A visita dos primeiros jesuítas
A primeira visita de jesuítas ao Sul do Brasil após a restauração da Ordem, aconteceu em 1842, como consequência da sua atuação tumultuada sob o regime do ditador Rosas na Argentina (1830-1852). No começo ele os tratara muito bem. Pretendia coopta-los para servirem às suas intenções despóticas. Como se recusaram a fazer esse papel, determinou a sua expulsão do território argentino, por meio de um decreto de 22 de março de 1841, dando-lhes oito dias para abandonar o pais. O Pe. Mariani Verdugo, superior dos jesuítas latino americanos, refugiou-se em Montevidéu. Para lá retiraram-se também outros membros da Ordem, para aguardar tempos mais favoráveis e retornar aos seus postos na Argentina. Neste meio tempo dedicaram-se a atividades próprias da sua vocação no Uruguai e fora dele.
Neste contexto o Pe. Verdugo viajou para o Rio de Janeiro, em companhia do Pe. Sadó, com a intenção de abrir aí um novo campo de atividades. Escolheu o Rio de Janeiro porque aí os jesuítas contavam com um aliado e defensor de peso na pessoa do internúncio apostólico Ambrosio Campodonico, empenhado no retorno dos jesuítas a todo o território nacional. Naquela ocasião haviam chegado informações sobre a precária situação religiosa do sul do Brasil, acompanhadas com o pedido de socorro no sentido de enviar sacerdotes para lá. O internúncio propôs ao bispo o envio de jesuítas para o Rio Grande do Sul. Para o bispo, entretanto colocaram-se duas dúvidas. Em primeiro lugar mandar jesuítas exatamente para a Província em que o fantasma pombalino ainda se fazia muito presente, poderia reavivar com facilidade, episódios históricos não totalmente esquecidos. Em segundo lugar havia a questão dos subsídios. Num rescrito de 22 de janeiro de 1824, o governo permitia aos colonos alemães terem seus próprios curas de alma, mas pelo mesmo documento era vedado aos estrangeiros o recebimento de subsídios do governo. A questão ficou equacionada quando, apos um acerto com o Pe. Verdugo, o internúncio comunicou ao bispo que os padres renunciavam aos subsídios.
Removidos os obstáculos o Pe. Vedugo chamou o Pe. Coris de Montevidéu, para em seguida, enviá-lo para o sul do Brasil na companhia do Pe. Sadó. Começaram a viagem para Porto Alegre no dia 25 de julho de 1841. A viagem de navio foi interrompida por uma tempestade na altura de Santa Catarina e a embarcação arrastada para ilha do mesmo nome. Receando novas peripécias numa viagem marítima até o destino, os padres optaram pela via terrestre, percorrendo por terra 400 quilômetros. Finalmente no dia 15 de outubro de 1842 apresentaram-se às autoridades eclesiásticas e civis em Porto Alegre. Tiveram uma recepção calorosa de ambas. O pároco da matriz fez questão de hospedá-los na sua casa.
Sem tardar os padres Coris e Sadó começaram as suas atividades apostólicas. Escolheram as missões populares como primeira contribuição para a renovação religiosa, que se encontrava numa situação nada animadora entre os habitantes de origem lusa e açoriana em Porto Alegre e Pelotas. Preferiram começar por Pelotas por uma razão prática. Pouco versados no português começariam a pregação por uma cidade menor, interiorana para adquirir mais fluência na língua nacional. Entre outubro e março pregaram em Pelotas oito missões, uma após a outra, para depois fixarem residência em Porto Alegre. Não demorou para que uma rica dama de nome Delfina Carlota Araújo Brusque, lhes cedesse gratuitamente uma casa e um escravo. O pároco forneceu a mobília para a residência e gêneros alimentícios.
No seu já citado livro a “A Missão dos Jesuítas alemães no Rio Grande do Sul”, o Pe. Schupp resumiu as missões em Porto Alegre.
O afluxo do povo foi de todo extraordinário: a igreja estava repleta até o coro; participaram exatamente os cidadãos de maior destaque da cidade.
Durante o sermão reinava um silêncio reverente. Os confessionários foram sitiados. De modo especial no dia da comunhão geral oito padres atenderam às confissões da manhã até o entardecer, sem conseguir satisfazer a todos que se apresentaram para a confissão. Assistiu-se a uma maravilhosa movimentação que empolgava a população inteira de Porto Alegre.
Com certeza os horrores da guerra civil que ainda não terminara de todo, contribuiu com a sua parte. Quem sabe também o exemplo de muitos argentinos fervorosos refugiados em Porto Alegre, fugidos dos bandos assassinos de Rosas, não deixaram de ter a sua parte de influência. O certo é que desde aquela data aconteceu em Porto Alegre uma profunda mudança na vida religiosa. (Schupp, 2004, p. 102)
Naquela altura dos acontecimentos a colônia alemã expandia-se num ritmo acelerado entre 30 a 50 quilômetros ao norte de Porto Alegre. Católicos e protestantes viviam misturados numa proporção que favorecia levemente os últimos. Acontece que os protestantes dispunham, desde muito cedo de pregadores, embora não ordenados, escolhidos dentre os membros das comunidades, suprindo de alguma forma as necessidades espirituais dos fieis. Entre os alemães católicos a situação era bem mais difícil, para não dizer critica. Também eles viviam em comunidades organizadas, costumavam reunir-se aos domingos e dias santos para a oração e os cantos em comum, emprestar-se apoio mutuo e ouvir comentários sobre textos da Sagrada Escritura, feitos por alguém um pouco mais instruído, credenciado por eles. Careciam, porém, daquilo que para um católico era fundamental e sem o qual o esforço de qualquer boa vontade, terminaria a médio e curto prazo, em desorientação doutrinária, no relaxamento da disciplina religiosa, na dissolução dos costumes e na perda da própria identidade. Tornara-se pois, urgente providenciar por uma assistência religiosa prestada pela presença regular de sacerdotes. A ausência de uma assistência nesses moldes durante quase 20 anos, levara muitos aos limites perigosos da indiferença religiosa, da troca do catolicismo pelo protestantismo, do abandono das orientações morais da Igreja. A religiosidade contudo, embora precária, dormitava debaixo das cinzas, falando apenas a ocasião para irromper com todo o vigor. E esse momento se concretizou quando em 1844 os padres Sadó e Coris aceitaram o convite para pregar uma missão em São Leopoldo, sede da Colônia Alemã. A missão começou com uma procissão pelas ruas da cidade. Um relato da época descreveu assim o acontecimento.
Todos participaram em tamanha ordem e edificação, como não tinham sido observados em nenhuma missão anterior. O espetáculo em que católicos caminhavam em grande número em parte misturados com não poucos protestantes que, longe de ofender e ridicularizar, participaram com o maior respeito, constituiu-se num triunfo da religião. Chegaram ao ponto de não poucos deles, entre eles o pastor e o chefe militar protestantes, participarem do culto divino, persignarem-se como se fossem católicos, rezarem e acompanharem a cerimônia em tudo.
Um registro todo especial merece a devoção e piedade dos colonos alemães. Deslocavam-se diariamente das suas picadas, às vezes por quatro ou cinco horas, a pé, pessoas isoladas ou em grupos, percorrendo caminhos acidentados, rezando e cantando para marcar presença nos sermões e instruções, dos quais a grande maioria não entendia nada. (Schupp, 2004, p. 103-104)
As missões pregadas pelos padres Sató e Coris em Pelotas, Porto Alegre e, por fim, em São Leopoldo, revestiram-se de um significado bem mais profundo e bem mais duradouro do que poderia parecer à primeira vista. Pensando bem, se a expulsão dos jesuítas da Argentina pelo ditador Rosas, privou aquele pais duma poderosa força renovadora e restauradora no plano religioso, esta foi transferida para o sul do Brasil. Com as missões pregadas por esses jesuítas deu-se início a história de um florescimento religioso que tornaria o sul do Brasil exemplo para toda a América Latina. As sementes plantadas entre 1842 e 1844, caíram em solo fértil, germinaram e deram frutos em abundância. A velha igreja de tradição lusa, desgarrada em parte da doutrina e disciplina oficial, submissa aos ditames e aos caprichos das autoridades civis sob o regime do padroado, começava a ser superada, por um catolicismo no caminho de retorno à doutrina e disciplina do Concílio de Trento, sob o comando do romano Pontífice. Em outras palavras. O projeto da Restauração Católica começava a dar os primeiros passos no sul do Brasil. Por isso chega a configurar até certo ponto um equívoco quando se relaciona a visita dos jesuítas espanhóis, exclusivamente à penúria religiosa dos imigrantes alemães. Tanto assim que suas primeiras atividades missionárias tiveram como palco Pelotas e Porto Alegre, duas cidades de predominância lusa e açoriana absoluta. Somente um ano depois pregaram uma missão em São Leopoldo, onde vivia também um número respeitável de lusos. A incursão apostólica nas comunidades inteiramente alemãs no interior, aconteceu apenas em 1844. O que, portanto, importava era o despertar religioso de todos os católicos, independente da sua origem étnica, para o catolicismo romanizado que tomava impulso no mundo inteiro. Esse mesmo objetivo iria pautar a atividade pastoral dos jesuítas alemães que chegaram ao sul do Brasil a partir de 1849.
No ano seguinte, 1845, os mesmos padres Sató e Coris retomaram as missões, desta vez na colônia alemã propriamente dita. Pregaram sucessivamente em Bom Jardim, São José do Hortêncio e Dois Irmãos. Apesar de não entenderem nada do que os missionários falavam nos sermões, a atenção dos colonos foi total como que intuindo o que lhes era dito. O mais importante foi certamente a ocasião que se lhes oferecia para porem em dia as suas consciências pela confissão, apesar das dificuldades da língua, participarem da eucaristia e regularizarem batismos e matrimônios. O que deixou uma impressão toda especial foram as solenidades das primeiras comunhões. O Pe. Schupp registrou o fato na sua já citada obra.
Duas coisas impressionaram de modo especial, o piedoso canto dos alemães, amantes do canto e as solenidades da primeira comunhão, incluindo todas as cerimônias que ainda hoje costumam acompanhar o espírito piedoso na terra natal. (Schupp, 2.004, p. 140)
A passagem dos padres Sató e Coris pelas colônias alemãs do Rio Grande do Sul, além de por em dia a vida sacramental dos colonos, teve uma outra conseqüência não menos importante. Já que a curto prazo não havia uma perspectiva concreta para uma assistência pastoral permanente por parte de sacerdotes que dominavam a língua alemã, os padres espanhóis lançaram mão de outros meios para amenizar de alguma forma a situação. O primeiro deles consistiu em fornecer livros edificantes e instrutivos para, de alguma forma suprir a ausência de catequeses, prédicas, instruções religiosas, ou simplesmente satisfazer a sede de boas leituras. A idéia foi apresentada ao Pe. Roothan, geral da Ordem. Ele a julgou pertinente e encarregou o P. Beckx para concretiza-la. Não demorou e foi descarregada em Porto Alegre uma enorme caixa com livros. O Pe. Sató em pessoa encarregou-se de leva-los até a colônia onde a distribuição ficou ao encargo dos fabriqueiros. Como consta em relatos esses livros foram mais tarde passados de geração em geração, como preciosos objetos de herança.
A segunda solicitação encaminhada aos superiores da Ordem, tinha como objetivo resolver a longo prazo a questão da assistência pastoral entre os imigrantes alemães. Sem uma solução definitiva dessa questão, desenhava-se no horizonte a perspectiva de um arrefecimento religioso fatal, especialmente entre as gerações nascidas no Brasil, ou a passagem em massa para o protestantismo que, na época, já contava com uma assistência religiosa regular, embora deixasse muito a desejar.
A iniciativa de recorrer aos superiores da Ordem, partiu novamente dos missionários espanhóis. O Pe. Morey, superior da província espanhola, encaminhou uma petição neste sentido ao Geral. O pedido encontrou pronta simpatia por parte do Pe. Roothan.