A Natureza como Síntese - 59

Somados a esses ecossistemas de grande porte, em condições de salvar da extinção o que ainda subsiste de megafauna  nos termos acima caracterizada, são de suma importância ecossistemas menores como as definidas pelo U.S. Wilderness Act de 1964. Esse documento as define como “livres do homem, onde o próprio homem é um visitante que ali não  permanece”. Essa lei teve como resultado concreto a destinação de 9,1 milhões de acres para “o uso e desfrute do povo americano, de tal maneira que sejam deixados em bom estado para  o futuro uso e desfrute”. O conceito  “áreas livres”, no entender de Wilson, expressa muito bem o que se entende por natureza virgem, por natureza original, por área natural  na qual o homem é apenas um hóspede em busca de um pouco de tranquilidade, sossego, harmonia e, porque não, pela necessidade atávica, de reencontrar suas raízes mais remotas e mais profundas como espécie biológica. Por mais improvável que possa parecer à primeira vista, mesmo em meio aos aglomerados urbanos  mais artificiais, sob os vãos dos viadutos, nos parques, jardins, gramados, e nesgas de terra livres na beira do asfalto, encontramos “áreas livres”. Evidentemente  são incapazes de hospedar seres vivos de maior porte como mamíferos, aves, e florestas. Mas abrigam milhões e bilhões de pequenos seres vivos  e micro organismos  medindo menos do que alguns milímetros. Nessas micro áreas naturais eles vivem e se multiplicam livremente e sem se  importarem com os homens e sua parafernália civilizatória. Acontece que essas micro áreas naturais são de importância fundamental para o equilíbrio e a saúde da natureza. Os dados que Wilson apesenta para comprovar  esse fato, são impressionantes.

Cada metro cúbico de terra e de húmus é um mundo que pulula com centenas de milhares dessas criaturas, representando centenas de espécies. Junto a elas existem micróbios em quantidade e diversidade ainda maiores. Em uma só gama de terra, ou seja, menos de um punhado, vivem cerca de 10 bilhões de bactérias, pertencentes a até 6 mil espécies diferentes. (Wilson, 2008,  p. 26).

A existência desse  micro e nano mundo de seres vivos numa quantidade e diversidade impressionante, induz a reflexões de fundo sobre os potenciais sem limites de que a natureza é dotada. Vale a pena destacar alguns. O primeiro, chama a atenção ao fato de que a macro fauna e flora que chamam a atenção por constituírem a fisionomia visível dos ecossistemas, tanto em número quanto em diversidade, representam uma parcela mínima e pelo visto a menos determinante na composição e no equilíbrio da biosfera. Esse micro e nano universo de seres vivos que não conta para o homem comum por  serem invisíveis é, em última análise, o responsável para que animais e vegetais superiores sejam sequer viáveis. Sem esse mundo invisível a terra não passaria de mais um planeta inóspito e sem encanto. Esse universo invisível que fervilha debaixo de nossos pés mesmo nos lugares mais impossíveis é o chão sobre o qual e do qual as  paisagens vivas vivem e sobrevivem. E numa suposição extrema em que, por uma razão qualquer toda porção da biosfera visível fosse exterminada, a vida continuaria  com a prodigiosa abundância e variedade invisíveis de antes. E se a intuição ou o faro dos biólogos for correto, depois de bilhões de anos, as leis da evolução revestirão a terra com um novo manto de florestas, savanas, campos naturais e pradarias e nelas uma nova macro fauna e porque não uma nova humanidade. Uma amostra dessa incrível capacidade de a natureza recuperar sistemas seriamente danificados temos no desastre nuclear de Chernobil. Seus efeitos sobre vastas áreas em volta do reator acidentado foram catastróficas. O comprometimento da vida animal, vegetal e humana não chegou a ser exatamente dimensionada. Depois e 30 anos a região interditada e entregue a sua própria capacidade de sanar os danos causados pela explosão nuclear, voltou praticamente à normalidade de um ecossistema natural, com a vantagem da interdição do acesso de pessoas. Vale mencionar também as simulações feitas para imaginar a volta da natureza original depois do desaparecimento da humanidade. Com o título “A Terra sem Ninguém”, resultou num interessante e ilustrativo documentário há algum tempo exibido  na televisão.

Vivências de Edward Wilson. Mas  voltemos ao que Edward Wilson nos tem a apresentar no seu memorável  livro “A Criação”. Ele relata suas experiências em contato com a complexidade dos ecossistemas mais variados. Interessou-se de maneira toda especial pela micro área do parque nacional do “Boston Harbor Islands”. Desde meados do século XVII o porto de Boston foi uma das portas de entrada mais movimentadas dos Estados Unidos. A movimentação constante de navios vindos de todas as partes do mundo alterou por completo os ecossistemas das suas 34 ilhas. A flora e a fauna originais foram seriamente  danificados pela poluição provocada pelos navios e suas cargas, somados aos dejetos da cidade de Boston despejados na baia do porto. A tudo isso somaram-se as dezenas de espécies de animais e plantas exóticas, procedentes dos cinco continentes. Até 1990 as ilhas do porto de Boston pouca ou nenhuma atração exerciam sobre os moradores da cidade e arredores. A reviravolta para melhor deu-se naquela década. As águas servidas da metrópole passaram por um moderno e eficiente sistema e tratamento antes de serem liberadas na baía. O resultado foi surpreendente. Em questão poucos anos o Parque Nacional do Porto de Boston voltou a ser uma ecossistema  natural semelhante ao que fora 300 anos antes. Antes ignorado pelos moradores da cidade e pelos turistas, suas três dezenas de ilhas oferecem hoje possibilidades disputadas de lazer. Os moluscos repovoaram o leito da baía. Os peixes de grande porte como a anchova, o robalo, o boto e a foca estão de volta. Próximo às ilhas mais exteriores até a baleia jubarte já foi avistada. Além de oferecer ambientes de lazer e recreio disputados a peso de ouro, as ilhas antes ignoradas, desempenham um papel importante como laboratório de pesquisa e aulas ao ar livre para todos os gostos e níveis de formação. Por essas e outras razões Wilson instalou sua tenda de biólogo naquele ambiente privilegiado. O depoimento que segue mostra sem reticências o tipo de biólogo, e porque não, de autêntico sábio que ele é. 

(...) fiquei atraído pela perspectiva de ter um laboratório natural e uma sala de aula bem à minha porta – num local que também servisse  a 7 milhões de habitantes da região. E o melhor – aqui estava uma oportunidade para desgrudar as crianças da cidade da televisão e do computador e envolve-las em uma aventura educacional na vida real. Havia  o potencial para fazer uma introdução prática à ciência e, o que não é pouco, ajudar a contrabalançar as atividades de alta tecnologia, tão intimidadoras, da universidade de Harvard e do MIT, que ficam nas proximidades. A mensagem é a seguinte: para fazer ciência de primeira não é preciso começar com jalecos brancos e rabiscos no quadro-negro. (Wilson, 2008,  p. 29)

O parque das ilhas do porto de Boston é um magnífico laboratório de como a natureza reage diante de uma prolongada presença constante e profundamente invasora do homem. Depois de três séculos de saída e entrada ininterrupta de navios, procedentes dos lugares mais impossíveis da terra, aconteceu a extinção ou quase extinção de  milhares de espécies nativas, animais e plantas. De outro lado com os navios e suas cargas povoadores exóticos em grande número terminaram por desfigurar os ecossistemas da baía do porto e suas ilhas. Evidentemente os danos causados à vida original e a intromissão de espécies exóticas obrigou a natureza a reconstruir um novo ecossistema no qual participaram e participam ainda as espécies originais que sobreviveram, associadas às exóticas contrabandeadas pelo intenso trânsito marítimo. Devido a essas características, cientistas e estudiosos interessados nesse tipo de fenômeno encontram no parque das ilhas do porto de Boston, um laboratório perfeito. Sem necessidade de simulações ou o recurso a complexos modelos matemáticos, encontram as condições quase ideais para observar o acontecer da dinâmica da natureza submetida à intromissão de agentes naturais e estranhos que terminam por preservar, mas reorientando, as comunidades de seres vivos. Wilson declarou-se, neste caso e em muitos outros, como um defensor entusiasmado do estudo da natureza armando a tenda nas entranhas de uma floresta tropical, numa ilha perdida no meio do oceano, numa savana cujos limites são o horizonte, ou nas intermináveis florestas de coníferas da taiga canadense, do Alasca, da Sibéria ou da Finlândia. O valor e o papel dos laboratórios de pesquisa em universidades e institutos de pesquisa, não podem ser dispensados, pois as tecnologias de investigação, os modelos matemáticos que desenham são fundamentais para o aprofundamento quantitativo do conhecimento científico.  Mas no momento em se trata de avaliar qualitativamente os fenômenos naturais os laboratórios e os modelos matemáticos já não são suficientes. É preciso percorrer florestas, campos naturais, montanhas, ilhas e desertos, captar pelos cinco sentidos as cores, os sons,  as sensações e os odores que emanam da natureza em pessoa, para começar a farejar, a perceber e a intuir o que faz de uma paisagem uma fisionomia, os sons da natureza uma sinfonia, a floresta uma catedral, o carvalho uma personalidade, cada ser vivo uma maravilhosa obra de arte, as flores símbolos ou uma araucária com os galhos erguidos parecendo em atitude de oração. Em outras palavras é preciso imergir de corpo e alma na natureza para intuir o que ela na verdade é e o que significa. Só então as pessoas se percebem como partes e partícipes do mundo que lhes dá vida material e sugere os símbolos do seu imaginário e da sua espiritualidade. Tanto para os cientistas quanto para  as pessoas comuns que vivem esse tipo de experiência a natureza assume as proporções de uma dádiva preciosa que deve estar de alguma forma à disposição do “lazer e recreio” do povo como se lê no texto da lei que criou os parques e reservas naturais dos Estados Unidos. E o passo seguinte nada mais é do que uma consequência lógica do que vimos refletindo até aqui. De alguma forma a natureza é um bem comum, porque somos também rebentos dela. Dela dependemos para a vida e a morte. A natureza é um bem comum e, portanto, sua preservação,  sua recuperação e seu uso e fruto uma dádiva que pertence a todos, independente de cor, raça, ou  condição social. Desta forma o acesso aos benefícios que a natureza  oferece é um direito de todos e por isso mesmo esse usufruir implica numa postura ética na medida em que a exclusão pelo motivo que for, viola os direitos fundamentais da pessoa humana.

Às experiências e vivências com o as ilhas no porto de Boston, Wilson somou muitas outras vividas em ecossistemas naturais e ou humanizados. Passou uma temporada nas “Florida Keys”, uma sequência de ilhas no sul da Flórida, vasculhou as florestas tropicais da Costa Rica e do Brasil e subiu até o pico mais alto  do maciço de Sarawget na Nova Guiné. Estudou as diferenças profundas entre um ecossistema natural da floresta  virgem com o vizinho que cedeu lugar a pastagens depois da derrubada a floresta original em Rondônia. Somado a tudo isso foram objeto do seu interesse e observação as formigas e demais insetos e de modo especial a micro e nano fauna e flora encontráveis até nos recantos mais improváveis e invadidos pelo homem. E como conclusão de todas essas observações e milhares de outros estudos  durante seus mais de 50 anos de pesquisa e docência, resumiu as conclusões num breve parágrafo que vale por  um testamento.

Alguns filósofos pós-modernos, convencidos de que a verdade é relativa e dependente apenas da visão do mundo de cada um, argumentam que não existe uma entidade objetiva tal como a “Natureza”. Para eles, trata-se de uma dicotomia, que surgiu em algumas culturas e não em outras. Estou disposto a levar em conta esse ponto de vista, pelo menos por alguns minutos mas já atravessei tantas fronteiras nítidas entre ecossistemas naturais e humanizados que não posso duvidar da existência objetiva da Natureza. (Wilson, 2008, p. 31)

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