Mariani Verdugo, superior dos jesuítas latino americanos, refugiou-se em Montevidéu. Para lá retiraram-se também outros membros da Ordem, para aguardar tempos mais favoráveis e retornar aos seus postos na Argentina. Neste meio tempo dedicaram-se a atividades próprias da sua vocação no Uruguai e fora dele.

Neste contexto o Pe. Verdugo viajou para o Rio de Janeiro, em companhia do Pe. Sadó, com a intenção de abrir aí um novo campo de atividades. Escolheu o Rio de Janeiro porque aí os jesuítas contavam com um aliado e defensor de peso  na pessoa do internúncio apostólico Ambrosio Campodonico, empenhado no retorno dos jesuítas a todo o território nacional. Naquela ocasião haviam chegado  informações sobre a precária situação religiosa do sul do Brasil, acompanhadas com o pedido de socorro no sentido de enviar sacerdotes para lá. O internúncio propôs ao bispo o envio de jesuítas para o Rio Grande do Sul. Para o bispo, entretanto colocaram-se duas dúvidas. Em primeiro lugar mandar jesuítas exatamente para a Província em que o fantasma pombalino ainda se fazia muito presente, poderia reavivar com facilidade, episódios históricos não totalmente esquecidos. Em segundo lugar havia a questão dos subsídios. Num rescrito de 22 de janeiro de 1824, o governo permitia aos colonos alemães terem seus próprios curas de alma, mas pelo mesmo documento era vedado aos estrangeiros o recebimento de subsídios do governo. A questão ficou equacionada quando, apos um acerto com o Pe. Verdugo, o internúncio comunicou ao bispo que os padres renunciavam aos subsídios. 

Removidos os obstáculos o Pe. Vedugo chamou o Pe. Coris de Montevidéu, para em seguida, enviá-lo para o sul do Brasil na companhia do Pe. Sadó. Começaram a viagem para Porto Alegre no dia 25 de julho de 1841. A viagem de navio foi interrompida por uma tempestade na altura de Santa Catarina e a embarcação arrastada para ilha do mesmo nome. Receando novas peripécias numa viagem marítima até o destino, os padres optaram pela via terrestre, percorrendo por terra 400 quilômetros. Finalmente no dia 15 de outubro de 1842 apresentaram-se às autoridades eclesiásticas e civis  em Porto Alegre. Tiveram uma recepção calorosa de ambas. O pároco da matriz fez questão de hospedá-los na sua casa.

Sem tardar os padres Coris e Sadó começaram as suas atividades apostólicas. Escolheram as missões populares como primeira contribuição para a renovação religiosa, que se encontrava numa situação nada animadora entre os habitantes de origem lusa e açoriana em Porto Alegre e Pelotas. Preferiram começar por Pelotas por uma razão prática. Pouco versados no português começariam a pregação por uma cidade menor, interiorana para adquirir mais fluência na língua nacional. Entre outubro e março pregaram em Pelotas oito missões, uma após a outra, para depois fixarem residência em Porto Alegre. Não demorou para que uma rica dama de nome Delfina Carlota Araújo Brusque, lhes cedesse gratuitamente uma casa e um escravo. O pároco forneceu a mobília para a residência e gêneros alimentícios.

No seu já citado livro a “A Missão dos Jesuítas alemães no Rio Grande do Sul”, o Pe. Schupp resumiu as missões em Porto Alegre.

O afluxo do povo foi de todo extraordinário: a igreja estava repleta até o coro; participaram exatamente os cidadãos de maior destaque da cidade.

Durante o sermão reinava um silêncio reverente. Os confessionários foram sitiados. De modo especial no dia da comunhão geral oito padres atenderam às confissões da manhã até o entardecer, sem conseguir satisfazer a todos que se apresentaram  para a confissão. Assistiu-se a uma maravilhosa movimentação que empolgava a população inteira de Porto Alegre.

Com certeza os horrores da guerra civil que ainda não terminara de todo, contribuiu com a sua parte. Quem sabe também o exemplo de muitos argentinos fervorosos refugiados em Porto Alegre, fugidos  dos bandos assassinos de Rosas, não deixaram de ter a sua parte de influência. O certo é que desde aquela data aconteceu em Porto Alegre uma profunda mudança na vida religiosa. (Schupp, 2004, p. 102)

Naquela altura dos acontecimentos a colônia alemã expandia-se num ritmo acelerado entre 30 a 50 quilômetros ao norte de Porto Alegre. Católicos e protestantes viviam misturados numa proporção que favorecia levemente os últimos. Acontece que os protestantes dispunham, desde muito cedo de pregadores, embora não ordenados, escolhidos dentre os membros das comunidades, suprindo de alguma forma  as necessidades espirituais dos fieis. Entre os alemães católicos a situação era bem mais difícil, para não dizer critica. Também eles viviam em comunidades organizadas, costumavam reunir-se aos domingos e dias santos para a oração e os cantos em comum, emprestar-se apoio mutuo e ouvir comentários sobre textos da Sagrada Escritura, feitos por alguém um pouco mais instruído, credenciado por eles. Careciam, porém, daquilo que para um católico era fundamental e sem o qual o esforço de qualquer boa vontade, terminaria  a médio e curto prazo, em desorientação doutrinária, no relaxamento da disciplina religiosa, na dissolução dos costumes e na perda da própria identidade. Tornara-se pois, urgente providenciar por uma assistência religiosa prestada pela presença regular de sacerdotes. A ausência de uma assistência nesses moldes durante quase 20 anos, levara muitos aos limites perigosos da indiferença religiosa, da troca do catolicismo pelo protestantismo, do abandono das orientações morais da Igreja. A religiosidade contudo, embora precária, dormitava debaixo das cinzas, falando apenas a ocasião para irromper com todo o vigor. E esse momento se concretizou quando em 1844 os padres Sadó e Coris aceitaram o convite para pregar uma missão em São Leopoldo, sede da Colônia Alemã. A missão começou com uma procissão pelas ruas da cidade. Um relato da época descreveu assim o acontecimento.

Todos participaram em tamanha ordem e edificação, como não tinham sido observados em nenhuma missão anterior. O espetáculo em que católicos caminhavam em grande número em parte misturados com não poucos protestantes que, longe de ofender  e ridicularizar, participaram com o maior respeito, constituiu-se  num triunfo da religião. Chegaram ao ponto de não poucos deles, entre eles o pastor e o chefe militar protestantes, participarem do culto divino, persignarem-se como se fossem católicos, rezarem e acompanharem a cerimônia em tudo.
Um registro todo especial merece a devoção e piedade dos colonos alemães. Deslocavam-se diariamente das suas picadas, às vezes por quatro ou cinco horas, a pé, pessoas isoladas ou em grupos, percorrendo caminhos acidentados, rezando e cantando para marcar presença nos sermões e instruções, dos quais a grande maioria não entendia nada. (Schupp, 2004, p. 103-104)

As missões pregadas pelos padres Sató e Coris em Pelotas, Porto Alegre e, por fim, em São Leopoldo, revestiram-se de um significado bem mais profundo e bem mais duradouro do que poderia parecer à primeira vista. Pensando bem, se a expulsão dos jesuítas da Argentina pelo ditador Rosas, privou aquele pais duma poderosa força renovadora e restauradora no plano religioso, esta foi transferida para o sul do Brasil. Com as missões pregadas por esses jesuítas deu-se início a história de um florescimento religioso que tornaria o sul do Brasil exemplo para toda a América Latina. As sementes plantadas  entre 1842 e 1844, caíram em solo fértil, germinaram e deram frutos em abundância. A velha igreja de tradição lusa, desgarrada em parte da doutrina e disciplina oficial, submissa aos ditames e aos caprichos das autoridades civis sob o regime do padroado, começava a ser superada, por um catolicismo no caminho de retorno à doutrina e disciplina do Concílio de Trento, sob o comando do romano Pontífice. Em outras palavras. O projeto da Restauração Católica começava a dar os primeiros passos no sul do Brasil. Por isso chega a configurar até certo ponto um equívoco quando se relaciona a visita dos jesuítas espanhóis, exclusivamente à penúria religiosa dos imigrantes alemães. Tanto assim que suas primeiras atividades missionárias tiveram como palco Pelotas e Porto Alegre, duas cidades de predominância lusa e açoriana absoluta. Somente um ano depois pregaram uma missão em São Leopoldo, onde vivia também um número respeitável  de lusos. A incursão apostólica nas comunidades inteiramente alemãs no interior, aconteceu apenas em 1844. O que, portanto, importava era o despertar religioso de todos os católicos, independente da sua origem étnica, para o catolicismo romanizado que tomava impulso no mundo inteiro. Esse mesmo objetivo iria pautar a atividade pastoral dos jesuítas alemães que chegaram ao sul do Brasil a partir de 1849.

No ano seguinte, 1845, os mesmos padres Sató e Coris retomaram as missões, desta vez na colônia alemã propriamente dita. Pregaram sucessivamente em Bom Jardim, São José do Hortêncio e Dois Irmãos. Apesar de não entenderem nada do que os missionários falavam nos sermões, a atenção dos colonos foi total como que intuindo o que lhes era dito. O mais importante foi certamente a ocasião que se lhes oferecia para porem em dia  as suas consciências pela confissão, apesar das dificuldades da língua, participarem da eucaristia e regularizarem batismos e matrimônios. O que deixou uma impressão toda especial foram as solenidades das primeiras comunhões. O Pe. Schupp registrou o fato na sua já citada obra.

Duas coisas  impressionaram de modo especial, o piedoso canto dos alemães, amantes do canto e as solenidades da primeira comunhão, incluindo todas as cerimônias que ainda hoje costumam acompanhar o espírito piedoso na terra natal. (Schupp, 2.004, p. 140)

A passagem dos padres Sató e Coris pelas colônias alemãs do Rio Grande do Sul, além de por em dia  a vida sacramental dos colonos,  teve uma outra conseqüência não menos importante.  Já que a curto prazo não havia  uma perspectiva concreta para uma assistência pastoral permanente por parte de sacerdotes que dominavam a língua alemã, os padres espanhóis lançaram mão de outros meios para amenizar de alguma forma a situação. O primeiro deles consistiu em fornecer livros edificantes e instrutivos para, de alguma forma suprir a ausência de catequeses, prédicas, instruções religiosas, ou simplesmente satisfazer a sede de boas leituras. A idéia foi apresentada ao Pe. Roothan, geral da Ordem. Ele a julgou pertinente e encarregou o P. Beckx para concretiza-la. Não demorou e foi descarregada em Porto Alegre uma enorme caixa com livros. O Pe. Sató em pessoa encarregou-se  de leva-los até a colônia onde a distribuição ficou ao encargo dos fabriqueiros. Como consta em relatos esses livros foram mais tarde passados de geração em geração, como preciosos objetos de herança. 

A segunda solicitação encaminhada aos superiores da Ordem, tinha como objetivo resolver a longo prazo a questão da assistência pastoral entre os imigrantes alemães. Sem uma solução definitiva dessa questão, desenhava-se no horizonte a perspectiva de um arrefecimento religioso fatal, especialmente entre as gerações nascidas no Brasil, ou a passagem em massa para o protestantismo que, na época, já contava com uma assistência religiosa regular, embora deixasse muito a desejar.

A iniciativa de recorrer aos superiores da Ordem, partiu novamente dos missionários espanhóis. O Pe. Morey, superior da província espanhola, encaminhou uma petição neste sentido ao Geral. O pedido encontrou pronta simpatia por parte do Pe. Roothan.

A Escola comunitária Teuto-Brasileira


Com a intenção de colaborar com o grave problema da educação no País, o autor pesquisando a documentação referente à imigração alemã no sul do Brasil, encontrou farto material sobre a Escola Comunitária. Como se trata de uma escola criada pela comunidade local, por ela amparada, financiada e garantida, parece válido apresentá-la como um modelo pertinente para sua época. Mais ainda, a ideia de escola comunitária, em moldes semelhantes, porém inserida na conjuntura de hoje, talvez possa contribuir para a solução do problema educacional e, quem sabe, de problemas de outra natureza.

Não se pretende, portanto, restringir o trabalho ao mero apanhado histórico. Pretende-se mostrar aos interessados como a escola nas comunidades Teuto-brasileiras representou o foco polarizador de todas as atividades comunitárias e não apenas a educação formal. A escola não foi mais uma repartição municipal ou estadual, oferecida pela generosidade das autoridades locais ou regionais. Foi uma instituição criada e ciosamente defendida pelas comunidades coloniais. Quem mexesse nela intrometia-se no próprio santuário no qual se guardavam e perpetuavam os valores culturais cultivados por séculos. São quatro os conteúdos referência do texto que segue em dois volumes: A História dessa escola, sua Natureza didático pedagógica, a Associação dos professores e a Formação dos professores. 

Por razões práticas escolhi como foco a Escola Comunitária Católica, fazendo referências à Escola Comunitária Protestante em momentos que se fizer oportuno. As restrições são meramente práticas e nada tem a ver com as divergência doutrinárias e ou disciplinares. Muito pelo contrário, as Escolas de ambas as confissões tiveram as mesmas características e em comum cumpriram a mesma função essencial. As fontes e documentos consultados e analisados encontram-se basicamente no Instituto Anchietano de Pesquisas e no Memorial Jesuíta na biblioteca central da Unisinos. Destaco os mais importantes: “Lehrerzeitung”, “Deutsches Volksblatt”, “Familienfreund Kalender”, “Sankt Paulusblatt” e não poucas informações avulsas. O texto foi enriquecido também com entrevistas de  antigos professores aina vivos na época.

A justiça manda registrar o meu agradecimento ao diretor do Instituto Anchietano de Pesquisas, Pe. Pedro I. Schmitz, que franqueou o acesso às fontes e documentos aí guardados. Agradeço também e modo especial ao Pe. Arthur Rabuske (in memoriam), pelas suas valiosas sugestões e informações sobre documentos e fontes. Espero contribuir com o presente trabalho no sentido de mostrar como a Escola Comunitária salvou da decadência cultural e religiosa as comunidades coloniais durante mais de um século (1835-1938) e, ao mesmo tempo, quem sabe,  contribuir enfrentar os desafios pelos quais a educação no País tenta superar neste começo do terceiro milênio.




Bicentenário da Imigração - 45

Os Jesuítas e a Imigração alemã

Introdução
Desde o seu descobrimento a América Latina tornara-se o cenário em que os jesuítas, mais do que os membros de qualquer outra ordem religiosa, implantaram projetos de cristianização e de promoção humana. Universalmente famosa  e conhecida por todos foi a obra por eles edificada durante os séculos XVI, XVII e XVIII, tanto nas colônias espanholas quanto nas portuguesas. Podem ser encontrados no Chile liderando iniciativas no ensino, na instalação de oficinas, tipografias, artesanatos diversos, além de se dedicarem à catequese dos nativos e dos filhos dos espanhóis. Estão presentes no Chaco argentino na Província de Entre Rios e, principalmente, nas missões localizadas nos atuais territórios do Norte da Argentina, sul do Paraguai e sul do Brasil. Desde 1549 os jesuítas  tornaram-se presença obrigatória no Brasil, empenhados de modo especial na catequese dos índios e na abertura de colégios para os filhos e descendentes de portugueses.

Depois da expulsão das colônias latino americanas e mais ainda depois da supressão da Ordem, suas obras foram entregues ao arbítrio e cobiça, aos interesses escusos, à hostilidade contra a Igreja e às investidas do iluminismo e demais correntes inovadoras do pensamento, que tomaram conta dos regimes europeus e por tabela  também das colônias na América Latina. Relatos chegados até nós, correspondências, obras de inestimável valor histórico, etnográfico e antropológico, alem das imponentes ruínas  de templos, as reduções e aldeamentos, testemunham ainda hoje, 350 anos depois, o que foi a obra começada pelos jesuítas de então. Por meio delas é possível avaliar, de alguma forma, o tamanho dessa obra e  intuir o espírito, a dinâmica e a lógica que a orientou. 

Restaurada a Ordem em 1914, em poucos anos os discípulos de Santo Inácio, como que emergindo revigorados de um “retiro” compulsório de 40 anos, retornaram aos antigos cenários apostólicos, para dar continuidade à obra interrompida. Voltaram aos colégios, reassumiram as missões populares, recomeçaram a conquista para a Igreja dos povos  autóctones em todos os continentes e acompanharam pelo mundo afora, os emigrantes europeus em busca de novas pátrias. Foi em meio a essa dinâmica  que em 1842 chegaram ao sul do Brasil os primeiros jesuítas da Ordem restaurada. Sua missão voltava-se agora, não para a catequese dos índios, mas oferecer assistência pastoral aos núcleos de povoamento em formação, cuidar da educação religiosa e profana e dar andamento a ambiciosos projetos de promoção humana. 

O cenário físico e humano no sul do Brasil

No começo do século XIX. 
A denominação Sul do Brasil não coincide aqui com a atual divisão do Pais em regiões. Refere-se apenas ao estado do Rio grande do Sul. Trata-se de uma área de 283000 quilômetros quadrados que, durante o Império, correspondia  à Província de São Pedro do Rio Grande do Sul e, com a proclamação da República e 1889, como estado do Rio Grande do Sul. Em 1842, ano em que os primeiros jesuítas  após a restauração da Ordem, pisaram o solo da Província de São Pedro, as condições físico-geográficas, sociais, políticas, econômicas e religiosas, podem ser resumidas, em linhas gerais, da seguinte forma. 

Durante a década de 1820, após inúmeras escaramuças e uma verdadeira guerra, conhecida como a guerra  Cisplatina, terminou por ser fixado o traçado definitivo  das fronteiras entre as repúblicas da Argentina e principalmente do Uruguai e o Império do Brasil. No centro sul da Província predominavam as enormes extensões de campos naturais, a Campanha, ocupada por fazendeiros, donos de enormes estâncias, nas quais criavam rebanhos de gado, que lhes rendiam riquezas apreciáveis com a comercialização do charque e dos couros. Também o norte e o nordeste da Província, exibia as mesmas características com campos naturais a perder de vista,  por sobre o planalto numa altitude media entre 800 a 900 metros, ocupado também por estâncias de criação de gado, rendendo prosperidade aos donos. 

Entre as duas áreas de campos naturais localizavam-se  as bacias medias e superiores dos rios que descem das encostas da assim chamada Serra, cobertas de florestas virgens praticamente intocadas. Formavam uma continuidade ininterrupta desde leste da Província até a parte central e de lá tomavam a direção norte e noroeste, cobrindo as regiões da Serra, Missões e Alto Uruguai. 

As estâncias de criação de gado encontravam-se nas mãos de luso-brasileiros, e imigrantes açorianos e seus descendentes. Entre os peões de suas estâncias predominava o elemento mestiço, batizado genericamente como gaúcho. À margem das estâncias encontramos um tipo humano etnicamente heterogêneo, remanescente das contínuas campanhas militares, caçadores de escravos indígenas, aventureiros, foragidos da justiça, descendentes dos índios das reduções jesuíticas e seus mestiços com outras procedências ainda hoje conhecidos como “missioneiros”. Reunidos em pequenas tribos os sobreviventes dos povos indígenas, conhecidos como caingangues e guaranis, sobreviviam primitivamente, no recesso da mata virgem. 

Como já lembramos mais acima foi na Província de São Pedro, especificamente na porção coberta por florestas pluviais e portadora de solos de alta fertilidade que, na transição  do Reino Unido a Portugal e a Independência do Brasil, começou a ser testado um novo modelo de desenvolvimento econômico e social. Até então os únicos modelos de desenvolvimento no Brasil contemplado iniciativas de grande envergadura. Prosperaram então os ciclos do algodão, da cana do café e do gado, este último na Província de São Pedro. As grandes áreas florestais, sem indícios maiores de riquezas  naturais como ouro, prata, cobre, pedras preciosas, ... permaneciam à margem do desenvolvimento econômico regional e nacional. Apesar de, na maioria dos casos, terem sido possessões legítimas de pessoas físicas ou do governo, na realidade não passavam de terras de ninguém e corriam o risco de serem simplesmente ocupadas, despojadas das suas reservas de madeira e seus solos depredados. Tornara-se inadiável ocupá-las planejada e racionalmente e torná-las produtivas. A opção foi por um modelo até então inédito no Pais: o assentamento de agricultores em pequenas propriedades entre 25 e 70 hectares, em regime de empreendimentos familiares, dedicados à policultura de  subsistência em primeiro lugar e à geração de excedentes destinados ao abastecimento local e regional. Com essa estratégia pretendiam-se alcançar ao mesmo tempo vários objetivos: povoar de vez essas terras, estimular o surgimento de uma classe média rural de bom nível, produzir alimentos como feijão, arroz, farinha de mandioca, batata, trigo, etc. para, além de alimentar a família, abastecer as cidades, as tropas e, quem sabe, exportá-los para os outros estados. Ao mesmo tempo favorecia-se a atividade de artesãos, complementar à agricultura e, quem sabe, para servirem de gérmen para o futuro surgimento de indústrias.

A primeira experiência neste sentido já fora feita durante a segunda metade do século XVIII, com colonos vindos dos Açores. Como essas ilhas não dispunham de excedentes em número suficiente para povoar todas as terras disponíveis no sul do Brasil, a saída foi recorrer a outras fontes de imigração. A preferência recaiu sobre alemães e italianos, pelo menos na primeira etapa. Os motivos para essa preferência estão ligadas a motivos diversos, entre os quais podem ser citados: a tradição várias vezes milenar desses povos na dedicação à agricultura familiar em pequenas glebas, o fato de alemães e italianos nunca se terem envolvido em tentativas de ocupação de partes do Brasil como aconteceu como os franceses, ingleses e holandeses, o fato de o príncipe herdeiro D. Pedro ser casado com a princesa austríaca D. Leopoldina de Habsburgo e outras razões mais.

A primeira leva de imigrantes alemães desembarcou em São Leopoldo no dia 25  de julho de 1824 e estabeleceu-se na Real Feitoria do Linho cânhamo, local escolhido como ponto de irradiação do novo projeto colonizador. Seguiram-se levas e mais levas de novos imigrantes até que o fluxo foi interrompido por 10 anos, o tempo que durou a Guerra dos Farrapos (1835-1845). A imigração foi retomada com vigor redobrado  a partir de 1848. Os imigrantes alemães que chegavam  distribuíam-se numa proporção de 46% de católicos para 54% de protestantes. Os núcleos coloniais que se  multiplicavam rapidamente, na maioria dos casos, não adotaram qualquer tipo de providência para separar  os povoadores por confissão religiosa. Essa situação iria contribuir mais tarde para uma série dificuldades no exercício da cura de almas, de modo especial entre os católicos, devido à proibição canônica dos casamentos mistos e a não admissão de padrinhos protestantes para os batizados católicos. Aliás os católicos ficaram sem qualquer tipo de assistência religiosa por parte de sacerdotes, até o ano de 1843 e, somente a partir de 1849, puderam contar com a presença regular de sacerdotes de língua alemã. 

Nos 25 primeiros anos preservaram, da melhor forma possível, ao menos o essencial da sua fé e religiosidade. Para tanto recorreram às orações e ensinamentos em família e às devoções coletivas aos domingos em encontros dedicados à  oração. O Pe. Ambros Schupp, registrou a situação ao escrever em seu livro: Os Jesuítas alemães no Rio Grande do Sul (Brasil).

Certamente não foi um sacrifício pequeno para o espírito profundamente religioso dos colonos alemães, ao se verem, assim de uma hora para a outra, erradicados de seu ambiente natal acalentado pelo espírito da fé. Aqui na mata virgem não soava nenhum sino chamando-os para a igreja, nenhum órgão dispondo-os para a devoção, nada  em seu derredor que lembrasse as belas festas da terra natal. Aproximava-se o natal e o sol queimava e a natureza exibia seu esplendor festivo. Nenhum vestígio da neve e das flores da neve na janela, tão características do natal na Alemanha. Aproximava-se a Páscoa com o campo e a floresta ostentando a sua exuberância e esplendor. Entretanto na colônia era outono e o inverno se aproximava. Passavam, umas depois das outras, as belas festas de Nossa Senhora e, se não fosse a voz interior, nem sequer seriam lembradas. (Schupp, 2004)

A situação começaria a mudar para melhor a partir de 1842

Bicentenário da Imigração - 44

Entretanto encontrou-se uma outra forma capaz de arregimentar os católicos em torno do seu Projeto de Restauração: os congressos dos católicos – os “Katholikentage ou Kathollikenversammlungen”, como ficariam conhecidos. O primeiro deles teve lugar em 1898 em Harmonia, no interior de Montenegro. Esses eventos  tiveram seqüência regular a cada ano ou a cada dois anos até 1940. Serviram de fórum em que os católicos analisavam sua situação econômica, social, política, educacional e principalmente religiosa. Procuravam identificar os problemas, discutiam soluções  e propunham meios e estratégias. Já no congresso  de 1898 nasceu a Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul. A ela foi foi confiado o encargo de coordenar o projeto educacional das escolas comunitárias. No congresso de 1899 foi fundada a Associação Riograndense de Agricultores, iniciativa do Pe. Theodor Amstad e de um grupo de lideres leigos. Tratava-se, na verdade de um ambicioso projeto de promoção humana, alinhado com a proposta da Restauração Católica em pleno andamento. A Associação tinha como objetivos vigiar e administrar o sistema escolar  e  proposta educacional posta em prática nas comunidades coloniais; coordenar  a política de abertura de novas fronteiras de colonização; organizar as atividades econômicas nas bases da cooperação e solidariedade comunitária, incentivando as cooperativas de crédito, de produção de comercialização e de consumo; desenvolver mecanismos iniciativas de assistência  e seguridade social; zelar pela pureza da doutrina religiosa. O notável nessa organização foi o fato de ter sido confiada inteiramente às lideranças leigas, entre as quais eram eleitas as diretorias central, municipal e local. Os párocos e demais religiosos comprometidos com o Projeto não participavam nem na condição de assistentes eclesiásticos. Sua influência sem dúvida decisiva, emanava  do fato de que a investidura  que haviam recebido, fazia com que a influência se efetivasse, não a nível administrativo, mas no plano do propósito maior da catolicidade romana.

Em 1912, a Sociedade União Popular tomou o lugar da Associação Riograndense de Agricultores. Estritamente confessional engajou-se ainda mais no Projeto da Restauração Católica. Como tal o foco dos seus interesses e  o objeto  das suas preocupações foram os mesmos dos da Associação Riograndense de Agricultores que a precedeu e foi a inspiradora da sua criação. Nos congressos convocados de dois em dois anos pela Sociedade União Popular, aprofundaram-se e ampliaram-se em muito as questões de interesse básico como a escola, a educação, a economia, a organização comunitária, o solidarismo, projetos de novas fronteiras de colonização, assistência social, cuidado para com a saúde, a velhice, a organização paroquial, a prática da religião,  a vida sacramental, o respeito e a obediência  irrestrita às orientações da Igreja, a observância da disciplina católica. 

Os resultados do esforço das duas grandes organizações: a Associação Riograndense de  Agricultores e a Sociedade União Popular, tornaram-se cada vez mais visíveis no decorrer das décadas de 1920 e 1930. Ao começar a Segunda Guerra Mundial, o Projeto da Restauração Católica atingira o seu ponto mais alto, isto é, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, no Paraná e, em grande parte do restante do Pais, predominava um catolicismo calcado nos princípios teológicos, nos dogmas, na moral e na disciplina,  afinados com Roma. A tal ponto isso é verdade que se podia falar  não em Igreja “ultramontana”, mas em Igreja “ultra mare”, “ultra oceânica”. 

O Projeto da Restauração Católica contou com outro fator de grande importância: A imprensa católica. Aqui não é a ocasião nem o lugar para uma exposição sobre toda a imprensa católica no Estado, muito menos entrar em detalhes. Limitar-nos-emos às três publicações mais importantes. 

Em 1871 os jesuítas fundaram em São Leopoldo o jornal “Deutsches Volksblatt”. Foi composto e publicado naquela cidade até 1890. Transferido para Porto Alegre e, depois de passar pelas mãos de vários jornalistas, foi parar em poder do jornalista  Hugo Metzler. Com o seu falecimento  foi assumido pelo filho Franz Metzler que o editou até o seu fechamento na Campanha de Nacionalização em 1939. O jornal passou a ser o veículo de formação e informação mais importante e permanente do universo católico nos quase sessenta anos em que foi editado. Decididamente engajado  no Projeto da Restauração registrou em suas páginas tudo que pudesse interessar aos católicos teutos que o liam regularmente. Oferecia matérias de fundo principalmente no suplemento dominical “Sonntagsstimmen”, visando a formação humana e religiosa dos leitores. O “Deutsches Volksblatt” representa uma fonte indispensável para quem quiser entender a Restauração Católica  no sul do Brasil.

Entre 1900 e 1940 circulou a “Lehrerzeitung”, uma publicação mensal destinada aos professores das comunidades católicas. Sua linha editorial manteve-se  igualmente fiel ao Projeto da Restauração, tendo como alvo a formação, a informação e a orientação dos professores da rede comunitária. É difícil avaliar a importância  desse jornalzinho de apenas dezesseis páginas pois, destinava-se ao professor paroquial a quem como responsável pela educação, cabia introduzir as novas gerações no espírito da Restauração. Pelo fato de em suas mãos se concentrar a responsabilidade de alfabetizar, de catequizar e, principalmente, de formar e educar as crianças afinadas com a visão religiosa das comunidades, pelo fato de, além disso, ser o braço direito e muitas vezes o substituto dos párocos, pelo fato ainda de o professor exercer  a função de líder, conselheiro e modelo de virtudes  nas comunidades, fizeram do professor  o referencial de como deveria ser e deveria agir o cristão da Igreja Restaurada. 

Um jornalzinho menos conhecido e de duração mais curta foi o “Bauernfreund”, que circulou de 1900 a 1914. Como os anteriores  foi um veículo de formação e informação a serviço da Associação Riograndense de Agricultores. Em suas páginas ficaram registrados os objetivos, os projetos, as preocupações e as realizações dessa importante organização. 

Em 1912 foi criada a Sociedade União Popular. No mesmo ano começou a circular o “Skt. Paulusblatt”. Nas suas edições mensais essa revista assumiu o papel de porta-voz mais importante da nova Sociedade e do seu papel na Restauração. As matérias nela publicadas  podem ser novamente classificadas como de formação e informação. Sua linha editorial deixa claro desde o primeiro número a que veio: a defesa ostensiva do catolicismo teuto. O “Skt. Paulusblatt”. Com a circulação interrompida em 1939 ressurgiu em 1948 e, até 1960 continuou  serviço da Restauração Católica. É publicado ainda hoje como um dos raros periódicos em língua alemã no Brasil, mas, como é compreensível, seguindo uma linha editorial ajustada às circunstâncias do mundo e da Igreja de hoje.

No mesmo ano de 1912 entrou em circulação o almanaque anual “Der Familienfreund”. Como o “Skt Paulusblatt”, informava sobre os acontecimentos mais diversos, sempre numa perspectiva católica abordando  matérias  destinadas à formação do homem, da mulher, da juventude e da infância, em sintonia com os propósitos da Igreja. Além das publicações regulares circularam muitas outras avulsas, na sua maioria perseguindo o mesmo objetivo.

O último e o mais importante dos elementos que contribuíram para o êxito do Projeto da Restauração Católica foi a formação do clero tanto secular quanto regular. Nessa tarefa coube aos padres jesuítas uma responsabilidade toda especial. Ao assumir a arquidiocese de Porto Alegre em 1912, D. João Becker confiou a eles a formação do seu clero. No ano seguinte o seminário diocesano foi ocupar os prédios do antigo Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo, chamando-se daí para frente  Seminário Central de São Leopoldo. Até o final da década de 1930 funcionou aí também o Seminário Menor. Transferido para novos prédios e instalações em Gravataí, continuou contudo sendo dirigido pelos padres jesuítas. O seminário maior, filosofia e teologia, permaneceu em São Leopoldo. A ele afluíram além dos  seminaristas da arquidiocese, também os das demais dioceses do Rio Grande do Sul, de dioceses de Santa Catarina, do Paraná e de outros estados. Algumas congregações  religiosas mandavam seus futuros sacerdotes também para  o Seminário Central. O Seminário permaneceu em São Leopoldo até 1956, quando foi transferido para Viamão e confiado ao clero diocesano. 

Nos quarenta e três anos em que ditaram a orientação para a formação do clero, os jesuítas destinaram sempre os melhores quadros em filosofia, teologia, ascética, moral, direito canônico, para a formação dos seminaristas. E o resultado não podia ter sido outro: um clero inteiramente alinhado com o Projeto da Restauração Católica. De suas fileiras saíram dezenas de párocos e seus auxiliares, que em poucos anos ocuparam todas as paróquias do Rio Grande do Sul e parte das de Santa Catarina. Praticamente uma geração inteira de bispos tinham sido alunos do Seminário Central. Por suas dependências passou uma dezena de bispos de dioceses de outros estados, inclusive o cardeal arcebispo do Rio de Janeiro D. Jaime de Barros Câmara. 

Nesse cenário não se podem esquecer outros seminários menores como o de Cerro Largo e Santa Maria, também sob a responsabilidade dos jesuítas. 

A dinâmica da formação do clero diocesano foi acompanhada no mesmo ritmo e com a mesma seriedade  e empenho, na formação do clero regular em uma dezena de instituições mantidas pelas respectivas  ordens e congregações clericais como franciscanos, capuchinhos, jesuítas, redentoristas, palotinos, salesianos, etc. 

É preciso lembrar ainda que as congregações não clericais, como maristas e lassalistas e as muitas congregações religiosas femininas eram eficientes laboratórios em que se formavam, testavam e habilitavam os futuros agentes responsáveis pela edificação da Igreja Restaurada. 

Conclusões 
Uma conclusão geral que se pode tirar, considerando o grande conjunto de meios postos em prática pelas lideranças católicas e pelo povo em geral, para atingir o seu objetivo e devolver à Igreja a autonomia em relação ao Estado, a pureza da doutrina, a observância da disciplina religiosa e a vida sacramental foi, na verdade, um gigantesco Programa de Restauração Católica. 

Como segunda conclusão pode-se afirmar que os esforços empenhados pelas autoridades eclesiásticas, pelo clero, pelos religiosos e pelo povo católico em geral, foram amplamente recompensados. Ao eclodir a Segunda Guerra Mundial, a Restauração havia triunfado em quase tudo o que se propusera. Roma e o Romano Pontífice significavam a última instância em temos de doutrina e disciplina eclesiástica. O clero secularizado e a serviço de interesses profanos e levando uma vida pouco recomendável, cedera lugar a um clero teologicamente bem formado e disciplinarmente comprometido, uma prática religiosa voltada para a participação nos    sacramentos, uma religiosidade calcada nas verdades da fé tomara o lugar dos rituais sem consistência doutrinária, folclóricos e até francamente profanos.

Enfim uma nova Igreja tomara o lugar da velha Igreja do Padroado, uma Igreja que ocupava o seu lugar de destaque na sociedade brasileira, respeitando o Estado mas não lhe devendo favores muito menos fazendo concessões; uma Igreja livre, autônoma, fiel aos princípios doutrinários emanados de Roma; uma Igreja disciplinada, fazendo jus ao adjetivo de militante; uma Igreja que considerava este mundo como uma passagem, um período de provação; uma Igreja que preparava os fiéis para torná-los dignos de fazer um dia parte da Igreja Triunfante.