Bicentenário da Imigração - 48

A situação legal da Missão no Rio Grande do Sul

Os padres Lipinski e Sedlalc que começaram a atuar  entre os imigrantes alemães a partir de 1849, encontraram-se inicialmente sob a jurisdição da Província dos jesuítas da Espanha. Quando o Pe. Lipinski foi nomeado superior da Missão, o cargo conferia-lhe  autoridade apenas sobre a atividade entre os colonos alemães. Essa situação prolongou-se até 1861. Naquele ano a Missão passou para a jurisdição da Província Romana. Seguiram-se depois as visitas de vários visitadores romanos, entre eles o Pe, Rafael de Ponza,  em 1868, antigo Provincial da Província Romana. Seus relatórios ao geral da Ordem, Pe. Beckx, resultaram em 14 de julho de 1869, na transferência da Missão dos jesuítas no Rio Grande do Sul para a jurisdição da província da Alemanha. A dependência da Província Alemã se prolongaria  até o final da década de 1920, quando passaria a província autônoma, como Província Sul-Brasileira da Companhia de Jesus com jurisdição sobre os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e os dois Mato Grosso. O Pe. Feldhaus foi nomeado primeiro superior de toda a Missão dos jesuítas no Rio Grande do Sul.

No ano da chegada dos primeiros padres alemães (1849), os imigrantes alemães e a primeira geração nascida no Brasil, concentravam-se ao norte e noroeste de São Leopoldo, do foco inicial da expansão, num raio de aproximadamente 50 quilômetros. Dezenas de comunidades viviam confinadas nas suas picadas e linhas, em torno de três pólos de  maior expressão: Dois Irmãos, São José do Hortêncio e Bom Jardim.

A situação religiosa dos colonos privados durante um quarto de século de uma ausência religiosa regular, foi assim descrita pelo Pe. Ambros Schupp.

Ao chegarem os dois padres encontraram as picadas numa situação religiosa nada animadora. A população estava fortemente misturada. Protestantes e católicos somavam aproximadamente o mesmo número. Esse estado de coisas oferecia sérios problemas para o exercício da cura de almas, como sem tardar se verificaria. A conseqüência mais imediata e mais visível foram os casamentos mistos e a indiferença religiosa. Entre as duas confissões estabelecera-se, pouco a pouco, uma realidade parecida à fratura mal curada de um osso, cuja posterior correção implicaria em consideráveis sofrimentos. A prolongada privação de uma cura de almas regular, generalizara também entre os católicos, uma espécie de embrutecimento religioso.

Apesar de tudo, porém, a necessidade religiosa subsistira. E como careciam de um sacerdote, recorreram a um culto divino leigo e confiaram a sua condução a um colono escolhido do seu meio. Esse, entretanto, mais piedoso do que sensato, desgarrou-se pouco a pouco de todo do aminho correto, permitindo-se os procedimentos mais inusitados. 

Dirigia-se ao altar vestindo uma simples túnica de cujos bolsos emergiam  as cartas do baralho. Dois meninos vestindo sobrepelís o auxiliavam enquanto ele próprio imitava todos os procedimentos do sacerdote. Valia-se de um missal e entoava o Glória, cantava as Orações, a Epístola, o Evangelho, o Credo, o Prefácio. Em resumo fazia tudo o que o sacerdote costumava fazer, apenas não pronunciava fórmula da consagração.

A situação já se prolongara por um longo tempo, quando em 1847 e 1848 veio um grande número de novos imigrantes. Obviamente ficaram muito escandalizados com as atitudes indignas e ridículas do homem e exigiram o seu afastamento. Encontraram, porém, uma decidida resistência. Os velhos colonos haviam-se acostumado demais aos abusos e protegeram o homem, ao mesmo tempo em que enfrentaram os recém-chegados com os qualificativos mais pesados.

A discórdia avolumava-se a cada dia que passava, dando a impressão que os colonos se encontravam aos domingos e feriados, não para rezar, mas para brigar. Faltou pouco para se agredirem com machados e machadinhas. (Schupp, 2.004, p 178-179)

Para completar o cenário em que os missionários iriam trabalhar temos as difíceis condições de locomoção. O cavalo e a mula eram as únicas  alternativas para percorrer a região. Além das grandes distâncias, as trilhas abertas na mata, os caminhos precários e as estradas primitivas, se é que se pode falar em estradas, tornavam as cavalgadas  solitárias  por horas a fio,  cansativas, desgastantes e, não raro, perigosas. Mais tarde ocorreram casos fatais em que padres pereceram em conseqüência  de quedas do cavalo ou afogamento na correnteza dos rios. 

Foi nesse contexto social, religioso e físico geográfico que os padres Lipinski e Sedlac e o irmão Sontag, fixaram residência em Dois Irmãos e deram início à obra missionária que evoluiria, nas décadas que se seguiram, para uma autêntica obra civilizatória. 

Uma dos desafios mais urgentes a enfrentar foi a disputa religiosa entre os colonos mais antigos e os recém-chegados da Europa. Depois de ouvir detalhadamente as duas facções, o Pe. Lipinski chegou à conclusão que os últimos estavam mais próximos do caminho certo. Num tom muito sério durante o sermão, traçou as diretrizes para a prática religiosa, colocando um ponto final às desinteligências. Em questão de pouco tempo a crise estava superada e a vida religiosa nas comunidades entrou num ritmo afinado com os ensinamentos e as normas disciplinares oficiais da Igreja. O ensino religioso intenso e sistemático ministrado pelos missionários, os sermões com seu sólido conteúdo doutrinário e um forte apelo moralizador dos costumes, dirigido às crianças, aos jovens e adultos, o estímulo diuturno para a recepção dos sacramentos, fizeram das comunidades católicas, em questão de poucos anos, modelos de vida e prática religiosa, afinadas com o Projeto da Restauração Católica.

Ainda no mês de agosto o Pe. Lipinski experimentou o seu batismo de fogo ao deslocar-se a cavalo para Bom Jardim, duas horas distante de Dois Irmãos. Contam os relatos que chegou no destino depois de atravessar a mata virgem, cruzar por pântanos e enfrentar arbustos cobertos de espinhos. Precisou de ajuda para desmontar e tratar as mãos ensangüentadas, para depois continuar a cavalgada e pernoitar na casa de um colono.

Nada disso, porém, assustou ou deteve o zeloso missionário. No dia 24 de agosto encontramos o Pe. Lipinski em São José do Hortêncio. Essa primeira incursão no território confiado à responsabilidade dos dois padres, foi suficiente para dar-lhe uma idéia inicial do porte do empreendimento. Tratava-se de uma região montanhosa, coberta de mata virgem, retalhada por inúmeros vales e arroios, medindo cerca de cinco milhas quadradas, abrigando uma população de 3500 a 4000 almas, em constante crescimento pelo acréscimo vegetativo e o aporte de novos imigrantes. 

O Pe. Lipinski fixou residência em Dois Irmãos e o Pe. Sedlac em São José do Hortêncio. A fisionomia da colônia foi mudando pouco a pouco. Crescia a piedade e a observância dos domingos e dias santificados, enquanto cediam na mesma proporção as diversões menos recomendáveis como a bebida, o jogo e os casamentos irregulares eram postos em dia. 

Logo no início veio à tona  quão nefasta tinha sido a longa privação de uma assistência  espiritual  regular somada à convivência com os protestantes. A animosidade contra os padres tinha a sua origem principalmente em duas questões nas quais o direito canônico os impedia de contemporizar: os casamentos mistos e a aceitação de protestantes como padrinhos em batismos católicos. No primeiro caso a exigência do compromisso da parte não protestante de não interferir na prática religiosa do cônjuge católico,  o compromisso de educar os filhos na confissão católica, significava na prática  a renúncia  à tradição protestante da parte dos filhos e netos. A proibição de protestantes servirem de padrinhos para crianças católicas para muitos, também católicos, não passava de uma intransigência inaceitável. 

Já pelo ano da chegada em 1849 o clima de hostilidade contra os padres atingira um nível  critico. O Pe. Lipinski  encontrava-se em  Hamburgo Velho por ocasião da festa da Imaculada Conceição. Num tom provocador foi-lhe deixado claro que sem demora os padres seriam obrigados a partir. Foi desenterrado o velho boato a respeito das fortunas, dos tesouros dos jesuítas que, afirmava-se, teriam a seu dispor navios para o transporte marítimo. O resultado prático dessas suspeitas desabanadoras refletiram-se no suporte material dos padres. Também não faltaram tentativas para denegrir moralmente os missionários, sendo espalhado o boato que mantinham mulheres em suas casas. Chegou-se ao ponto de tornar pública a notícia absurda  que os padres impunham como penitência às mulheres casadas com protestantes o envenenamento dos maridos.

Tendo São Leopoldo como foco de todas as intrigas um libelo acusatório foi apresentado ao Presidente da Província. À essa altura algumas damas do círculo das relações do Presidente, haviam tomado conhecimento da trama e alertaram o P. Martos, superior dos padres, em Porto Alegre. Este chamou o Pe. Lipinski a Porto Alegre. 

O Pe. Lipinski tinha trabalhado demais, estava cansado e doente, mas atendeu prontamente ao chamado. Em Hamburgo Velho tinha-se conhecimento da convocação. As pessoas gritavam-lhe ofensas enquanto acenavam com a condenação. Ao passar por São Leopoldo foi obrigado a ouvir as “gentilezas” da parte do pároco. Embarcou numa lancha para chegar em Porto Alegre tarde da noite. No dia seguinte aconteceu o encontro como o Presidente da Província. Este mostrou-se satisfeito com as explicações do Pe. Lipinski e como demonstração pública  de que não havia nada de errado com o comportamento dos missionários, foi em pessoa ao embarque do padre, tirou o chapéu  e, para que todos ouvissem, despediu-se em voz alta: “Boa viagem padre Agostinho!”

Como era de esperar as hostilidades não terminaram com esse revés dos inimigos dos padres, principalmente com seu crescente êxito pastoral. O boato sobre os supostos  tesouros em poder dos jesuítas, por pouco não lhes custou a permanência no Rio Grande do Sul. As esmolas e as contribuições espontâneas foram minguando, comprometendo seriamente o mais indispensável para o sustento. Um outro foco de atrito resultou do hábito de  os jesuítas não cobrarem  emolumentos pelos batizados, sermões, etc. Desta maneira os párocos ficavam privados das eventuais porcentagens que costumavam canalizar para si. Os auxílios oriundos das  contribuições  caridosas de alguns fieis não eram suficientes para assegurar um mínimo de segurança. Na prática os padres dependiam dos meios oriundos da “Propaganda Fidei” de Roma. Desta forma a situação alcançara um nível critico. 

A todas essas dificuldades veio somar-se uma outro ainda mais séria. Neste meio tempo surgira um movimento muito forte na Câmara no sentido de expulsar os padres espanhóis dos seus trabalhos nas reduções e da própria cidade de Porto Alegre. Concretizando-se a ameaça a permanência dos missionários alemães estava comprometida. 

O Pe. Lipinski empenhou-se o quanto pôde junto ao Pe. Verdugo e este junto ao Geral da Ordem em Roma, Pe. Roothaan, no sentido de salvar a obra começada e assegurar a sua continuidade. Felizmente a questão teve um desfecho favorável da parte de Roma e os dois jesuítas puderam retomar o seus trabalhos entre os colonos. Começaram então a enfrentar  uma série de obstáculos, desta vez  inerentes ao próprio contexto  social, religioso e confessional da colônia alemã. As causas resumiam-se quase sempre na insolúvel questão  dos casamentos mistos, padrinhos nos batizados, conversões de protestantes ao catolicismo e na lendária hostilidade dos maçons aos jesuítas.

A situação chegou a ponto tal que o Pe. Lipinski sofreu um atentado numa emboscada perto da localidade de “14 Colônias”. Felizmente nenhum dos três tiros disparados contra ele acertou o alvo. Não ficou claro se foi uma advertência ou  má pontaria. 

 Perceberem que nenhum dos recursos até então empregados surtira os resultados desejados, os inimigos dos padres recorreram às autoridades civis. Um documento entregue nas mãos do Presidente da Província ameaçava livrar-se dos padres com as armas na mão. O presidente mandou o chefe de policia inteirar-se da situação. O relatório elaborado pela autoridade policial, favorável aos padres, logrou acalmar de alguma forma a situação. 

A tempestade mal amainara quando um novo contratempo veio perturbar a tranqüilidade dos dois jesuítas. Desta vez partiu do pároco de São Leopoldo. Este endereçou ao bispo um verdadeiro libelo acusatório, relatando tudo o que de desfavorável aos padres lhe havia chegado aos ouvidos. O bispo mandou uma severa advertência aos  dois. Nela alertava que se ativessem estritamente ao que dispunha o vigário e se abstivessem de administrar os sacramentos sem a sua autorização. 

O Pe. Lipinski doente e acamado mandou o escrito do bispo para o Pe. Martos em Porto Alegre. Este dirigiu-se imediatamente a Dois Irmãos e aproveitou a passagem por São Leopoldo para uma visita ao pároco e tentar equacionar a situação. Constatou de imediato que se tratava, em última análise, apenas dos emolumentos. Após entender-se como o pároco sobre esta questão, dirigiu-se a Dois Irmãos para buscar copias  autenticadas das autoridades concedidas  aos padres pelo bispo, regressando depois a Porto Alegre para um encontro com D. Feliciano.

Este reconheceu a precipitação no envio da admoestação, reafirmou o reconhecimento e o apreço pelo trabalho dos padres. Assim estava superado também este desencontro. 

No ano de 1858 a peste assolou Porto Alegre. O interior da Província inclusive as colônias alemãs não foram poupadas. Os jesuítas espanhóis sediados na capital, deram o melhor de si na assistência e socorro às vitimas da epidemia. Entretanto na colônia os dois jesuítas trabalhavam incansavelmente na organização das duas primeiras paróquias: Dois Irmãos e São José do Hortêncio para, a partir delas, consolidar as bases para a expansão e o florescimento do catolicismo entre os imigrantes e seus descendentes.

Superada a peste na capital o Pe. Verdugo percorreu a colônia numa viagem de observação mais atenta. Deixou registrado no seu  diário o que observou e o que sentiu. A uma certa altura lê-se: 

Nas colônias em que os nossos padres põem em prática o seu zelo apostólico, permite-se vislumbrar um futuro auspicioso apesar da mistura de católicos e protestantes. Entre uns preservou-se o espírito religioso, entre os outros os bons costumes e entre todos a bela harmonia, mérito depois de Deus, dos nossos padres. Evitam propositadamente ocupar-se no púlpito com as diferenças doutrinarias religiosas. Em compensação insistem, para o bem de todos, numa vida de costumes puros. Desta maneira  preserva-se a boa ordem e harmonia nas famílias. O jogo e as bebidas vão desaparecendo e o número de nascimentos extra-matrimoniais diminuiu a tal ponto que entre os católicos se igual a zero. Alimenta-se um verdadeiro horror aos casamentos mistos. Os costumes e hábitos alemães, alicerçados  no amor, na vontade de trabalhar, na submissão dos filhos e na sua educação rigorosa, permanecem em pé.

Grande foi a minha alegria e não menos a edificação, ao assistir à maneira como celebravam os domingos e dias santificados. Os fieis vêm de longe percorrendo caminhos incômodos, passando por matos e morros, normalmente a cavalo, mas também a pé. Muitos põem-se muito cedo a caminho para não se atrasar para o  sermão. Com verdadeira fome escutam a palavra de Deus e não cansam ou demonstram tédio mesmo que a prédica dura uma hora ou passa dela. Depois acompanham  a missa geralmente cantada. Mesmo durante as missas comuns homens e mulheres, separados em ambos os lados da igreja, cantam com grande disciplina e ritmo as orações e demais cerimônias, num tom que se assemelha ao gregoriano. No ofertório levantam-se dos seus lugares e em fila aproximam-se do altar. Depositam suas esmolas conforme a preferência de cada um e, passando por trás do altar,  retornam aos seus lugares. 

Os homens seguem as mulheres, sem que na época, se percebessem olhares indiscretos, como lamentavelmente se observam em outros lugares nas igrejas. Terminada a missa reza-se a ladainha de Nossa Senhora. Em alguns domingos caminha-se depois até a cruz da missão que os nossos padres (espanhóis) ergueram em 1843. Na frente vai a cruz ladeada por duas bandeirinhas carregadas por meninos. Em duas filas seguem os outros meninos, depois os rapazes e, finalmente, os homens casados. O sacerdote fecha o cortejo. Ladeiam-no dois coroinhas portando bandeirinhas, com forma e colorido diferentes das primeiras. Seguem as mulheres, em primeiro lugar as meninas, depois as moças, as mulheres casadas e. por fim, as viúvas e as anciãs. Durante o percurso todos cantam a ladainha de Todos os Santos. (Schupp, 2.004, p. 183-184)

O relato do Pe. Verdugo não deixa dúvidas de que no Rio Grande do Sul germinava  a semente de uma obra que prometia frutos abundantes para o futuro do catolicismo não só daquela Província como de todo o Brasil. As décadas que se seguiram comprovaram à saciedade esse prognóstico. O constante aporte de novas levas de imigrantes, o crescimento vegetativo dos já aqui radicados, somados à multiplicação e a intensificação das necessidades materiais e espirituais das comunidades coloniais, reclamavam reforços urgentes para auxiliar os dois primeiros jesuítas alemães, na ingente obra evangelizadora e civilizatória em gestação. Os  superiores da Ordem, atentos aos fatos, mandaram em 1858 mais dois sacerdotes, os padres Bonifaz Klüber e Michael Kellner, acompanhados pelo irmão leigo Franz Ruhkamp.
(N.B. O Projeto Pastoral dos jesítas foi contemplado por um livro do autor dessas linhas e editado pela Editora Unisinos, em 2013)

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