Os Jesuítas e a Imigração alemã
Introdução
Desde o seu descobrimento a América Latina tornara-se o cenário em que os jesuítas, mais do que os membros de qualquer outra ordem religiosa, implantaram projetos de cristianização e de promoção humana. Universalmente famosa e conhecida por todos foi a obra por eles edificada durante os séculos XVI, XVII e XVIII, tanto nas colônias espanholas quanto nas portuguesas. Podem ser encontrados no Chile liderando iniciativas no ensino, na instalação de oficinas, tipografias, artesanatos diversos, além de se dedicarem à catequese dos nativos e dos filhos dos espanhóis. Estão presentes no Chaco argentino na Província de Entre Rios e, principalmente, nas missões localizadas nos atuais territórios do Norte da Argentina, sul do Paraguai e sul do Brasil. Desde 1549 os jesuítas tornaram-se presença obrigatória no Brasil, empenhados de modo especial na catequese dos índios e na abertura de colégios para os filhos e descendentes de portugueses.
Depois da expulsão das colônias latino americanas e mais ainda depois da supressão da Ordem, suas obras foram entregues ao arbítrio e cobiça, aos interesses escusos, à hostilidade contra a Igreja e às investidas do iluminismo e demais correntes inovadoras do pensamento, que tomaram conta dos regimes europeus e por tabela também das colônias na América Latina. Relatos chegados até nós, correspondências, obras de inestimável valor histórico, etnográfico e antropológico, alem das imponentes ruínas de templos, as reduções e aldeamentos, testemunham ainda hoje, 350 anos depois, o que foi a obra começada pelos jesuítas de então. Por meio delas é possível avaliar, de alguma forma, o tamanho dessa obra e intuir o espírito, a dinâmica e a lógica que a orientou.
Restaurada a Ordem em 1914, em poucos anos os discípulos de Santo Inácio, como que emergindo revigorados de um “retiro” compulsório de 40 anos, retornaram aos antigos cenários apostólicos, para dar continuidade à obra interrompida. Voltaram aos colégios, reassumiram as missões populares, recomeçaram a conquista para a Igreja dos povos autóctones em todos os continentes e acompanharam pelo mundo afora, os emigrantes europeus em busca de novas pátrias. Foi em meio a essa dinâmica que em 1842 chegaram ao sul do Brasil os primeiros jesuítas da Ordem restaurada. Sua missão voltava-se agora, não para a catequese dos índios, mas oferecer assistência pastoral aos núcleos de povoamento em formação, cuidar da educação religiosa e profana e dar andamento a ambiciosos projetos de promoção humana.
O cenário físico e humano no sul do Brasil
No começo do século XIX.
A denominação Sul do Brasil não coincide aqui com a atual divisão do Pais em regiões. Refere-se apenas ao estado do Rio grande do Sul. Trata-se de uma área de 283000 quilômetros quadrados que, durante o Império, correspondia à Província de São Pedro do Rio Grande do Sul e, com a proclamação da República e 1889, como estado do Rio Grande do Sul. Em 1842, ano em que os primeiros jesuítas após a restauração da Ordem, pisaram o solo da Província de São Pedro, as condições físico-geográficas, sociais, políticas, econômicas e religiosas, podem ser resumidas, em linhas gerais, da seguinte forma.
Durante a década de 1820, após inúmeras escaramuças e uma verdadeira guerra, conhecida como a guerra Cisplatina, terminou por ser fixado o traçado definitivo das fronteiras entre as repúblicas da Argentina e principalmente do Uruguai e o Império do Brasil. No centro sul da Província predominavam as enormes extensões de campos naturais, a Campanha, ocupada por fazendeiros, donos de enormes estâncias, nas quais criavam rebanhos de gado, que lhes rendiam riquezas apreciáveis com a comercialização do charque e dos couros. Também o norte e o nordeste da Província, exibia as mesmas características com campos naturais a perder de vista, por sobre o planalto numa altitude media entre 800 a 900 metros, ocupado também por estâncias de criação de gado, rendendo prosperidade aos donos.
Entre as duas áreas de campos naturais localizavam-se as bacias medias e superiores dos rios que descem das encostas da assim chamada Serra, cobertas de florestas virgens praticamente intocadas. Formavam uma continuidade ininterrupta desde leste da Província até a parte central e de lá tomavam a direção norte e noroeste, cobrindo as regiões da Serra, Missões e Alto Uruguai.
As estâncias de criação de gado encontravam-se nas mãos de luso-brasileiros, e imigrantes açorianos e seus descendentes. Entre os peões de suas estâncias predominava o elemento mestiço, batizado genericamente como gaúcho. À margem das estâncias encontramos um tipo humano etnicamente heterogêneo, remanescente das contínuas campanhas militares, caçadores de escravos indígenas, aventureiros, foragidos da justiça, descendentes dos índios das reduções jesuíticas e seus mestiços com outras procedências ainda hoje conhecidos como “missioneiros”. Reunidos em pequenas tribos os sobreviventes dos povos indígenas, conhecidos como caingangues e guaranis, sobreviviam primitivamente, no recesso da mata virgem.
Como já lembramos mais acima foi na Província de São Pedro, especificamente na porção coberta por florestas pluviais e portadora de solos de alta fertilidade que, na transição do Reino Unido a Portugal e a Independência do Brasil, começou a ser testado um novo modelo de desenvolvimento econômico e social. Até então os únicos modelos de desenvolvimento no Brasil contemplado iniciativas de grande envergadura. Prosperaram então os ciclos do algodão, da cana do café e do gado, este último na Província de São Pedro. As grandes áreas florestais, sem indícios maiores de riquezas naturais como ouro, prata, cobre, pedras preciosas, ... permaneciam à margem do desenvolvimento econômico regional e nacional. Apesar de, na maioria dos casos, terem sido possessões legítimas de pessoas físicas ou do governo, na realidade não passavam de terras de ninguém e corriam o risco de serem simplesmente ocupadas, despojadas das suas reservas de madeira e seus solos depredados. Tornara-se inadiável ocupá-las planejada e racionalmente e torná-las produtivas. A opção foi por um modelo até então inédito no Pais: o assentamento de agricultores em pequenas propriedades entre 25 e 70 hectares, em regime de empreendimentos familiares, dedicados à policultura de subsistência em primeiro lugar e à geração de excedentes destinados ao abastecimento local e regional. Com essa estratégia pretendiam-se alcançar ao mesmo tempo vários objetivos: povoar de vez essas terras, estimular o surgimento de uma classe média rural de bom nível, produzir alimentos como feijão, arroz, farinha de mandioca, batata, trigo, etc. para, além de alimentar a família, abastecer as cidades, as tropas e, quem sabe, exportá-los para os outros estados. Ao mesmo tempo favorecia-se a atividade de artesãos, complementar à agricultura e, quem sabe, para servirem de gérmen para o futuro surgimento de indústrias.
A primeira experiência neste sentido já fora feita durante a segunda metade do século XVIII, com colonos vindos dos Açores. Como essas ilhas não dispunham de excedentes em número suficiente para povoar todas as terras disponíveis no sul do Brasil, a saída foi recorrer a outras fontes de imigração. A preferência recaiu sobre alemães e italianos, pelo menos na primeira etapa. Os motivos para essa preferência estão ligadas a motivos diversos, entre os quais podem ser citados: a tradição várias vezes milenar desses povos na dedicação à agricultura familiar em pequenas glebas, o fato de alemães e italianos nunca se terem envolvido em tentativas de ocupação de partes do Brasil como aconteceu como os franceses, ingleses e holandeses, o fato de o príncipe herdeiro D. Pedro ser casado com a princesa austríaca D. Leopoldina de Habsburgo e outras razões mais.
A primeira leva de imigrantes alemães desembarcou em São Leopoldo no dia 25 de julho de 1824 e estabeleceu-se na Real Feitoria do Linho cânhamo, local escolhido como ponto de irradiação do novo projeto colonizador. Seguiram-se levas e mais levas de novos imigrantes até que o fluxo foi interrompido por 10 anos, o tempo que durou a Guerra dos Farrapos (1835-1845). A imigração foi retomada com vigor redobrado a partir de 1848. Os imigrantes alemães que chegavam distribuíam-se numa proporção de 46% de católicos para 54% de protestantes. Os núcleos coloniais que se multiplicavam rapidamente, na maioria dos casos, não adotaram qualquer tipo de providência para separar os povoadores por confissão religiosa. Essa situação iria contribuir mais tarde para uma série dificuldades no exercício da cura de almas, de modo especial entre os católicos, devido à proibição canônica dos casamentos mistos e a não admissão de padrinhos protestantes para os batizados católicos. Aliás os católicos ficaram sem qualquer tipo de assistência religiosa por parte de sacerdotes, até o ano de 1843 e, somente a partir de 1849, puderam contar com a presença regular de sacerdotes de língua alemã.
Nos 25 primeiros anos preservaram, da melhor forma possível, ao menos o essencial da sua fé e religiosidade. Para tanto recorreram às orações e ensinamentos em família e às devoções coletivas aos domingos em encontros dedicados à oração. O Pe. Ambros Schupp, registrou a situação ao escrever em seu livro: Os Jesuítas alemães no Rio Grande do Sul (Brasil).
Certamente não foi um sacrifício pequeno para o espírito profundamente religioso dos colonos alemães, ao se verem, assim de uma hora para a outra, erradicados de seu ambiente natal acalentado pelo espírito da fé. Aqui na mata virgem não soava nenhum sino chamando-os para a igreja, nenhum órgão dispondo-os para a devoção, nada em seu derredor que lembrasse as belas festas da terra natal. Aproximava-se o natal e o sol queimava e a natureza exibia seu esplendor festivo. Nenhum vestígio da neve e das flores da neve na janela, tão características do natal na Alemanha. Aproximava-se a Páscoa com o campo e a floresta ostentando a sua exuberância e esplendor. Entretanto na colônia era outono e o inverno se aproximava. Passavam, umas depois das outras, as belas festas de Nossa Senhora e, se não fosse a voz interior, nem sequer seriam lembradas. (Schupp, 2004)
A situação começaria a mudar para melhor a partir de 1842