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A Natureza como Síntese - 67

Theodosius Dobzhansky (1900-1975)

Perfil de Dozhansky. Theodosius Dobzhansky  nasceu em 1900 na Ucrânia, filho único do professor de matemática Grigory Dozhansky. Cursando o segundo grau noturno dedicou-se à coleção de borboletas que o motivou a tornar-se biólogo. Trabalhou e estudou na universidade de Kiev entre 1917 e 1924. Transferiu-se então para Leningado onde, sob a orientação  de Yuri Filipechenko, iniciou-se no estudo da Drosophila melanogaster, num laboratório recém montado para essa  finalidade. Em 1927  emigrou para os Estados Unidos como membro do Conselho Internacional de Educação da Fundação Rockfeller. Trabalhou na universidade Columbia com Thomas Hunt Morgan, pioneiro no estudo da genética valendo-se da Drosophila melanogaster. Com ele transferiu-se para a Universidade da Califórnia em Berckeley, onde permaneceu até 1940. Fez observações com a mosca da fruta também fora do âmbito da universidade. Em 1937 obteve a cidadania americana. No mesmo ano publicou uma das suas obras mais importantes: “Genetics and the Origino of Species”. Em 1940 Dobzhansky retornou à universidade Columbia onde trabalhou até 1962. Até a sua aposentadoria em e 1971 pesquisou no Instituto Rockfeller. Como professor  emérito voltou para a universidade da Califórnia. 

A obra que escolhemos para apresentar a concepção de Dobzhansky sobre a natureza como síntese é o livro publicado em 1969, com o título na tradução para o espanhol: Herencia y Naturaleza del Hombre. Nas três páginas do prefácio ele chama a atenção para a gigantesca expansão da atividade científica. O número de cientistas cresce proporcionalmente mais do que o da população mundial. Essa realidade leva a uma série de consequências que merecem atenção. Uma delas refere-se a especialização crescente e no mesmo ritmo do número de especialistas que se somam anualmente aos já em atividade. Com isso abrem-se novas frentes, com novas especializações. Daí resulta que hoje é simplesmente impossível que um só cientista seja capaz de abarcar  sequer os conhecimentos gerados na subárea, por ex., da zoologia ou da botânica, fazendo com que se corra o risco de não se perceber o conjunto em que a especialidade se encontra inserida. O desmonte dos objetos de pesquisa chega ao extremo de os resultados já não interessarem a mais ninguém além do próprio especialista. – Um segundo fenômeno que corre paralelo a esse quadro vem a ser os cientistas avançando na contramão do processo da especialização levada ao extremo. São aqueles que se preocupam em encaixar os dados isolados num todo, num sistema ou, se preferirmos, numa Síntese. À dinâmica centrifuga própria da especialização, pretende-se somar algo de útil ao conhecimento como um todo. Ela precisa ser temperada com sua antípoda, a dinâmica centrípeda em direção à síntese dos resultados das pesquisas. Acontece que quanto maior for o volume de informações saídas dos laboratórios, tanto mais trabalhoso será o esforço de amalgamá-los numa síntese. Cientistas especializados e sintetizadores costumam ser personalidades que pela própria natureza da sua postura intelectual, correm o perigo de serem medíocres tanto como cientistas, quanto como sintetizadores. No plano ideal, porém, cada especialista deveria ser um sintetizador e este um especialista. Trata-se, porém, de uma façanha pouco comum mas não impossível. Quem sobe a esse nível já não é mais um simples conhecedor da sua especialidade, um “Kenner” como diriam os alemães, mas um sábio, um “Weise”.

O especialista que alcançou esse patamar corre o risco  sério de ser desqualificado como tal. Para os pesquisadores especializados, o esforço na  análise aliada à  preocupação pela síntese, exige o recurso a conceitos, a um discurso e, de modo especial, a métodos, que causam estranheza ao especialista. No plano metodológico vale-se da intuição e ou da percepção sensorial, da sabedoria popular para preencher as lacunas e responder as perguntas que os dados objetivos dos laboratórios, das tabelas estatísticas ou dos modelos matemáticos deixaram em branco. Com a singularidade com que constrói a sua concepção integradora, holística do conhecer as realidades concretas, o “sábio” naturalista transforma-se em poeta, em artista, e porque não, em místico. A apreciação da harmonia de uma paisagem, o mistério de uma floresta silenciosa, o épico de uma tempestade, o assustador de um abismo, põe em ebulição as emoções mais profundas da alma num linguajar bem diverso daquele, por ex.,que é próprio de uma descrição taxonômica de plantas e animais. Em todos os sábios cuja cosmovisão que interpretamos até aqui, percebe-se essa peculiaridade independente da sua especialidade como cientista: Erich Wassmann com suas formigas e térmites, Teilhard de Chardin especialista em  paleoantropologia, Balduino Rambo, especialista em taxonomia dos fanerógamos, Ludwig von Bertalanffy biólogo, Francis Coilins  na genética médica e Edward Wilson  com insetos e ecossistemas. Por se valerem de recursos literários que fogem do padrão enxuto, despido ou esquelético ao descrever espécies e gêneros, montar tabelas estatísticas ou descrever processos físicos, não raro são desqualificados por pares  que apostam todas fichas no rigor dos métodos científicos e apresentam os resultados numa linguagem que se aproximam de um código secreto, decifrável somente pelos iniciados. Para eles um Balduino  Rambo depois de coletar amostras de fanerógamos um dia inteiro, descansando na boca do canyon do Fortaleza ou do Taimbezinho, intuindo que “alguém mora nesses abismos e alguém vigia nessas  torres de observação”, não passa de um romântico alienado. Para seus críticos a ciência que faz não oferece  a credibilidade  dos dados objetivos comprovados, “preto no branco”, pelos métodos e as ferramentas da  análise empírica. A obra de Francis Collins, “A Linguagem de Deus” e a de Edward Wilson “A Criação”, são textos que alternam ou mesclam dados científicos com divagações épicas, românticas, líricas e até místicas. A grandiosa concepção da unidade na complexidade do universo, da natureza e do homem de Teilhard de Chardin, segue na mesma linha e sofreu as mesma restrição e desqualificação imputada a seu irmão de ordem religiosa há pouco citado. Em seguida constaremos o mesmo, ressalvadas as peculiaridades pessoais, em Dobzansky.

A Natureza como Síntese - 66

Somados aos conhecimentos acumulados e à moldagem do perfil da personalidade, a Natureza é uma poderosa e inesgotável fonte de inspiração,  musa para escritores, poetas, pintores, músicos, cantores,  místicos e por aí vai. Quem não conhece “O gigante de Pedra” de Gonçalves Dias, as canções inspiradas no mar de Dorival Caimi, a descrição da formação de um enxame de abelhas do poeta romano Virgílio, a Sinfonia Pastoral de Beethhoven, a Odisseia de Homero, e outras  muitas milhares de produções literárias inspiradas nas belezas naturais. Artistas plásticos encontraram nas montanhas, rios, lagos, flores, florestas, árvores, charnecas, campos e prados cobertos de flores as musas particulares de inspiração. O poeta romântico Novalis, por ex.,  fez da “flor azul” o símbolo da utopia. As próprias religiões  incarnaram  seus deuses e espíritos em acidentes geográficos, árvores, florestas e animais. Até o “filosofo da esperança” Ernst Bloch encontrou na descrição das pradarias do Mississipi, com seus horizontes sem fim, as manadas de milhões de búfalos caçados pelos índios num cenário sem fronteiras, sem cercas, sem porteiras e sem cadeados, o conceito-chave da estrutura do seu pensamento: A Liberdade. 

Poderíamos multiplicar ao indefinido exemplos dessa vinculação do homem, sua história, suas crenças, sua manifestações artísticas, seu imaginário, seus estímulos inspirados em  fenômenos naturais. Não é o momento nem o lugar para aprofundarmos essa questão fascinante. Para fechar essas reflexões que poderíamos prolongar até o indefinido, recorremos novamente a Wilson.

Da liberdade de explorar vem a alegria de aprender. Do conhecimento adquirido pela iniciativa pessoal advém o desejo de obter mais conhecimentos. E ao dominar esse novo e belo mundo que  está à espera de cada criança, surge a autoconfiança. Cultivar um naturalista é como cultivar um músico ou um atleta: excelência para os talentosos, prazer por toda a vida para os demais, benefício para toda a humanidade. (Wilson, 2008,  p. 166)

Wilson dedica o capítulo 17, o último do seu livro “A Criação”, para propor a seu destinatário, um pastor fundamentalista, uma “Aliança pela Vida”. Lembra que, como cientista, passou a vida inteira estudando a  “Criação”. Ficou claro pelo que que pode ser deduzido da sua obra até aqui, que para ele a Natureza, a Biosfera representa   “A Criação”. Por esse conceito entende a Natureza como “um fato objetivo”, não um aglomerado, resultado da soma  de milhões de espécies vivas de todos os tamanhos desde as arqueo-bactérias sub-microscópicas  até gigantes como a baleia ou uma araucária várias vezes secular. O conceito de “Fato objetivo” na compreensão do autor coincide na essência com o “Weldbild – Cosmovisão” de Erich Wassmann, a concepção unitária do Universo de Teilhard de Chardin, “Organismo” ou “Sistema”, de Bertalanffy, “Fisonomia de Balduino Rambo, “Biologos” de Francis Collins. Expressa também o que entendemos quando falamos em “Natureza como Síntese”. Wilson deixa claro que ele observa o “fato objetivo” que é a Natureza, como ele prefere chamá-la, da perspectiva do “secularismo” fundamentado na ciência. Obviamente a concepção da natureza  do pastor a quem se destinam suas reflexões, interpreta-a do  ponto de vista da religião. As duas aproximações, aparentemente irreconciliáveis, encontram-se nesse território comum. A ciência consegue, de um lado, identificar o primeiro elo da corrente que representa biosfera e do outro o último, isto é, da simplicidade  das arqueo-bactérias até extrema complexidade dos vegetais e animais no topo da corrente. A ciência, por sua vez, conseguiu também decifrar  pelas leis naturais o “como”, o gigantesco sistema, a Biosfera foi arquitetada, terminando por configurá-lo como um “fato objetivo”, em ouras palavras, um ente com personalidade própria, que vai além da simples soma dos elementos que entram na sua gênese, mas uma grande “Síntese”. 

Se da perspectiva da “Ciência secular” foi possível chegar até essa profundeza da compreensão do universo e da natureza, fica esclarecido um dos lados da questão, isto é, aquela que responde ao “como” a natureza é arquitetada e como funciona. O outro lado da questão pede respostas confiáveis para o “donde”, a explicação da causa que explica a origem da “energia!” que deu origem a tudo e para o “onde” que dá sentido a tudo. Evidentemente esse tipo de interrogações não é posta, nem interessa ao cientista que aposta todas as fichas nos resultados dos seus métodos. Outro tanto também incomoda ao intérprete literal do Gênesis. Acontece que a natureza como  Wilson a entende oferece o cenário no qual os dois lados encontram condições para que “as poderosas forças da religião e da ciência possam se unir. E o melhor lugar para começar  é na tarefa de zelar pela vida” (A Criação, p. 185). Em seguida chama a atenção para o fato de que nem a ciência é capaz de  dar a resposta final ao enigma que faz com que “A Criação” se configure numa grande “síntese”, se preferirmos um grande “sistema”. Continuando na reflexão chama a atenção que  aspectos da biologia e da educação apontam o território comum  onde um diálogo e um entendimento entre os dois campos é possível, sem que um deles tenha que abdicar das suas convicções. E continuando identifica as questões inegociáveis entre a ciência e a religião.

Nesse processo não tentei  diluir, de forma alguma, a diferença fundamental entre a ciência e as religiões tradicionais  com respeito à origem da vida. Deus fez a Criação, é que o senhor diz. Essa verdade está claramente expressa nas Sagradas Escrituras. Vinte e cinco séculos de teologia e boa parte da civilização ocidental foram construídos com base nessa convicção. Mas não é assim, digo eu, a vida se fez a si mesma, por meio de mutações aleatórias e da seleção natural das moléculas codificadoras. Por mais radical  que pareça tal explicação, ela tem um imenso volume de provas interconectadas. Talvez ainda se chegue a demonstrar que essa teoria está errada; no entanto, a cada ano isso parece menos provável. (Wilson, 2008,  p. 185-186).

Para encerrar o diálogo imaginado com o pastor fundamentalista propõe não levar em conta as diferenças fundamentais entre os dois, ou se preferirmos, entre a Ciência e a Religião, no diálogo que propõe. Aponta como terreno no qual esse diálogo apresenta perspectivas reais de chegar a um consenso.

Tanto o senhor  como eu somos humanistas no sentido mais amplo: o bem-estar da humanidade está no centro dos nossos pensamentos. Mas a diferença entre o humanismo baseado na religião e o humanismo baseado na ciência se irradia por toda a filosofai, e até pelo sentido que atribuímos a nós como espécie. Essa diferença afeta a maneira como cada um de nós valida a nossa ética, nosso patriotismo, nossa estrutura social, nossa dignidade pessoa.

O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil  como parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas têm um efeito notavelmente pequeno sobre a conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é que somos ambos pessoas éticas, patrióticas e altruístas mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de uma civilização que  surgiu não só da religião como igualmente do Iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós dois serviríamos no mesmo júri. lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos com a mesma intensidade, a santificar vida humana. E, com certeza- compartilhamos o amor à Criação. (Wilson, 2008,  p. 187-188).

Wilson não informa se o convite que ao pastor fundamentalista teve algum retorno. Pelo que parece, o pastor a quem se dirige é um representante, um personagem protótipo à testa de uma denominação cristã fundamentalista. Acontece que tendo ou não relação  com o apelo do cientista, veio à público a “Encíclica  Verde” do papa Francisco. A cada dia que passa o pontífice abre mais uma janela para o grande mundo do qual  a Igreja que pastoreia faz parte significativa. Convida para um diálogo sincero e despido  de artimanhas e subterfúgios, para um diálogo sério e descomprometido com todas denominações cristãs, com  muçulmanos, judeus, budistas, agnósticos, ateus, cientistas crentes ou não, enfim qualquer pessoa interessada num entendimento fraterno entre os homens num terreno de interesse comum. Os convites e apelos  para diálogo são repetidos pelo papa nas mais diversas circunstâncias e pelos meios de comunicação de que dispõe. Não é de se admirar que  fizesse sua também a causa em favor da “salvação da Criação”, assim como a entende o professor Edward Wilson. Valendo-se de uma Encíclica, o documento mais importante disponível, ofereceu ao público, sem distinção de credo, raça e classe social a monumental encíclica “Laudato si”, “Louvado seja”, apelando pela urgência de estancar a degradação da nossa “mãe e pátria”, no entender do irmão seu de ordem Balduino Rambo. Do alto dos seus 86 anos Wilson dedicados a entender “A Criação”, finalmente poderá sentir-se recompensado que  ele um “humanista secular” baseado na ciência e Francisco, representante máximo do “humanismo cristão”, encontram-se em terreno comum na batalha pela salvação da vida na terra.

A Natureza como Síntese - 65

Depois desse desvio sugerido pelos cinco princípios de Wilson retornemos à sua proposta “para salvar a vida na terra”. No capítulo 15 ele sugere como deve ser feita a educação de um “naturalista”. Note-se que emprega o conceito de Naturalista em vez de cientista, biólogo ou qualquer outro do gênero. Por Naturalista entende-se uma pessoa que conhece de alguma forma todos os aspectos de que a Natureza é composta, sua estrutura orgânica, seu funcionamento e sua história evolutiva. Um Naturalista, portanto, é conhecedor generalista da Natureza capaz de concebê-la como um todo, como “um fato objetivo”, como ele a definiu em outra passagem da sua obra, e assim colaborar com proposta e iniciativas munidas do potencial capaz de contribuir  efetivamente para “salvar a vida na terra”. Para ele a formação de um autêntico naturalista começa cedo na infância.

A ascensão à natureza começa na infância, portanto o ideal é que a ciência da biologia seja introduzida logo nos primeiros anos da vida. Toda a criança é uma naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar, explorar novos territórios, buscar tesouros, examinar a geografia, descobrir novos mundos – tudo isso está presente em seu cerne mais íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as crianças foram criadas em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais e plantas silvestres”. (Wilson, 2008,  p. 158).

Wilson resume depois a história do afastamento gradual do homem do seu habitat natural com o começo da agricultura e domesticação de animais há 15000 anos atrás, dando início ao Neolítico. Esse distanciamento vai-se acentuando durante a pré-história, a história antiga, até que no final da Idade Média praticamente todos os ecossistemas habitáveis no planeta, exibiam de alguma forma a presença e a interferência do homem. O processo de  “humanização” porém entra num ritmo cada vez mais acelerado a partir das grandes navegações transoceânicas. Essas tiveram como consequência a presença e a colonização em larga escala na América, na África, na Ásia e na Oceania. O ímpeto desse processo tomou fôlego ainda maior com a Revolução Industrial a partir da segunda metade do século XVIII, para transformar-se em furacão devastador no final do século XIX  durante todo o século XX, e no começo do século XXI.

Mesmo assim, os instintos ancestrais continuam vivos dentro de nós. Eles se expressam na arte, nos mitos e na religião, nos parques e jardins, nos esportes da caça e da pesca, tão estranhos (pensando bem). Os americanos passam mais tempo nos jardins zoológicos do que eventos esportivos profissionais, e ainda mais tempo nas áreas protegidas dos  parques nacionais, cada vez mais abarrotados de visitantes. A recreação nas florestas naturais e reservas naturais – isto é, nas partes que permanecem intactas – gera uma renda substancial, da ordem de 20 bilhões de dólares anuais, ao Produto Interno Bruto do país. A televisão e o cinema do mundo industrializado estão saturados de imagens da Natureza virgem. Um  símbolo de riqueza pessoal é a casa de campo, tipicamente localizada em um ambiente pastoral ou natural. Ela serve como refúgio para quem deseja encontrar paz de espírito e como ponto de retorno a algo que foi perdido, mas não esquecido. Observar  pássaros se tornou um importante hobby e uma próspera indústria. Ser naturalista não é apenas uma atividade, e sim um honroso estado de espírito (Wilson, 2008,  p. 159).

Nessa passagem, Wilson oferece nas linhas, mas principalmente nas entre linhas, uma riqueza de informações e sugestões úteis,  capazes de levar as pessoas a  compreender o que significa para a sua existência a “mãe e pátria” como o Pe. Balduino Rambo se referiu à Natureza.  Começa por ai que que o homem se acha existencialmente  inserido nela e, por isso mesmo, a sua existência e sobrevivência depende dela. Em resumo,  a identidade biológica da espécie humana  é feita da mesma matéria prima da natureza mineral e orgânica; na Natureza encontra os meios para a sua subsistência; na Natureza busca as inspirações para construir o seu universo simbólico. Como já  insistimos mais acima, as conquistas tecnológicas postas em andamento a partir do Neolítico, foram afastando o homem cada vez mais do contato e convívio intimo com o seu entorno natural. No momento histórico em que vivemos hoje grande parte da humanidade passa o dia a dia, não  na sombra das árvores da floresta ou na liberdade dos horizonte sem limites de uma savana, de uma estepe ou de uma pradaria, mas no artificialismo de uma metrópole empestada pelo odor do asfalto,  prisioneiro de engarrafamentos monumentais e acuado por uma rotina diária que desafia a capacidade de resistência das pessoas mais disciplinadas. “Hoje, a maior parte da humanidade reside em um mundo fabricado artificialmente. O  berço, o lar inicial da nossa espécie, foi quase que esquecido por completo” (A Criação, p.159). Mas, embora nesses ambientes se tenha perdido de vista em larga escala o contato com as raízes primigênias, elas não foram de todo esquecidas. Mesmo sufocado pela zoeira da  atmosfera  de uma metrópole moderna, o instinto atávico do pertencimento a esse “mundo perdido mas não esquecido”, lembra o homem das raízes da espécie humana, portanto da suas, e sente-se atraído de volta a   elas, mesmo que por algumas  horas  em alguma relíquia de Natureza original. A memória atávica da qual falamos faz parte  da própria natureza humana. Explicá-la desafia qualquer teoria psicológica, sociológica, evolucionista, antropológica ou religiosa. Tem as suas raízes no mistério que até hoje envolve em grande parte a natureza da espécie. Valendo-se da intuição, da percepção sensorial, do farejar o entorno, ignorando as ferramentas da lógica e da ciência  que garantem credibilidade para a Ciência e a Filosofia, degusta pelo menos por alguns momentos, no máximo por algumas horas, o retorno ao espaço em que os remotos antepassados começaram a fantástica  história do homem feita da simbiose entre ele e seu chão. Munido com essas ferramentas a humanidade sobreviveu durante centenas de milhares, quem sabe milhões de anos  e encontrou a matéria prima para construir a sua historia material e espiritual. Embora,  apesar de a degradação da Natureza ter avançado até um ponto crítico, essa nostalgia essencialmente enraizada na alma dos seres humanos dá a certeza de que é possível bloquear o caminho antes de passar da vigésima quarta hora. E há um remédio eficaz, talvez o mais eficaz, para que essa tragédia não se consuma. Consiste em fazer subir à tona, essa realidade, torna-la consciente e incorpora-la na personalidade como um dos componentes que estimulam as pessoas a lidar com responsabilidade com a Natureza. Wilson chama a atenção de que com isso as pessoas  comuns podem tornar-se naturalistas “que não é apenas uma atividade, e sim um honroso estado de espírito”.(A Criação, p. 159). De outra parte, cientistas que não incarnam esse estado de espirito nem o a levam em conta  nas suas investigações, pouco ou nada contribuem para  desperta-lo como uma ferramenta coletiva nas ações positivas em favor da conservação e preservação do ambiente natural. 

A fase ideal para despertar a consciência pela  inserção existencial na natureza, é a infância como já foi apontado mais acima. Com esse contato precoce com a natureza a criança familiariza-se em etapas com os animais e plantas que encontra nas suas incursões  nos ecossistemas disponíveis. Vai percebendo  as diferenças entre árvores,  arbustos,  ervas e  flores. Da mesma forma toma consciência da multiplicidade de formas dos pássaros, seus cantos, pios e assobios. Aos poucos sua atenção se volta  para as miríades de insetos que se movimentam no interior de uma floresta ou no descampado. Nesse contato espontâneo com os seres vivos, animais e plantas, dispensando regras pedagógicas e professores treinados, onde os pais, irmãos ou outras pessoas fazem o papel de guias e mestres, a criança, usando os cinco sentidos, como que farejando, vai identificando, classificando e organizando o mundo que a cerca como se fosse um brinquedo, um quebra cabeça, um lego. O Pe. Rambo, nascido no meio rural, registrou em seu diário comentando a sua infância: “Fui um menino solitário e meu brinquedo predileto foram as árvores da floresta”. E adulto tornou-se botânico reconhecido nacional e internacionalmente. E nessa relação lúdica com a natureza consolidam-se na criança as bases intelectuais e emocionais indispensáveis para a formação formal que a preparará  não apenas para ser um cientista, como para qualquer outra área, inclusive o exercício de uma profissão liberal ou o cultivo da arte. Wilson observa.

As habilidades cognitivas do naturalista se expressam de muitas formas, inclusive nas atividades práticas das sociedades industrializadas, Como observa Gardner, a criança que é capaz de discriminar prontamente entre plantas, aves ou dinossauros está usando a mesma habilidade (ou inteligência) que emprega ao classificar diferentes tênis,  carros, aparelhos de som ou bolinhas de gude. E ainda. É possível que o talento para reconhecer padrões recorrentes  que identificamos nos artistas, poetas, cientistas sociais seja construído sobre as habilidades fundamentais de percepção que encontramos na inteligência do naturalista. 

A mente da criança se abre muito cedo para a Natureza viva. Se for estimulada, ela  se desdobra em estágios que vão fortalecer seus laços com as formas de vida não humanas. O cérebro é programado para aquilo que psicólogos chamam de “aprendizado preparado”: Nós nos lembramos com facilidade e prazer de algumas experiências. Em contraste, somos contra-preparados para evitar  aprender  outras experiências , ou então  a aprendê-las e depois evitá-las. Por ex., flores e borboletas, sim; aranhas e cobras, não. (Wilson, 2008,  p. 160 -161).

 Baseado na própria experiência  de como ele  foi introduzido no instigante mudo da natureza começou muito cedo como criança. Depois como jovem estudante na universidade teve a sorte de encontrar entre seus mestres os guias certos para consolidar nele a paixão pela natureza, sua micro e macro fauna e aprender  a lidar com esse mundo complexo com as ferramentas adequadas. Nesse aprendizado a criança e o jovem devem ser apenas guiados e acompanhados, não empurrados e ou foçados. É importante que se permita o livre embrenhar-se nas surpresas que pode oferecer um nicho escondido no ângulo de um muro do quintal, um singelo arbusto na beira da estrada, uma tábua velha abandonada num canto, um tronco  de árvore em decomposição. Os guias e ou os professores orientam e ensinam a lidar com as teorias e as práticas para dar forma e consistência aos dados observados ou coletados em campo. Outra recomendação importante é que se  tome em consideração e se respeite o ritmo de cada aluno. A formação do naturalista não admite cercas e  cadeados. Tem como pressuposto o livre farejar no seu entorno e a absorção pelos cinco sentidos, por assim dizer por osmose,  tudo que encontra nas trilhas percorridas num parque ou as emoções vividas na sombra e na quietude de uma floresta. As experiências  e o aprendizado nesse modelo terão repercussões positivas, não só nos futuros cientistas formais, como nos de qualquer profissional na especialidade que for. O aprendizado na “Escola da Natureza” ensina  que ela se compõe de uma complicada complexidade responsável pela sua estrutura, da precisão com que os elementos mais insignificantes contribuem para que um ecossistema de qualquer tamanho resulte numa obra prima de harmonia, beleza e  arte. Ninguém de sã razão ousaria por em dúvida o  valor do aprendizado como instrumento pedagógico de inegável importância para a formação técnica, e,  principalmente, da personalidade, tornando-a apta para qualquer atividade  em qualquer  área do conhecimento também fora do âmbito formal das Ciências Naturais.

A Natureza como Síntese - 64

Quarto princípio, No entendimento de Wilson, ensina que até o final do primeiro ano do curso superior os estudantes deveriam ter buscado conhecimento nos mais diversos campos do saber e assimilado as ferramentas teóricas e metodológicas, para seguir em frente em alguma especialidade. Ele mesmo resumiu esse modo de acumular lastro para uma futura especialização ou profissão em sua obra “A Criação”.

Ao chegar ao segundo ano  da universidade, todos os alunos já deveriam  ter começado a pensar estrategicamente sobre a própria educação. O melhor caminho a seguir tem a forma de um T. O traço vertical representa o mergulho em alguma especialidade; a barra horizontal a amplitude da experiência adquirida com uma educação liberal. A especialização serve  como porta de entrada para alguma profissão, ou como preparatório para a pós-graduação. As artes liberais  dizem mais respeito à flexibilidade e à maturidade do intelecto. É claro que essa combinação já é a visada pela maioria das universidades e dos institutos de ensino superior de quatro anos. No segundo ano os alunos devem escolher uma disciplina principal (“major” ou “concentração”), tal como inglês, biologia ou economia e, também fazer vários cursos optativos, que contemplam todo panorama intelectual. Mas a maioria dos estudantes  tem que ser  convencida que essa é melhor estratégia para eles. (Wilson, 2008,  p. 256)

Depois de definir o quando, o como e o quanto de conhecimentos os estudantes de um curso de graduação deveriam apropriar-se, Wilson  dá o exemplo da Biologia, sua área de especialista. O aluno que optar por essa especialidade, aprofunde-se nela com todo o seu potencial “e trate o restante como parte da sua educação geral”, depois vai mergulhando o mais fundo possível numa das muitas sub áreas do vasto campo da biologia, depois de ter pesquisado um pouco de tudo que ela sugere e, finalmente encontrar o seu  “lar” intelectual. Para se decidir a habitar um “lar” determinado o estímulo determinante vem a ser normalmente a intuição, o faro, a inclinação natural, o seguir “a voz do coração”, dedicar-se “com paixão” à sua formação. como aconselhava seus alunos. E esse é o quinto princípio proposto para quem pretende de fato representar alguém na profissão ou na especialidade científica pela qual se decidir. Wilson resumiu assim, de como chegar a esse nível.

Voltando ao tema da paixão como mola propulsora do aprendizado, a dedicação do professor é mais eficiente quando se expressa  por meio da arte de ensinar, e também pelo amor claramente demonstrado pelo assunto em si. Os alunos secundários e universitários buscam sua identidade pessoal, mas anseiam igualmente por uma grande causa, maior do que eles próprios. De alguma forma, essas duas marcas da maturidade serão alcançadas, quer sejam torpes, quer sejam nobres. Nesse trajeto eles precisam de mentores em quem confiar, heróis para emular e realizações que sejam duradouras. (Wilson, 2008,  p. 157) 
                                                                                                                                 
Acontece que o autor de “A Criação”, tem como referência de como nas universidades americanas do norte se encara a formação nos cursos de graduação e pós-graduação. Esse modelo tem a sua origem no casamento bem sucedido entre a universidade alemã e a inglesa. Na alemã  emprestava-se o  valor maior ao conhecimento e às ferramentas teórico-metodológicas capazes de apropriar-se dele. Por princípio não se visava um conhecimento diretamente aplicável na prática, mas o conhecimento em si, de cunho mais generalista que deveria servir de base, de pano d fundo, sobre o qual os egressos estivessem em condições de prosperar tanto numa área profissional técnica, quanto na pesquisa científica, quanto nas humanidades, nas letras e artes ou nas ciências do espírito. O modelo de universidade inglesa, sem negligenciar uma sólida formação para um futuro profissional propriamente dito, parecido ao das universidade alemã, insistia em somar-lhe o elemento formação do cidadão que, além de conhecimentos formais consistentes o transformava em cidadão culto e preparado para começar com sucesso  qualquer caminhada profissional. O resultado vem a ser um “gentelman”, um “vir bonus peritus dicendi” como ensinam os velhos romanos, isto é, um cidadão educado, com conhecimentos amplos e capaz de transmiti-los com maestria. Aliás, num intervalo enquanto punha no papel essas reflexões, li uma entrevista ao Globo  de Robert Cowen, professor emérito do Instituo de Educação da Universidade de Londres,  e  divulgada nas redes sociais. Tendo como fundo a avaliação crítica dos MBAs. Chama a atenção  para o fato de  que a formação com essa ferramenta chega a ser perigosa; de que os dados mostram que as pessoas não só trocam de emprego várias vezes na vida como também de carreira; de que pouco importa o que os governos estão fazendo pois, o futuro será moldado pelos fenômenos da internacionalização e da inovação; de que “as fundações, as empresas, os institutos, todos terão que achar um jeito de se adaptar a essa realidade”; de que as pessoas mais bem preparadas para se movimentar nesse panorama sabem muito bem qual o perfil de profissional que procuram, e vão achar uma forma de treiná-lo na própria empresa se for preciso. O diploma de uma boa universidade por ex.,  não importa em que, se em engenharia, economia, história ou sociologia, vale mais do que o título formal impresso nele. Reforçando o que afirmou o entrevistado chamou a atenção ao paradoxo dessa visão, constatado nas 15 maiores empresas da Inglaterra. Nelas  surpreende o número de formados em História, quando as carreiras mais procuradas são administração ou direito. Outro exemplo é o modelo americano no qual é rotineiro que a mesma pessoa apresente diplomas de graduação, mestrado e doutorado em áreas diferentes, comum nos Estados Unidos,  “o que permite uma formação mais ampla”. No Japão o nível da universidade é mais importante do que o diploma que alguém exibe. A lógica é retilínea: “Se você foi inteligente o suficiente para entrar numa instituição concorrida conseguirá emprego, mesmo que em outra área”. O professor Cowen pergunta e responde ao aparente paradoxo: “Porque há tantos historiadores entre os executivos das empresas mais importantes na Inglaterra? Porque as pessoas no mercado têm que absorver um volume imenso de dados e serem hábeis em fazer julgamentos importantes  diante de informações incompletas. É exatamente o desafio que um historiador enfrenta. Você não precisa de um MBA para isso, apesar de os MBA terem virado um modismo”. (...) “Não acho uma boa ideia deixar as decisões mais importante nas mãos de técnicos”. (...) “No Brasil, um país  com tantas questões  sociais importantes, certamente a ultima coisa que vocês precisam é de um bando de tecnocratas pensando em como organizar o país”.

Quem nos últimos 60 ou 70 anos esteve envolvido como a evolução da universidade brasileira, pública ou privada, certamente percebeu que a formação com bases mais amplas no começo, foi cedendo lugar a uma orientação acadêmica e curricular, voltada para objetivos técnicos e utilitarista precoces. Eu pessoalmente não só acompanhei como me envolvi ativamente nessa trajetória, durante 30 anos numa  universidade pública e 59 anos numa particular. Até a primeira reforma do ensino superior em 1961 a assim apelidada “alma mater” dessas instituições tinha como centro polarizador a faculdade de “ Filosofia, Ciências e Letras” que se encarregava de oferecer as bases de uma formação  de  amplos conhecimentos básicos de caráter generalista. Áreas  de conhecimento como por ex.,  a História e a Geografia, hoje  quilômetros de distância uma da outra ofereciam um currículo comum integrado ao ponto de conferirem um diploma único de bacharel ou licenciado em História e Geografia. A “alma mater” atraía em grande número estudantes das demais faculdades, mesmo das consideradas mais técnicas com a Engenharia Civil, a fim de complementar a formação cursando disciplinas como Filosofia, Antropologia, Psicologia, Química, Física, línguas etc. Num determinado ano, dos 72 matriculados nas disciplinas introdutórias à Filosofia na universidade pública em que atuei, menos de uma dúzia buscava o diploma nessa área. Os demais procediam de um  caleidoscópio de áreas como a economia, a medicina, a engenharia, odontologia, jornalismo e outras mais. O simples convívio entre esses alunos na mesma sala de aula convidava para reflexões interdisciplinares que abriam as janelas para horizontes amplos e enriquecedores para os futuros profissionais. Dos perto de 60 anos que atuei na universidade particular envolvi-me ativamente em todos as suas fases, desde o primeiro curso oficializado em 1953 e em funcionamento desde 1954, passando pela criação da universidade em 1969, até assumir  a coordenação do mestrado de História e o credenciamento do doutorado de História como o primeiro da instituição neste nível. Até o começo da década de 1960 o modelo que tomava forma, em essência era o mesmo das demais universidades em funcionamento no país, ou as faculdades isoladas que se multiplicavam em ritmo acelerado, todas elas hoje evoluídas para centenas de universidades espalhadas perlo país inteiro. De alguma forma todas essas instituições adotavam, até a entrada dos anos 80, uma organização  curricular que favorecia uma base de formação mais ampla e genérica para todos os cursos especializados oferecidos. Na minha os alunos novos que se matriculavam  a cada  semestre letivo, passavam pelo “Básico” com um total de 20 créditos obrigatórios: História do Pensamento, Antropologia (Introdução ao estudo do homem), Lógica e Metodologia, Português e Realidade Brasileira. Inglês e Matemática eram optativas. Uma vez no curso profissional todos os alunos tinham que obrigatoriamente cursar mais duas disciplinas de formação geral: Humanismo e Tecnologia e Ética Profissional. Não há necessidade de provar que as vantagens em termos de colocar a base da formação num fundamento comum, facilitaria em muito o intercâmbio e a compreensão entre os diversos campos do saber e a prática de uma autêntica  interdisciplinariedade. Em outras palavras. Os egressos dos mais diversos cursos levavam para a vida profissional conhecimentos e conceitos, enfim uma linguagem que   facilitava o diálogo entre um engenheiro e um filósofo, um economista e um antropólogo, um linguista e um historiador.

Infelizmente a partir  da década de 1990 esse modelo acadêmico foi  sendo substituído por uma concepção de universidade de perfil empresarial, profissionalizante, tecnocrático posto em prática por meio de um aparato burocrático exacerbado. Para tanto foi preciso mexer nas próprias bases do perfil que até então orientava aa instituições. A formação básica e genérica foi banida da estrutura curricular com o argumento de que não se podia perder tempo impondo disciplinas “sem utilidade”, atrasando  a formação profissional. Disciplinas como “Humanismo e Tecnologia” e “Ética Profissional” foram departamentalizadas e com isso sua existência entregue ao arbítrio das instâncias burocráticas responsáveis pela execução do projeto acadêmico dos diversos cursos.  Dessa forma o caminho para a formação de técnicos e burocratas bitolados e sem visão suficiente para uma análise crítica  dos problemas econômicos, sociais e políticos que lhes compete resolver, tornaram-se os referenciais da rotina acadêmica. Uma outra consequência que dá a pensar foi a perde de espaço da Filosofia, Ciências Humanas, Letras e Artes nas prioridades acadêmicas em favor de uma hipertrofia beirando a paranoia, de  setores essencialmente voltados para as técnicas  e tecnologias destinadas à administração e gerenciamento da complexidade dos desafios práticos. Nesse contexto o lugar e a importância da pessoa humana não passa do discurso e das declarações  dos responsáveis  pela “missão” que de fato não passa de um acidente que pouco ou nada conta. Esse clima afetou inclusive os currículos profissionais individuais que expurgaram da sua programação disciplinas que lhes pareciam  dispensáveis. Um exemplo deplorável foi a retirada do currículo do Direito da disciplina do Direito Romano. O que se pode esperar de uma decisão dessas? Sem informações mínimas, em conhecimentos  da natureza, da históriaca e  da competência própria da área, formam-se peritos em manipular leis, rábulas de porta de delegacia, juristas no sentido pleno do temo, nem pensar, aliás parece que nem interessam. Esse fenômeno contaminou inclusive os cursos de formação humanística como a História. As disciplinas oferecidas não tem conexão umas com as outras, dedicam uma preocupação exagerada em reescrever e reinterpretar os acontecimentos históricos à luz de ideologias na moda. Falta-lhes a base dos conhecimentos garantidas pela Filosofia da História, pelo estudo da evolução do Pensamento Humano, por disciplinas complementares como a Geografia, a Antropologia, a Etnografia, a Etnologia,  a Arqueologia. O que se pode esperar de um historiador formado nessas condições? Estudos de casos amarrados artificialmente, para não dizer grotescamente, às teorias da moda do momento. Com essa afirmação não se pretende desqualificar esse tipo de questões quando tratados com a devida objetividade. Mas para um verdadeiro historiador esse perfil é muito pobre. Hoje a universidade, em vez de abrigar um Centro ou um Instituto de pesquisa e inovação tecnológica de ponta, evolui em direção ao formato de um Distrito Industrial no qual principalmente a Filosofia, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes vão sendo condenadas a ocupar o lugar do “primo pobre”.

A Natureza como Síntese - 63

Examinando com um pouco mais de atenção essa recomendação de Wilson, chega-se à conclusão  de que a superação das  barreiras  epistemológicas entre as diversas áreas do conhecimento, aponta o caminho  para uma verdadeira concepção sintética do que  e do como  acontece a Biosfera. Levada nesta perspectiva ações tópicas para salvar um espécie animal ou vegetal com risco de extinção, tem um valor limitado sem potencial para garantir o ecossistema em que vive. O inverso é verdadeiro. Um ecossistema qualquer subiste sem  maior problema quando um dos seus componentes desaparece, por ex., uma espécie de macaco ou um felino, ou uma ave. Essas espécies e as demais, porém, não  sobrevivem  sem que o ecossistema de que precisam seja degradado além de um limite crítico. Pouco valor tem o esforço de salvar o mico-leão-dourado se a mata atlântica, seu habitat, for devastada. Em outras palavras, um projeto para salvar essa espécie necessariamente deve ser executado como parte de uma ação mais abrangente que consiste em salvar a mata atlântica, que lhe garante a subsistência e a sobrevivência a longo prazo. Caso contrário, a salvação da espécie será um esforço inútil. O máximo que pode acontecer é preservar um número limitado de exemplares em ambientes artificiais, recurso que em questão de algumas gerações vai modificando e até destruindo a natureza de uma espécie. Não se põe em dívida o valor e a urgência de ações que tem como finalidade a proteção de muitas espécies à beira da extinção pela caça  e  a pesca predatória que atingem certas espécies mas não destroem o ecossistema. Em resumo importa entender os problemas, no caso, das espécies de animais e plantas, inseridas e dependentes do meio em que surgiram e evoluíram. Da mesma forma todos os demais objetos de estudo como por ex., se alguém pretende entender o comportamento de uma pessoa ou um grupo de pessoas não adianta começar pelo estudo de casos localizados quando eles são apenas o reflexo de condicionamentos que tem sua origem em esfera mais ampla e acima dos indivíduos e das próprias organizações humanas. A explicação última de tudo que acontece a nível individual e coletivo, tem a sua fonte e raiz na Natureza humana. Consequentemente a lógica manda que o estudioso esteja de posse de um conhecimento mínimo do que seja a natureza humana; que organização social, a organização econômica,  organização política,  organização religiosa, a comunicação e as artes; que essas organizações atendem respectivamente a exigências básicas da natureza humana , como o acesso aos bens materiais de subsistência, a natureza social do homem, a natureza política, natureza religiosa, a necessidade de dar vasão e forma à natureza estética e artística. A conclusão é óbvia.  A economia, o direito, a sociologia, as religiões, as artes tem na sua origem na antropologia, entendida como a ciência que estuda o homem tanto na sua dimensão física quanto como uma espécie biológica, quanto na sua dimensão espiritual, como fundamento, raiz e razão de ser das necessidades básicas que se  acabam de mencionar.  Acontece que a natureza humana se realiza nessas duas  dimensões, existencialmente inserida na Biosfera e  como tal sua existência e sobrevivência dependem da bem sucedida relação com o seu meio físico-geográfico. Sendo assim não basta  uma noção superficial e romântica da natureza humana, como o que vem a representar para ele o universo biológico e físico no qual ela se realiza. Em outras palavras, o que vem a ser o palco sobre o qual o homem encontra as condições para desdobrar os potenciais da sua natureza única.  Sem entender minimamente a biosfera e sua estrutura até os mínimos detalhes não basta estar ao par quantas minhocas ou quantos micro-organismos vivem num metro quadrado de solo. É preciso entender como eles atuam no solo, o que um solo significa para todos os animais,  vegetais e o homem que se alimentam dele, e todo esse conjunto de realidades se inter-relacionam para resultar em algo maior do que a mera soma das integrantes, das quais são feitos os organismos e a complexidade dos  ecossistema em que vivem. A condição vem a ser que a qualquer compreensão da Natureza e qualquer iniciativa em favor da sua preservação, pressupõe o lugar e o sentido das partes num ecossistema, seu real potencial de manter manter-se em equilíbrio, o que representa para outros ecossistemas, suas repercussões para fora da natureza propriamente dita sobre a sobrevivência do homem e suas culturas e quais os limites críticos da sua sustentabilidade. 

Uma abordagem assim exige “a unidade de conhecimento” (cf. Citação acima) ou se para ficarmos com o conceito norteador dessas reflexões, essa abordagem pede “a síntese do conhecimento” Esse objetivo pressupõe o recurso a um método com potencial de amalgamar  os conhecimentos parciais vindos dos mais diversas subáreas que entram em questão. O autor não se serve explicitamente do conceito de “Interdisciplinariedade” como método capaz de cumprir essa tarefa. Lendo, porém, com atenção os dois parágrafos acima citados, não resta dúvida de que este é o caminho. Por isso convém aprofundar um pouco mais o que vem a ser esse método como instrumento na construção de  sínteses.

Em primeiro lugar, a síntese do conhecimento não significa  a sua redução a um nível, por ex., o “científico”, como postula o Positivismo. Nem tão pouco realiza-se essa síntese no plano da Filosofia ou da Teologia, ou da História ou de qualquer outro campo específico do saber. Os diversos conhecimentos particulares ou setoriais, são qualitativamente diferentes entre si. Os conhecimentos produzidos pelas Ciências Naturais, pela História, pela Filosofia, pelo Direito ou pela Economia, tem a sua legitimação garantida a partir de fundamentos epistemológicos próprios a cada uma dessas especialidades. Sendo assim, forçar uma síntese  a um único nível, violenta a natureza das coisas e leva a uma  compreensão equivocada da realidade global. Sendo assim, não é possível fazer verdadeira História quando os elementos que a compõem são interpretados pelo viés único do fator econômico ou geográfico. A conclusão lógica, quando levada ao extremo termina no determinismo econômico ou geográfico. A transdisciplinariedade como instrumento de trabalho leva  a essa subordinação, por isso, constitui-se na ferramenta própria à ideologização do conhecimento e ou à uma interpretação política, religiosa ou outa qualquer. Verifica-se, portanto, uma subordinação, no caso dos fatos históricos ao fator econômico, geográfica, religioso  ou outro qualquer. A multidisciplinariedade propõe o estudo de mais áreas  do conhecimento e ou as sub áreas sem se importar do que representam ou significam para o todo da área. Parece que esse fundamento epistemológico vem a ser o grande vilão responsável pela fragmentação do conhecimento verificado tanto nas Ciências Naturais, quanto nas Ciências do Espírito, quanto nas Ciências Humana, nas Letras e nas próprias Artes. É o caminho oposto a uma compreensão orgânica ou sistêmica do todo do qual formalmente fazem parte. Os dois métodos orientam, salvo melhor juízo, predominantemente, a pesquisa e a docência nas universidades que seguem o modelo napoleônico presente em toda a América Latina. Favorece, quem sabe uma profissionalização precoce além de uma especialização que de tanto dissecar perde a noção do todo. A fim de evitar esses inconvenientes, para não chama-los de equívocos, temos como recurso a interdisciplinariedade que oferece  a trilha ser seguida para chegar a uma autêntica síntese. 

Em segundo lugar, feita opção pela interdisciplinariedade é preciso prestar atenção ao fato de que as diferenças qualitativas  de cada objeto de investigação implicam em dois aspectos que precisam ser tomados em consideração. O primeiro, chama a atenção de que não se pode esquecer que cada objeto de investigação, por ex., o clima, a história de um povo, o equilíbrio ambiental, as questões sociológicas, etc., etc. vale-se de instrumentos de aproximação peculiares. Significa que cada objeto segue uma metodologia privativa para abordá-lo e compreendê-lo, sem recorrer a conhecimentos oriundos de outra fonte. Essa relativa autonomia significa, de outra parte, que para chegar, por ex., à Filosofia não se tenha que partir obrigatoriamente da Ciência, ou à Teologia a partir da Filosofia. Dito de outra maneira: o Filósofo não precisa ser um cientista, nem teólogo filósofo, nem o historiador geógrafo ou linguista, o que não significa que não seja de grande utilidade transitar por campos complementares daquele que é o seu. O segundo, chama a atenção para não esquecer  que a “descontinuidade” qualitativa dos objetos  particulares de investigação tem seus limites, quando a questão é a busca da síntese na Biologia, na História, na Filosofia, ou a sínese global do Conhecimento. Alfonso Borrero resumiu a questão nos seguintes termos:

(...) a descontinuidade implique na autonomia das disciplinas particulares, porque cada uma e cada setor de disciplinas se constroem  sobre suas próprias bases. (...) A autonomia relativa, contudo, não impede as relações e interdependências. A Filosofia dá muito a pensar ao cientista e vice-versa. Os conhecimentos se complementam, corrigem e se controlam mutuamente. Dessa maneira se realiza uma urdidura, uma articulação interdisciplinar complexa e dinâmica, no processo da construção do conhecimento (e ou síntese. Inciso do autor) (cf. Borrero, ASCUN, 1992, nº 20, p. 7)

Resulta dessa forma uma relação de interdependência e não de dependência, nem de independência. Não se trata de dependência pois, criaríamos um situação de subordinação. É óbvio que se uma disciplina ou área de conhecimento depender de outra, a condicionante ocupa um lugar hierarquicamente mais acima do que a condicionada. Configura-se uma situação de dependência quando, por ex., os conhecimentos  de matemática são condição para efetuar cálculos de estruturas, os conhecimento de química são indispensáveis para efetuar uma pesquisa do genoma, a astrofísica  pressupõe o conhecimento das física... Dito de outra maneira. Não se fazem cálculos estruturais sem conhecimentos de matemática; as análises do comportamento bioquímico do DNA  sem conhecimentos de bioquímica. A pesquisa de um objeto condicionado só então tem chances de  resultados consistentes quando o pesquisador vem munido com os conhecimentos prévios da área do saber condicionante. Os exemplos citados não deixam dúvida. Isso, porém, não vale para a relação que se estabelece entra a Filosofia e a Ciência, entre a Teologia e a Ciência, entre a História e a Geografia, entre a Ética e a Ecologia ... Não se pressupõem conhecimentos filosóficos para realizar pesquisas científicas e vice-versa. A relação que se estabelece é de interdependência e de complementariedade, não de dependência e ou condicionamento. Dito de outra maneira. A Filosofia tem muito a ganhar se tomar em consideração os resultados das pesquisas científicas. Da mesma forma os dados científicos observados e ou interpretados à luz da Filosofia ou da Ética, só podem ter o significado dos seus resultados enriquecidos. Nos ambientes em que se pratica esse diálogo interdisciplinar como rotina, melhor, como base metodológica, os saberes e conhecimentos setoriais “complementam-se, corrigem-se e controlam-se mutuamente. Resulta daí uma articulação interdisciplinar complexa, dinâmica em todas as fases e níveis da construção do conhecimento (cf.Borrero, ASCUN, 1992, nº 20).

Em resumo é legítimo afirmar que, em se tratando de uma situação de dependência, uma disciplina ou área de conhecimento ocupa a condição de “conditio sine qua non”, já que o condicionado só prospera em função do condicionante. Ou ainda. A dependência e a subordinação definem a natureza da relação.
A situação de interdependência e complementariedade, que também pode ser chamada de independência relativa,  pede mais alguns esclarecimentos. A independência diz respeito tanto ao objeto quanto à base teórico-metodológica com que é tratada. A relatividade dessa independência ou autonomia de resultados, no que diz respeito à sua interpretação, repercute concreta  e praticamente na vida dos indivíduos, na sociedade, no meio ambiente e na formação da cosmovisão.

A independência  da qual nos ocupamos há pouco, não é nem linear nem uniforme. Assume o grau de importância ditado por cada situação concreta, por cada momento histórico e pela natureza das realidades interdependentes. Um exemplo ilustrativo oferece o estudo da História na sua relação mútua com a Geografia. Pela sua própria natureza o homem tem as raízes existencialmente fincadas no seu entorno geográfico. Este garante-lhe  a sobrevivência, o progresso, a prosperidade, fornecendo os alimentos e os abrigos indispensáveis para viver e sobreviver. Oferece também inspiração para criar todo um mundo simbólico, indispensável para dar forma, vida e colorido ao imaginário povoado por seres e personagens os mais inusitados. 

Não é aqui o lugar para aprofundar a análise do exemplo de que nos valemos, isto é, a complementariedade entre a História e a Geografia. A intenção foi mostrar que o fazer História sem tomar em conta o chão, o cenário ou palco físico sobre o qual aconteceu e ainda continua acontecendo, leva a equívocos de interpretação e distorções muito sérias. Eis uma prova de que interpretar  corretamente na sua complexidade, no exemplo citado, um fato histórico, requer conhecimentos complementares. Mais exatamente. É preciso partir de uma base teórico-metodológica interdisciplinar. Não significa que se pretenda explicar um fato histórico pelas peculiaridades geográficas nas quais aconteceu. A compreensão da História como uma ciência epistemológica e metodologicamente de natureza própria, ganha muito na sua forma e riqueza dos significados, quando estudada à luz da Geografia, por sua vez uma ciência com identidade e autonomia epistemológica, metodológica e conceitual própria. Da mesma forma e, continuando como exemplo da História, ela busca ainda  em outras áreas complementares, como  na Etnografia, Etnologia, Antropologia, Arqueologia, Linguística e outras mais, a explicação para os caminhos, desvios e atalhos singulares, verificados nos mais diversos momentos de sua trajetória. Em termos, o que vale para a História aplica-se a toda e qualquer outra área do conhecimento.

A Natureza como Síntese - 62

Formação da consciência ecológica. Na obra, “A Criação – como salvar a vida na terra”, Wilson dedica os capítulos 5º até o13º, para mostrar em detalhes como as categorias zoológicas que integram a Biosfera e uma intrincada complexidade de inter-relações  garantem a harmonia do funcionamento do todo como um “fato objetivo”. Não deixa de alertar que a par  da perfeição na montagem e do funcionamento perfeito e maravilhoso de cada um dos ecossistemas em função do todo, a biosfera não passa de um manto fino e extremamente frágil que envolve o nosso planeta. Qualquer intromissão mais profunda na sua estrutura e funcionamento, põe em risco a integridade do todo. Qualquer pessoa interessada no sua integridade e equilíbrio não pode dispensar um mínimo de conhecimentos sobre questões básicas do que significa a Natureza  para vida vegetal, animal e humana.

Não há necessidade de lembrar de que a humanização da terra  alcançou um patamar de interferência em todos os ecossistemas tal, que obriga a uma reflexão séria e profunda sobre o futuro do planeta e em consequência sobre o futuro da espécie humana. O tema ecologia, uso sustentável dos recursos naturais, aquecimento global, alimentos naturais, etc., etc., são temas sempre presentes. Na batalha em favor da defesa e preservação da natureza entram as motivações mais variadas e mais desencontradas. Os ativistas defendem a causa vão desde aqueles que o fazem por ser um dos tema da vez, passando por aqueles movidos por interesses de promoção pessoal, por razões ideológicas, políticas e outras menos confessáveis. A esses somam-se os muitos  que de fato se empenham pela questões ambientais como uma cruzada para atalhar a marcha da degradação das paisagens naturais que avança num ritmo e numa proporção no mínimo preocupante. Qualquer ação, qualquer programa ou, se quisermos, qualquer cruzada nesse sentido, motivada pela razão que for, pode ser considerada válida. Mas esses engajamentos, interesseiros ou idealistas, não passam  a médio e a logo prazo de esforços erráticos com resultados proporcionalmente pouco satisfatórios. Para que o movimentos comprometidos com a “salvação do planeta” tenham fôlego para contribuir de forma consistente na salvação dessa “mãe e pátria”, na definição de Balduino Rambo, supõem um compromisso existencial para com ela. É fundamental que as pessoas simples, as mais instruídas e os próprios cientistas tenham consciência dessa realidade. Não basta conhecer e agir para enfrentar o desfio, mas a consciência  que as raízes do ser humano se alimentam do chão em vive, nasce e morre.. Por isso, de um lado significa de que ele não é um mero administrador dos bens naturais, dos “frutos da terra”, mas como Homo sapiens” mais uma espécie, a mais evoluída por sinal. Esse fato deveria despertar nas pessoas, de um lado a consciência do pertencimento que termina em amor à natureza, resultando na preocupação e zelo pela sua integridade e do outro, que todos os homens, independentemente de raça, classe ou posses, a geração atual e as futuras,  possam usufruir de tudo que “a mãe e pátria  tem para oferecer. As propostas, os projetos e as ações para salvar o planeta somente então merecem credibilidade quando forem o resultado prático   dessa convicção.  E,  pelo princípio da ética de que o barco da Natureza em os homens navegam é igualmente  de todos, por isso mesmo, todos tem o direito de nele encontrar um lar habitável e não a tal ponto  degradado que todos corram perigo. O dilema resume-se no seguinte: ou o barco da natureza navega tranquilo e seguro rumo ao futuro com seus passageiros, ou naufraga com todos.  Wilson, partindo dessa constatação, descreve todo um caminho a ser percorrido para salvar o barco antes que naufrague. O pressuposto resume-se em despertar pelos meios de comunicação disponíveis, nas crianças já na família e depois na escola, nos adultos,  cientistas, humanistas e filósofos uma paixão até romântica e mística pela Natureza que os abriga. Em resumo. Para obtermos resultados de fato decisivos e definitivos na batalha pela salvação  da  biosfera, é preciso jogar-se na tarefa com todos o potenciais disponíveis nas pessoas, os naturais e os espirituais. Sem engajamento existencial na luta pela saúde e o equilíbrio do nosso planeta, todo o esforço irá resumir-se, no final das contes, numa sequência de ensaios e erros. Em outras palavras. Todo o esforço da ecologia  precisa alimentar-se da consciência de que a Natureza  e o homem inserido nela, são o fruto de uma síntese, um mega sistema, no qual cada peça, por insignificante que pareça, cumpre uma função na manutenção do equilíbrio do todo. Wilson dedicou os últimos quatro últimos capítulos de “A Criação”, para insistir de que não basta ter conhecimento especializado sobre a enorme complexidade da Natureza como sistema e os milhares de  subsistemas que a integram, como cada um deles funciona em função no todo e sua adaptação ao meio geográfico. É preciso algo mais, muito  mais profundo e abrangente. 

O ingrediente básico  para o amor ao estudo é o mesmo do amor romântico, ou do amor aos país, ou por Deus, a paixão por um determinado assunto. O conhecimento acompanhado por emoções agradáveis permanece dentro de nós. Ele vem à tona, e quando é lembrado, desperta outras conexões criando a metáfora – a linha de frente do pensamento criativo. Em contraste, aquele aprendizado que se dá por meio  da memorização rotineira desaparece rapidamente, tornando-se um amontoado confuso de palavras, fatos e historietas. O Santo Graal da educação liberal é a fórmula pela qual a paixão pode se  expandir sistematicamente, tanto para a ciência como para as humanidades – e, portanto, para o melhor da cultura. (Wilson, 2008,  p. 145)

Para definir essa paixão  pelo objeto de estudo que alguém escolhe ou pela causa abraçada, Wilson lembrou a sua própria experiência como aluno de biologia na universidade do Alabama. Ao recordar três dos seus mestres e iniciadores na arte de fazer ciência, termina por traçar o perfil do pesquisador, do especialista que trabalha com paixão e sabe transmiti-la aos  alunos dispostos a pautar sua vida posterior pelos mesmos moldes. O mundo intelectual de sua professora de parasitologia médica, Septima Smith, eram os micróbios, pequenos vermes e outros invertebrados que infestavam a zona rural do Alabma. Fazia da parasitologia um estilo de vida e não apenas uma disciplina a ser ministrada. O segundo mestre que o marcou para o resto da vida chamava-se Allan Archer. Não exercia a docência mas trabalhava como curador do Museu de História Natural do Alabama situado dentro do campus da universidade. Seu laboratório ocupava um recinto dentro do museu. “Ensinou-me a falar a linguagem de verdadeiro pesquisador científico. Não se importava com dinheiro nem fama; importava-se com a biologia e classificação das aranhas”. (A Criação, p. 147). O mestre que mais o marcou foi Ralph Chermock. Sob sua orientação familiarizou-se com a “Síntese Moderna da teoria da evolução. Estimulado por ele, Wilson e seus colegas percorreram todos os recantos do Alabama, coletando anfíbios, répteis, formigas, besouros e outros mais. A vivência e o aprendizado com esse mestre deixou em resumo a seguinte impressão nos alunos. “Mas nossa vivência nessas pesquisas de campo e a alegria que sentíamos com esse treinamento prático penetraram nos nossos ossos e moldaram a nossa alma”. (A criação, p. 148). A compreensão da natureza aprendida com seus mestres na universidade e depois como professor universitário, lecionando entre outras disciplinas Introdução à Biologia para alunos que não iriam seguir o caminho da pesquisa biológica, chegou à conclusão de que esses princípios deveriam constar no currículo do  final do ensino médio, na graduação e pós-graduação. Como conclusão sobre o aprendizado da biologia aconselha cinco princípios que deveriam orientá-lo. 

O primeiro princípio manda começar o tratamento de um assunto “de cima para baixo”, isto é, do geral para o particular. Por ex., ao estudar o ecossistema de uma área geográfica o primeiro passo consiste em traçar um perfil do conjunto, desenhar um mapa descritivo do todo ou a fisionomia da região em questão ou então outro tema qualquer a partir do todo para, depois, descer aos detalhes. Vale a pena reproduzir na versão original dessa premissa para começar o estudo de algum assunto novo.

Comece abordando uma questão ampla, do tipo que já é interessante para os alunos e relevante para a vida deles, e então descasque as camadas causais, tais como compreendidas no momento, aumentando aos poucos os detalhes técnicos e filosoficamente polêmicos, a fim de ensinar e provocar. Explique, por exemplo, o envelhecimento e a morte da melhor maneira possível, segundo nossos conhecimentos atuais da evolução, genética e fisiologia; explore a seguir as consequências para a demografia, as políticas públicas, a filosofia. Por fim tome caminhos laterais, se quiser, abordando as consequências  desse fenômeno para a história, a religião, a ética, as artes criativas. Não ensine de baixo para cima, do tipo “Vamos aprender um pouco disso e também um pouco daquilo e depois combinar esses conhecimentos  para formar  um quadro geral”. Não pinte o quadro em pequenas pinceladas pontilhistas, para alunos que se entendiam facilmente. Em vez disso, mostre o quadro inteiro, o mais depressa possível; mostre qual o motivo de sua importância naquele momento e durante toda  a vida deles. Passe a dissecar esse conjunto e chegue finalmente aos alicerces. (Wilson, 2008,  p. 150)

O segundo e o terceiro princípios pedem que se ultrapasse as fronteiras da área de conhecimento na qual alguém se especializa. Sob o conceito de Biologia, por ex., abrigam-se atualmente dezenas de especialidades que de forma interdisciplinar convergem para a compreensão  da vida e entender as inter-relações entre os seres vivos de todos os níveis de complexidade, como interagem entre si e como funciona a biosfera como um todo e cada um dos subsistemas  em que pode se dividida. Pela sua própria natureza ela transcende as suas próprias fronteiras permeando todos os demais campos do conhecimento. Fornece subsídios indispensáveis para entender o comportamento humano, a organização social, formação das raças humanas e sua expansão pelo diversos ecossistemas do mundo e sua inserção neles. Dessa maneira a Biologia avançou e ultrapassou as fronteiras para  iluminar um vasto campo intermediário ainda pouco explorado que promete surpresas para aqueles que nele se aprofundarem. A condição para obter sucesso nessa exploração resume-se na superação da concepção do que antes se considerava uma divisão epistemológica entre os grandes ramos do aprendizado está emergindo da névoa acadêmica como algo muito diferente, e muito mais interessante: um amplo domínio intermediário de fenômenos, em geral  inexplorados, aberto a uma abordagem cooperativa vinda de ambos os lados daquela antiga divisão. Disciplinas vindas de um lado desse terreno intermediário, -  por ex., a neurociência e a biologia evolutiva – já se conectam com suas vizinhas mais próximas, a psicologia e a antropologia, do outro lado da linha divisória.

Esse domínio intermediário equivale a uma região de avanço intelectual excepcionalmente rápido. Mais ainda, trata de  assuntos nos quais os alunos (e todos nós) estão profundamente interessados: a natureza e  a origem da vida, o significado do sexo, a bases da natureza humana, a evolução da  vida, porque precisamos morrer, a origem da religião e da ética, as causas da reação estética, o papel do meio ambiente na genética humana e na evolução cultural, e outros mais. (Wilson, 2008,  p. 155)

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Diante desse quadro preocupante, Wilson como especialista em entomologia  e estudioso de todas as outras nano formas de vida, chama a atenção para a  importância delas na sustentação da biosfera como um sistema, como uma síntese de extrema complexidade e, ao mesmo tempo, de impressionante fragilidade. Há em primeiro lugar o fato de que a extinção de espécies, tanto animais quanto vegetais, priva irremediavelmente as futuras gerações de preciosos recursos naturais. Com a extinção de cada espécie animal e vegetal desaparece, sem deixar vestígio, mais uma parcela preciosa de informações de como funciona a Natureza, qual a função que lhe cabe no bom funcionamento do todo e até que ponto empobrece e fragiliza a natureza como uma síntese global. Incontáveis fontes de medicamentos, plantas comestíveis, madeiras, fibras estarão irremediavelmente perdidos. Perdida também estará a contribuição que as espécies de plantas extintas poderiam oferecer para  a restauração dos solos, somado à contribuição ao equilíbrio do clima, da umidade, do regime de chuvas  e da retenção e distribuição da água subterrânea. 

Um outro aspecto da questão costuma passar despercebido para os críticos das iniciativas e cruzadas em favor do meio ambiente, e os próprio promotores e ativistas engajados em programas  de defesa da Natureza. Mais acima já tocamos nessa questão. Referimo-nos a nano e microfauna que povoa todos os cantos e recantos onde há um mínimo para viver. Sua importância é crucial para manter os ecossistemas em equilíbrio funcional, para que a síntese não se desfaça. 

As plantas verdes, bem como as legiões de micro-organismos e minúsculos invertebrados, são a matriz que sustenta a nossa existência. E eles o fazem por uma simples razão: por serem tão diversos geneticamente, o que lhes permite dividir seus papéis no ecossistema até um altíssimo grau de resolução. São tão abundantes que pelo menos alguns ocupam praticamente cada metro quadrado da superfície da Terra. Suas funções no ecossistema são redundantes: se uma espécie é eliminada, muitas vezes já há outra capaz de se expandir e tomar o lugar daquela, pelo  menos em parte. As demais espécies, em conjunto, constituídas sobretudo de “bichinhos” e “mato”, governam o mundo  exatamente do jeito como gostaríamos que ele fosse governado, pois, durante a pré-história, a humanidade evoluiu de modo a depender das ações combinadas desses seres e da garantia de estabilidade que a biodiversidade oferece ao mundo. 

A Natureza viva  nada mais é do o conjunto dos organismos em estado natural e o equilíbrio físico e químico que essas espécies geram por intermédio de sua interação. Mas também é nada menos que esse conjunto e esse equilíbrio. O poder da natureza viva consiste em sua sustentabilidade por meio da complexidade. Basta desestabilizá-la. degradando-a para um estado mais simples, como a nossa espécie parece estar decidida a fazer, e o resultado pode ser catastrófico. Os organismo mais afetados provavelmente serão os maiores e mais complexos, inclusive o homem. (Wilson, 2008  p. 41)

Especialista que é em Entomologia, Wilson serve-se dos seus conhecimentos sobre insetos para exemplificar a sua afirmação. Entre todos os seres vivos conhecidos, estudados e catalogados, os insetos são de longe o grupo mais numeroso e diversificado. Por ocasião da publicação do livro “A Criação”, em 2006, constavam 900 mil espécies descritas e classificadas. Os cientistas estimam que o número das já descritas e as que aguardam a classificação deve chegar ao surpreendente número  de  10 milhões ou mais. O volume da biomassa  desse fantástico universo de insetos equivale ao quase inimaginável. Cerca de um trilhão de milhões de insetos se movimentam na biosfera. Estima-se que seu peso equivalha ao de 7 bilhões de seres humanos. Os insetos, os minúsculos copépodos, crustáceos marinhos, os ácaros e os vermes nematoides são responsáveis por quatro quintos da biomassa total do planeta. Wilson pergunta: “Será que alguém acredita que essas pequeninas  criaturas existem apenas para preencher espaço?” (A Criação,, p. 42). Entre os  insetos, as abelhas por ex., são indispensáveis para a reprodução dos gimnospermas, pois, respondem pela polinização. Pelo efeito de seu extermínio por meio de inseticidas, os chineses têm muito a lamentar. Milhões de dólares são necessários para polinizar pomares, trabalho prestado de graça pelas abelhas que de troco ainda fornecem o mel com as muitas qualidade nutritivas e medicinais. De outra parte os insetos dispensam a presença do homem. A recíproca já não e verdadeira. Se a humanidade desaparecesse de uma hora para a outra da face da terra, poucas ou nenhuma espécie de insetos seria afetada, além de algumas  exclusivamente adaptadas para parasitar o homem. Suposta a extinção da espécie humana em menos de meio milênio, os ecossistemas se regenerariam e voltariam a ostentar aa fisionomia de 10000 anos passados. Como já referimos, do acidente nuclear de Chernobil originou-se um laboratório natural significativo dessa capacidade de auto regeneração da Natureza. De  outra parte, porém, se os insetos fossem extintos na sua totalidade, todos os ecossistemas entrariam em colapso. Em resumo. A espécie humana não sobreviveria sem os insetos, mas os insetos sobreviveriam tranquilamente sem a presença do homem. Vale a pena esquematizar o  efeito dominó do colapso progressivo nos ecossistemas naturais com a ausência  dos insetos, elaborado por Wilson. 

A maioria das plantas que dão flores - as angiospermas – privadas do seus insetos polinizadores pára de se reproduzir.

Entre elas a maioria das espécies de plantas  herbáceas decresce até a extinção. Os arbustos e as árvores polinizadas por insetos sobrevivem mais alguns anos, ou, em alguns casos raros, até séculos.
A grande maioria dos pássaros e outros vertebrados terrestres, privados da sua alimentação especializada de folhas, frutos e insetos, segue as plantas em extinção.

Desprovido dos insetos o solo não é revolvido, o que acelera  o declínio das plantas, uma vez que são os insetos – e não as minhocas, como em geral se pensa – os principais encarregados de remexer e renovar o solo.

Populações de fungos e bactérias explodem e  prosseguem no auge durante alguns anos, enquanto metabolizam o material das plantas e animais mortos, que vai se acumulando.
Os tipos de relva polinizados pelo vento e um punhado de espécies de samambaias e coníferas se alastram pela maior parte das áreas deflorestadas e depois conhecem algum declínio, à medida que o solo se deteriora.

A espécie humana sobrevive, mas volta a viver de grãos polinizados pelo  vento e da pesca marinha. Porém, com a fome generalizada durante as primeiras décadas, as populações humanas despencam para uma pequena fração dos níveis anteriores. As guerras pelo controle dos recursos cada vez mais escassos, o sofrimento, o declínio tumultuado para um barbarismo da Idade das Trevas seriam sem precedentes na história humana.

Agarrando-se à sobrevivência em um mundo devastado, e aprisionados em uma verdadeira  Idade das Trevas do ponto de vista ecológico, os sobreviventes iriam rezar implorando a volta das plantas e dos insetos. (Wilson, 2008,  p. 43-44)

Diante desse quadro sombrio, resultante da extinção dos insetos o autor adverte que é preciso avaliar com toda a seriedade o uso de inseticidas. Uma única espécie das centenas de milhares faz uma enorme falta na manutenção do equilíbrio ambiental. Somente em raríssimos casos, a erradicação seria aceitável. Entre eles contam os piolhos parasitas exclusivos do homem, ou os mosquitos  africanos Anopholes gambiae que se alimentam do sangue humano e transmitem  malária do tipo maligno. Apenas uma em 10 mil espécies de insetos merece se combatida por ser prejudicial ao homem. Um dos maiores, senão o maior dos  desafios que os estudiosos enfrentam, é entender exatamente como funciona a biosfera e os ecossistemas que a compõem. Esse esforço implica em definir como esses ecossistemas são estruturados, como funcionam e, principalmente, as causas capazes de desmontá-los. “A Terra é um laboratório no qual a Natureza ou Deus, se o senhor preferir Pastor) colocou diante de nós os resultados de incontáveis experiências. Ela fala conosco, então vamos escutá-la” (A Criação, p. 46). É sintomático como Balduino Rambo, Francis Collins e Edward Wilson, concordam, por assim dizer, nos próprios conceitos. Para o primeiro a Natureza é o livro aberto da Revelação. Basta saber lê-lo para entender a sua mensagem; para Collins o código genético é “Linguagem de que Deus se serve para comunicar-se  com seus interlocutores; para Wilson; a Natureza fala conosco”. Para entendê-la corretamente é preciso de muito conhecimento sobre a enorme complexidade da sua estrutura, sobre a fina calibragem que garante o perfeito funcionamento das partes em função da integridade e harmonia do todo, sobre os riscos que se enfrentam quando de  intervenções predatórias, mal pensadas e ou irresponsáveis. Esse alerta dos três grandes estudiosos e dos demais analisados até aqui e de muitos outros, sem dúvida, aponta para o argumento maior em favor de qualquer iniciativa que tem como objetivo a luta pela preservação da integridade e saúde do nosso Planeta. Como a espécie biológica humana é um rebento da natureza como todas as demais, sua existência e sua razão de ser consiste em servir-se dos bens da Natureza na medida em que todos os homens, individualmente, tenham acesso aos recursos necessários para o seu bem estar material e espiritual. Não há necessidades de recorrer a uma lógica complicada para perceber que estamos diante de um Postulado Ético. O interesse pela integridade dos ecossistemas e seus recursos naturais por razões econômicas, políticas, ideológicas, saudosistas ou qualquer outra, perde a razão de ser no momento em que se ignora  o “Fator Ético”.

Salvo melhor entendimento, está suficientemente claro o que Edward Wilson concluiu com suas pesquisas,  vivências, mais exatamente, com o estudo dos insetos e a observação do funcionamento dos ecossistemas, como ele próprio resumiu ao afirmar de que, “a Natureza é um fato objetivo”. Bertalanffy diria que a Natureza  é um “Sistema” gigantesco e infinitamente complexo. Teilhard de Chardin a descreveu por meio da sua grandiosa concepção do universo, que supõe um começo, um “alfa” que prima pela simplicidade, mas que foi o ponto de partida para uma complexificação auto alimentada em progressão geométrica, até o estado em que o Homo sapiens dotado de inteligência reflexa, entrou em cena e  foi perturbando gradativamente o equilíbrio da biosfera como um todo até um patamar preocupante

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Algumas reflexões.  Analisando com um pouco mais de atenção o que significa a “Natureza como um fato objetivo”, percebe-se que esse conceito, coincide na essência com o de “Sistema” de Ludwig von Bertalanffy e o de “Biologos” de Francis Collins. Por vias de aproximação diferentes os três cientistas chegaram a mesma conclusão  final. Os resultados dos modelos matemáticos utilizados por  Bertalanffy, as descobertas genéticas e o mapeamento do genoma humano por Collins, a observação dos ecossistemas  naturais e humanizados de Wilson, convergem  para o consenso de que a natureza é um sistema, a natureza é uma unidade biológica, a natureza é um fato objetivo. Esses três pesquisadores representam o contexto em que se pratica ciência de alto nível sem nenhum compromisso com alguma filiação filosófica e ou religiosa. Apesar disso Collins, depois de  passar pela experiência do agnosticismo e do ateísmo, terminou como crente convicto na existência de Deus; Wilson declara-se um “humanista secular”; Bertalanffy não declara suas convicções filosóficas, mas dá a entender que pelo menos admite algo nessa direção ao incluir em sua concepção sistêmica todas as áreas do conhecimento.

Edward Wilson, além de fazer ciência de alto nível alimenta uma preocupação paralela de fundamental importância para as circunstâncias atuais. Quer colaborar com os esforço generalizado que está sendo feito em todos os níveis e das formas mais diversas, para enfrentar o avanço desenfreado da deterioração da natureza. Na sua obra “A Criação – como salvar a vida na terra”, persegue um nítido propósito pedagógico, isto é, oferecer o fundamento científico sólido e coerente para servir de base para as ações concretas a serem postas em prática na cruzada pela preservação do meio ambiente. 

Mais.  Acima já apontamos para a intenção expressa do autor de, na forma de um diálogo com um pastor fundamentalista, encontrar um caminho comum entre a Ciência e a Fé para chegar a um consenso sobre o que é a Natureza e, partindo dai, sugerir estratégias da ação fundamentadas e consistentes. Para tanto é preciso ter em vista, em primeiro lugar, que a “Natureza é uma realidade objetiva”, um fato objetivo, o resultado final de uma grande síntese. Parece que essa dimensão da Natureza  ficou suficientemente clara nas considerações feitas até aqui. Entretanto, o “fato objetivo” que esse “ente” que é a Natureza é, é surpreendentemente limitado e frágil. “O Homo sapiens é uma espécie confinada a um nicho extremamente pequeno”. (A Criação, p. 35). Para Wilson esse é o “Primeiro Princípio da Ecologia Humana”. Depois de formulado esse Primeiro Princípio, chama a atenção às duas dimensões que caracterizam a espécie humana: a mente e o corpo. Os voos da mente não são limitados nem pelo tempo nem pelo espaço. No tempo a mente é capaz de retroceder bilhões de anos e imaginar como foi o começo do universo, como a energia original  deu origem  a tudo que se pode encontrar em nossa volta; como se formaram os continentes, os mares e suas ilhas; como em um dado momento sugiram as primeiras formas de vida; como a evolução   povoou a terra com  incontáveis nano- micro- e macro espécies vivas de plantas e animais; como num determinado momento entra em cena o Homo sapiens; como os nossos antepassados, na condição de caçadores e coletores, passaram dezenas e dezenas de milhares de anos limitados pela fontes de alimentação;  como  penosamente  desenvolveram as primitivas tecnologias de lascar  pedras, instalar abrigos e confeccionar vestes; como se organizaram em sociedades sedentárias ou nômades; como construíam o seu imaginário mágico e/ou religioso; como foi a evolução da história desde os povos agricultores e caçadores do neolítico até hoje.  

Se a mente humana é capaz de percorrer os incontáveis milênios do passado do universo e do nosso planeta terra, também não encontra limites para se movimentar livremente no universo em que estamos confinados. Numa fração de segundos a nossa mente ultrapassa os confins do sistema solar, cruza todas as galáxias e vai em busca dos limites do universo. Com a mesma velocidade percorre continentes, florestas, desertos, mares,  oceanos e regiões polares, ou desce pela cratera de um vulcão até as entranhas da terra. Resumindo, não há barreiras nem temporais nem espaciais capazes de parar a mente humana. Para a mente humana o tempo e o espaço não oferecem barreiras. Quem sabe é por aí que temos um argumento em favor da imortalidade. Se a mente é capaz de ultrapassar as limites impostos pelo tempo e o espaço, ela não necessita necessariamente de um corpo limitado pelo tempo e o espaço. O problema é o corpo. Seu universo de movimentação é inversamente proporcional ao da mente. Sua trajetória de vida consuma-se nos limites de “uma bolha microscópica de restrições físicas”. (A Criação, p. 36).  Wilson resumiu essa realidade nos termos que seguem.

A Terra oferece uma bolha auto regulada que nos sustenta indefinidamente, sem nenhum raciocínio ou artifício da nossa parte. Esse escudo de proteção é a biosfera – a totalidade da vida, criadora  de todo ar, purificadora de todas as águas, administradora de todo o solo; mas ela é, em si  mesma, uma frágil membrana que mal se consegue se agarrar à superfície de planeta. Da sua delicada saúde nós dependemos para cada momento da nossa vida. (...) nascemos aqui como espécie, somos intimamente adaptados às suas condições severas – não a todas, apenas àquelas reinantes em alguns regimes climáticos encontrados em certas partes da área terrestre. (Wilson, 2008,  p. 36)

A permanência temporária do homem, porém, é possível encerrado em bolhas artificiais, que lhe possibilitam viver em ambientes climáticos extremos aqui na terra, como também na lua e futuramente quem sabe em Marte ou outros  planetas do sistema solar. Acontece que para realizar essas façanhas é obrigado a se confinar em cápsulas nas quais estão reproduzidas as condições climáticas da terra. Qualquer falha na manutenção desse artifício, significa a morte certa dos inquilinos. E há um segundo detalhe a ser considerado. Mesmo que tecnicamente seja viável mandar para a Lua  ou, quem sabe para Marte, os equipamentos necessários para montar um acampamento permanente, ou como é o sonho de não poucos cientistas, instalar uma colônia, a própria condição humana impede uma permanência mais longa nessas condições totalmente artificiais. Mesmo física e tecnicamente possível, psicologicamente se tornaria insuportável. Não nos iludamos, a querência do homem é o planeta terra e mesmo este só em parte. A verdade é que a evolução equipou o homem para viver e sobreviver na frágil, porém, espantosamente complexa e finamente calibrada biosfera. Essa realidade  deveria servir de advertência para que não passe se dos limites ao se servir dos recursos que a Natureza  põe à disposição.  

Durante todo o Paleolítico, o período mais longo da história – desde que surgiu o homem até aproximadamente 20000 anos – ele pouco ou nada ameaçou os ecossistemas naturais. Caçando, pescando e coletando raízes, tubérculos e frutas, sua agressão ao meio ambiente não foi maior do que das manadas de búfalos nas pradarias do Mississipi ou as matilhas de lobos do hemisfério norte ou dos leões nas savanas da África. Abrigava-se em cavernas e outros refúgios naturais, protegia-se com peles e folhas ou andava nu nos ambientes de clima mais quente. Antes da descoberta do fogo consumia os alimentos in natura como os animais. Acontece que o homo sapiens não era uma espécie zoológica igual às demais. Em seu cérebro faiscava a centelha da inteligência reflexa. Desde que surgiu em alguma savana da África ou em qualquer outro ambiente da terra, o primeiro  homem, sua relação com  o mundo natural, foi tomando um rumo e assumindo características ausentes nas demais espécies, por mais que seu DNA  se aproxime, por ex., ao do chimpanzé – 97%. A dinâmica ímpar que levou o homem  desde o começo a impor-se  ativamente aos desafios do entorno geográfico, tem o seu motor na inteligência reflexa, essa maravilhosa prerrogativa que faz com que  seja capaz de “saber os porquês do seu saber” ou ter “conhecimento” de si mesmo, enquanto as demais  espécies apenas “sabem” ou “conhecem”. Munido com essa ferramenta   única, os seres  humanos  não se limitavam ao ato instintivo de caçar, coletar ou abrigar-se em refúgios disponíveis em sua volta. Observando a natureza, examinando e comparando  os dados, fatos e fenômenos que encontrava, tirando conclusões sobre o que o rodeava, deu os primeiros passos que lançaram as bases sobre as quais evoluíram as culturas e civilizações.

Desde muito cedo caçadores e coletores começaram a fabricar instrumentos de pedra lascada, osso, chifre e madeira. O mais antigo vem a ser o “machado de punho” lascado de sílex. Tosco, pouco eficiente, servindo a muitos usos mas para nenhum especializado, foi o protótipo do qual evoluíram as ferramentas para cortar, cavar, bater, arremessar, além de muitos outros usos. É legítimo deduzir que paralelamente à  indústria lítica desenvolveu-se, aperfeiçoou-se e diversificou-se a indústria de ferramentas e utensílios a partir da madeira, chifre e osso como matéria prima. Por uma  razão muito simples os vestígios dessa indústria fica evidente bem depois da indústria lítica. Não resistem a milênios de exposição às intempéries e demais agentes de degradação. No andar e evoluir progressivo dessa história, a descoberta do fogo com suas múltiplas utilidades, veio a imprimir um dinamismo fora do comum com um leque de múltiplas novas oportunidades de sobrevivência  e progresso. Não parece exagerado falar numa autêntica revolução operada pela incorporação do fogo no quotidiano do paleolítico. Pouco importa se  descoberta do fogo aconteceu com uma erupção vulcânica, uma queda de raio, batendo um no outro dois fragmentos de sílex, por fricção, etc. O fato é que ele significou uma poderosa revolução no quotidiano do homem paleolítico, abrindo um leque sem fim de novas opções de vida e sobrevivência. O reflexo mais importante fez-se sentir no que para a sobrevivência é o mais fundamental: o alimento. Um série de recursos vegetais que precisam ser cozidos ou assados para se tornarem comestíveis puderam ser aproveitados. Raízes, tubérculos, frutas não aproveitáveis in natura, passaram a integrar a rotina do cardápio diário. Algumas delas tornaram-se a base da alimentação de povos inteiros e determinaram o perfil da sua cultura alimentar. A mandioca e o inhame passaram, por assim dizer, a significar abundância ou carestia em não poucos grupos humanos na América do Sul ou nas ilhas tropicais do Pacífico. A carne assada  melhora em muito  o sabor e torna-se mais digesta do que a  crua. Com o auxílio do fogo abriram-se novas e importantes perspectivas para a expansão territorial do homem.  Inesgotáveis  reservas de caça povoavam as regiões frias da Europa, Ásia e América. A permanência dos caçadores do paleolítico, sobretudo no inverno, tornou-se possível com o fogo aquecendo as cavernas e outros abrigos que lhe serviam de moradia. Pela múltiplas aplicações práticas o fogo não tardou em fazer parte do imaginário mágico e religioso desses povos. O culto ao fogo é um prática que pode ser observada de alguma forma em todas culturas de que se tem notícia na história.

Até a essa altura da história – entre 15000 a 20000 anos – a humanidade vivia e progredia numa quase perfeita harmonia com os ambientes naturais. Sua interferência na natureza não passava dos limites das suas necessidades básicas. Todos os ecossistemas, os grandes, os pequenos, os locais, os regionais e os continentais, ostentavam suas fisionomias originais. Dispersas pelas florestas, estepes e savanas observavam-se colunas de fumaça indicando os locais dos acampamentos, das moradas em abrigos artificiais ou em cavernas dos nossos antepassados remotos. Esse cenário começou a mudar com a “revolução dos alimentos” como a denominou Darcy Ribeiro, a entrada na história da agricultura e da criação de animais, ou a “primeira traição da natureza” conforme Edward Wilson. O motor dessa nova dinâmica que deu início ao Neolítico, tem a sua raiz em duas  descobertas dotadas de um poderoso potencial de libertação do homem da dependência total do meio geográfico e seu progressivo controle sobre os recursos necessários à sua subsistência. Esse lado da medalha justifica a afirmação de Darcy Ribeiro. De outra parte marca o começo da humanização das paisagens avançando em ritmo geométrico até alcançar níveis críticos neste começo do terceiro milênio. Avaliado sob esse prisma,  Edward Wilson está cheio de razão  quando fala em “traição à natureza”. A “revolução dos alimentos”” que pela sua própria natureza implicou numa “traição à natureza” mereceu o comentário.

O poder de destruição do Homo sapiens não tem limites, embora nossa biomassa seja quase invisível de tão minúscula. É matematicamente possível empilhar todas as pessoas da Terra em um único bloco de 4 quilômetros cúbicos e esconder esse bloco em alguma área remota do Grand Canyon, até que desapareça. Contudo, a humanidade é a primeira espécie na história da vida na Terra a se tornar geofísica. O homem, esse ser bípede, cabeça-de-vento,  já alterou a atmosfera e o clima do planeta, desviando-os em muito das normas usuais. Já espalhamos milhares de substâncias químicas tóxicas pelo mundo inteiro, já nos apropriamos de 40% da energia solar disponível para a fotossíntese, já convertemos quase todas as terra facilmente aráveis, já represamos a maioria dos rios, já elevamos o nível dos mares, e agora, em uma virada capaz de atrair a atenção geral como nunca antes se conseguiu, estamos perto de esgotar a água. Um efeito colateral  de toda essa atividade frenética é a  extinção contínua de ecossistemas naturais, junto com as espécies que os compõem. Trata-se do único impacto da atividade humana que é irreversível. (Wilson, 2008,  p. 38-39)

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Somados a esses ecossistemas de grande porte, em condições de salvar da extinção o que ainda subsiste de megafauna  nos termos acima caracterizada, são de suma importância ecossistemas menores como as definidas pelo U.S. Wilderness Act de 1964. Esse documento as define como “livres do homem, onde o próprio homem é um visitante que ali não  permanece”. Essa lei teve como resultado concreto a destinação de 9,1 milhões de acres para “o uso e desfrute do povo americano, de tal maneira que sejam deixados em bom estado para  o futuro uso e desfrute”. O conceito  “áreas livres”, no entender de Wilson, expressa muito bem o que se entende por natureza virgem, por natureza original, por área natural  na qual o homem é apenas um hóspede em busca de um pouco de tranquilidade, sossego, harmonia e, porque não, pela necessidade atávica, de reencontrar suas raízes mais remotas e mais profundas como espécie biológica. Por mais improvável que possa parecer à primeira vista, mesmo em meio aos aglomerados urbanos  mais artificiais, sob os vãos dos viadutos, nos parques, jardins, gramados, e nesgas de terra livres na beira do asfalto, encontramos “áreas livres”. Evidentemente  são incapazes de hospedar seres vivos de maior porte como mamíferos, aves, e florestas. Mas abrigam milhões e bilhões de pequenos seres vivos  e micro organismos  medindo menos do que alguns milímetros. Nessas micro áreas naturais eles vivem e se multiplicam livremente e sem se  importarem com os homens e sua parafernália civilizatória. Acontece que essas micro áreas naturais são de importância fundamental para o equilíbrio e a saúde da natureza. Os dados que Wilson apesenta para comprovar  esse fato, são impressionantes.

Cada metro cúbico de terra e de húmus é um mundo que pulula com centenas de milhares dessas criaturas, representando centenas de espécies. Junto a elas existem micróbios em quantidade e diversidade ainda maiores. Em uma só gama de terra, ou seja, menos de um punhado, vivem cerca de 10 bilhões de bactérias, pertencentes a até 6 mil espécies diferentes. (Wilson, 2008,  p. 26).

A existência desse  micro e nano mundo de seres vivos numa quantidade e diversidade impressionante, induz a reflexões de fundo sobre os potenciais sem limites de que a natureza é dotada. Vale a pena destacar alguns. O primeiro, chama a atenção ao fato de que a macro fauna e flora que chamam a atenção por constituírem a fisionomia visível dos ecossistemas, tanto em número quanto em diversidade, representam uma parcela mínima e pelo visto a menos determinante na composição e no equilíbrio da biosfera. Esse micro e nano universo de seres vivos que não conta para o homem comum por  serem invisíveis é, em última análise, o responsável para que animais e vegetais superiores sejam sequer viáveis. Sem esse mundo invisível a terra não passaria de mais um planeta inóspito e sem encanto. Esse universo invisível que fervilha debaixo de nossos pés mesmo nos lugares mais impossíveis é o chão sobre o qual e do qual as  paisagens vivas vivem e sobrevivem. E numa suposição extrema em que, por uma razão qualquer toda porção da biosfera visível fosse exterminada, a vida continuaria  com a prodigiosa abundância e variedade invisíveis de antes. E se a intuição ou o faro dos biólogos for correto, depois de bilhões de anos, as leis da evolução revestirão a terra com um novo manto de florestas, savanas, campos naturais e pradarias e nelas uma nova macro fauna e porque não uma nova humanidade. Uma amostra dessa incrível capacidade de a natureza recuperar sistemas seriamente danificados temos no desastre nuclear de Chernobil. Seus efeitos sobre vastas áreas em volta do reator acidentado foram catastróficas. O comprometimento da vida animal, vegetal e humana não chegou a ser exatamente dimensionada. Depois e 30 anos a região interditada e entregue a sua própria capacidade de sanar os danos causados pela explosão nuclear, voltou praticamente à normalidade de um ecossistema natural, com a vantagem da interdição do acesso de pessoas. Vale mencionar também as simulações feitas para imaginar a volta da natureza original depois do desaparecimento da humanidade. Com o título “A Terra sem Ninguém”, resultou num interessante e ilustrativo documentário há algum tempo exibido  na televisão.

Vivências de Edward Wilson. Mas  voltemos ao que Edward Wilson nos tem a apresentar no seu memorável  livro “A Criação”. Ele relata suas experiências em contato com a complexidade dos ecossistemas mais variados. Interessou-se de maneira toda especial pela micro área do parque nacional do “Boston Harbor Islands”. Desde meados do século XVII o porto de Boston foi uma das portas de entrada mais movimentadas dos Estados Unidos. A movimentação constante de navios vindos de todas as partes do mundo alterou por completo os ecossistemas das suas 34 ilhas. A flora e a fauna originais foram seriamente  danificados pela poluição provocada pelos navios e suas cargas, somados aos dejetos da cidade de Boston despejados na baia do porto. A tudo isso somaram-se as dezenas de espécies de animais e plantas exóticas, procedentes dos cinco continentes. Até 1990 as ilhas do porto de Boston pouca ou nenhuma atração exerciam sobre os moradores da cidade e arredores. A reviravolta para melhor deu-se naquela década. As águas servidas da metrópole passaram por um moderno e eficiente sistema e tratamento antes de serem liberadas na baía. O resultado foi surpreendente. Em questão poucos anos o Parque Nacional do Porto de Boston voltou a ser uma ecossistema  natural semelhante ao que fora 300 anos antes. Antes ignorado pelos moradores da cidade e pelos turistas, suas três dezenas de ilhas oferecem hoje possibilidades disputadas de lazer. Os moluscos repovoaram o leito da baía. Os peixes de grande porte como a anchova, o robalo, o boto e a foca estão de volta. Próximo às ilhas mais exteriores até a baleia jubarte já foi avistada. Além de oferecer ambientes de lazer e recreio disputados a peso de ouro, as ilhas antes ignoradas, desempenham um papel importante como laboratório de pesquisa e aulas ao ar livre para todos os gostos e níveis de formação. Por essas e outras razões Wilson instalou sua tenda de biólogo naquele ambiente privilegiado. O depoimento que segue mostra sem reticências o tipo de biólogo, e porque não, de autêntico sábio que ele é. 

(...) fiquei atraído pela perspectiva de ter um laboratório natural e uma sala de aula bem à minha porta – num local que também servisse  a 7 milhões de habitantes da região. E o melhor – aqui estava uma oportunidade para desgrudar as crianças da cidade da televisão e do computador e envolve-las em uma aventura educacional na vida real. Havia  o potencial para fazer uma introdução prática à ciência e, o que não é pouco, ajudar a contrabalançar as atividades de alta tecnologia, tão intimidadoras, da universidade de Harvard e do MIT, que ficam nas proximidades. A mensagem é a seguinte: para fazer ciência de primeira não é preciso começar com jalecos brancos e rabiscos no quadro-negro. (Wilson, 2008,  p. 29)

O parque das ilhas do porto de Boston é um magnífico laboratório de como a natureza reage diante de uma prolongada presença constante e profundamente invasora do homem. Depois de três séculos de saída e entrada ininterrupta de navios, procedentes dos lugares mais impossíveis da terra, aconteceu a extinção ou quase extinção de  milhares de espécies nativas, animais e plantas. De outro lado com os navios e suas cargas povoadores exóticos em grande número terminaram por desfigurar os ecossistemas da baía do porto e suas ilhas. Evidentemente os danos causados à vida original e a intromissão de espécies exóticas obrigou a natureza a reconstruir um novo ecossistema no qual participaram e participam ainda as espécies originais que sobreviveram, associadas às exóticas contrabandeadas pelo intenso trânsito marítimo. Devido a essas características, cientistas e estudiosos interessados nesse tipo de fenômeno encontram no parque das ilhas do porto de Boston, um laboratório perfeito. Sem necessidade de simulações ou o recurso a complexos modelos matemáticos, encontram as condições quase ideais para observar o acontecer da dinâmica da natureza submetida à intromissão de agentes naturais e estranhos que terminam por preservar, mas reorientando, as comunidades de seres vivos. Wilson declarou-se, neste caso e em muitos outros, como um defensor entusiasmado do estudo da natureza armando a tenda nas entranhas de uma floresta tropical, numa ilha perdida no meio do oceano, numa savana cujos limites são o horizonte, ou nas intermináveis florestas de coníferas da taiga canadense, do Alasca, da Sibéria ou da Finlândia. O valor e o papel dos laboratórios de pesquisa em universidades e institutos de pesquisa, não podem ser dispensados, pois as tecnologias de investigação, os modelos matemáticos que desenham são fundamentais para o aprofundamento quantitativo do conhecimento científico.  Mas no momento em se trata de avaliar qualitativamente os fenômenos naturais os laboratórios e os modelos matemáticos já não são suficientes. É preciso percorrer florestas, campos naturais, montanhas, ilhas e desertos, captar pelos cinco sentidos as cores, os sons,  as sensações e os odores que emanam da natureza em pessoa, para começar a farejar, a perceber e a intuir o que faz de uma paisagem uma fisionomia, os sons da natureza uma sinfonia, a floresta uma catedral, o carvalho uma personalidade, cada ser vivo uma maravilhosa obra de arte, as flores símbolos ou uma araucária com os galhos erguidos parecendo em atitude de oração. Em outras palavras é preciso imergir de corpo e alma na natureza para intuir o que ela na verdade é e o que significa. Só então as pessoas se percebem como partes e partícipes do mundo que lhes dá vida material e sugere os símbolos do seu imaginário e da sua espiritualidade. Tanto para os cientistas quanto para  as pessoas comuns que vivem esse tipo de experiência a natureza assume as proporções de uma dádiva preciosa que deve estar de alguma forma à disposição do “lazer e recreio” do povo como se lê no texto da lei que criou os parques e reservas naturais dos Estados Unidos. E o passo seguinte nada mais é do que uma consequência lógica do que vimos refletindo até aqui. De alguma forma a natureza é um bem comum, porque somos também rebentos dela. Dela dependemos para a vida e a morte. A natureza é um bem comum e, portanto, sua preservação,  sua recuperação e seu uso e fruto uma dádiva que pertence a todos, independente de cor, raça, ou  condição social. Desta forma o acesso aos benefícios que a natureza  oferece é um direito de todos e por isso mesmo esse usufruir implica numa postura ética na medida em que a exclusão pelo motivo que for, viola os direitos fundamentais da pessoa humana.

Às experiências e vivências com o as ilhas no porto de Boston, Wilson somou muitas outras vividas em ecossistemas naturais e ou humanizados. Passou uma temporada nas “Florida Keys”, uma sequência de ilhas no sul da Flórida, vasculhou as florestas tropicais da Costa Rica e do Brasil e subiu até o pico mais alto  do maciço de Sarawget na Nova Guiné. Estudou as diferenças profundas entre um ecossistema natural da floresta  virgem com o vizinho que cedeu lugar a pastagens depois da derrubada a floresta original em Rondônia. Somado a tudo isso foram objeto do seu interesse e observação as formigas e demais insetos e de modo especial a micro e nano fauna e flora encontráveis até nos recantos mais improváveis e invadidos pelo homem. E como conclusão de todas essas observações e milhares de outros estudos  durante seus mais de 50 anos de pesquisa e docência, resumiu as conclusões num breve parágrafo que vale por  um testamento.

Alguns filósofos pós-modernos, convencidos de que a verdade é relativa e dependente apenas da visão do mundo de cada um, argumentam que não existe uma entidade objetiva tal como a “Natureza”. Para eles, trata-se de uma dicotomia, que surgiu em algumas culturas e não em outras. Estou disposto a levar em conta esse ponto de vista, pelo menos por alguns minutos mas já atravessei tantas fronteiras nítidas entre ecossistemas naturais e humanizados que não posso duvidar da existência objetiva da Natureza. (Wilson, 2008, p. 31)