Algumas reflexões. Analisando com um pouco mais de atenção o que significa a “Natureza como um fato objetivo”, percebe-se que esse conceito, coincide na essência com o de “Sistema” de Ludwig von Bertalanffy e o de “Biologos” de Francis Collins. Por vias de aproximação diferentes os três cientistas chegaram a mesma conclusão final. Os resultados dos modelos matemáticos utilizados por Bertalanffy, as descobertas genéticas e o mapeamento do genoma humano por Collins, a observação dos ecossistemas naturais e humanizados de Wilson, convergem para o consenso de que a natureza é um sistema, a natureza é uma unidade biológica, a natureza é um fato objetivo. Esses três pesquisadores representam o contexto em que se pratica ciência de alto nível sem nenhum compromisso com alguma filiação filosófica e ou religiosa. Apesar disso Collins, depois de passar pela experiência do agnosticismo e do ateísmo, terminou como crente convicto na existência de Deus; Wilson declara-se um “humanista secular”; Bertalanffy não declara suas convicções filosóficas, mas dá a entender que pelo menos admite algo nessa direção ao incluir em sua concepção sistêmica todas as áreas do conhecimento.
Edward Wilson, além de fazer ciência de alto nível alimenta uma preocupação paralela de fundamental importância para as circunstâncias atuais. Quer colaborar com os esforço generalizado que está sendo feito em todos os níveis e das formas mais diversas, para enfrentar o avanço desenfreado da deterioração da natureza. Na sua obra “A Criação – como salvar a vida na terra”, persegue um nítido propósito pedagógico, isto é, oferecer o fundamento científico sólido e coerente para servir de base para as ações concretas a serem postas em prática na cruzada pela preservação do meio ambiente.
Mais. Acima já apontamos para a intenção expressa do autor de, na forma de um diálogo com um pastor fundamentalista, encontrar um caminho comum entre a Ciência e a Fé para chegar a um consenso sobre o que é a Natureza e, partindo dai, sugerir estratégias da ação fundamentadas e consistentes. Para tanto é preciso ter em vista, em primeiro lugar, que a “Natureza é uma realidade objetiva”, um fato objetivo, o resultado final de uma grande síntese. Parece que essa dimensão da Natureza ficou suficientemente clara nas considerações feitas até aqui. Entretanto, o “fato objetivo” que esse “ente” que é a Natureza é, é surpreendentemente limitado e frágil. “O Homo sapiens é uma espécie confinada a um nicho extremamente pequeno”. (A Criação, p. 35). Para Wilson esse é o “Primeiro Princípio da Ecologia Humana”. Depois de formulado esse Primeiro Princípio, chama a atenção às duas dimensões que caracterizam a espécie humana: a mente e o corpo. Os voos da mente não são limitados nem pelo tempo nem pelo espaço. No tempo a mente é capaz de retroceder bilhões de anos e imaginar como foi o começo do universo, como a energia original deu origem a tudo que se pode encontrar em nossa volta; como se formaram os continentes, os mares e suas ilhas; como em um dado momento sugiram as primeiras formas de vida; como a evolução povoou a terra com incontáveis nano- micro- e macro espécies vivas de plantas e animais; como num determinado momento entra em cena o Homo sapiens; como os nossos antepassados, na condição de caçadores e coletores, passaram dezenas e dezenas de milhares de anos limitados pela fontes de alimentação; como penosamente desenvolveram as primitivas tecnologias de lascar pedras, instalar abrigos e confeccionar vestes; como se organizaram em sociedades sedentárias ou nômades; como construíam o seu imaginário mágico e/ou religioso; como foi a evolução da história desde os povos agricultores e caçadores do neolítico até hoje.
Se a mente humana é capaz de percorrer os incontáveis milênios do passado do universo e do nosso planeta terra, também não encontra limites para se movimentar livremente no universo em que estamos confinados. Numa fração de segundos a nossa mente ultrapassa os confins do sistema solar, cruza todas as galáxias e vai em busca dos limites do universo. Com a mesma velocidade percorre continentes, florestas, desertos, mares, oceanos e regiões polares, ou desce pela cratera de um vulcão até as entranhas da terra. Resumindo, não há barreiras nem temporais nem espaciais capazes de parar a mente humana. Para a mente humana o tempo e o espaço não oferecem barreiras. Quem sabe é por aí que temos um argumento em favor da imortalidade. Se a mente é capaz de ultrapassar as limites impostos pelo tempo e o espaço, ela não necessita necessariamente de um corpo limitado pelo tempo e o espaço. O problema é o corpo. Seu universo de movimentação é inversamente proporcional ao da mente. Sua trajetória de vida consuma-se nos limites de “uma bolha microscópica de restrições físicas”. (A Criação, p. 36). Wilson resumiu essa realidade nos termos que seguem.
A Terra oferece uma bolha auto regulada que nos sustenta indefinidamente, sem nenhum raciocínio ou artifício da nossa parte. Esse escudo de proteção é a biosfera – a totalidade da vida, criadora de todo ar, purificadora de todas as águas, administradora de todo o solo; mas ela é, em si mesma, uma frágil membrana que mal se consegue se agarrar à superfície de planeta. Da sua delicada saúde nós dependemos para cada momento da nossa vida. (...) nascemos aqui como espécie, somos intimamente adaptados às suas condições severas – não a todas, apenas àquelas reinantes em alguns regimes climáticos encontrados em certas partes da área terrestre. (Wilson, 2008, p. 36)
A permanência temporária do homem, porém, é possível encerrado em bolhas artificiais, que lhe possibilitam viver em ambientes climáticos extremos aqui na terra, como também na lua e futuramente quem sabe em Marte ou outros planetas do sistema solar. Acontece que para realizar essas façanhas é obrigado a se confinar em cápsulas nas quais estão reproduzidas as condições climáticas da terra. Qualquer falha na manutenção desse artifício, significa a morte certa dos inquilinos. E há um segundo detalhe a ser considerado. Mesmo que tecnicamente seja viável mandar para a Lua ou, quem sabe para Marte, os equipamentos necessários para montar um acampamento permanente, ou como é o sonho de não poucos cientistas, instalar uma colônia, a própria condição humana impede uma permanência mais longa nessas condições totalmente artificiais. Mesmo física e tecnicamente possível, psicologicamente se tornaria insuportável. Não nos iludamos, a querência do homem é o planeta terra e mesmo este só em parte. A verdade é que a evolução equipou o homem para viver e sobreviver na frágil, porém, espantosamente complexa e finamente calibrada biosfera. Essa realidade deveria servir de advertência para que não passe se dos limites ao se servir dos recursos que a Natureza põe à disposição.
Durante todo o Paleolítico, o período mais longo da história – desde que surgiu o homem até aproximadamente 20000 anos – ele pouco ou nada ameaçou os ecossistemas naturais. Caçando, pescando e coletando raízes, tubérculos e frutas, sua agressão ao meio ambiente não foi maior do que das manadas de búfalos nas pradarias do Mississipi ou as matilhas de lobos do hemisfério norte ou dos leões nas savanas da África. Abrigava-se em cavernas e outros refúgios naturais, protegia-se com peles e folhas ou andava nu nos ambientes de clima mais quente. Antes da descoberta do fogo consumia os alimentos in natura como os animais. Acontece que o homo sapiens não era uma espécie zoológica igual às demais. Em seu cérebro faiscava a centelha da inteligência reflexa. Desde que surgiu em alguma savana da África ou em qualquer outro ambiente da terra, o primeiro homem, sua relação com o mundo natural, foi tomando um rumo e assumindo características ausentes nas demais espécies, por mais que seu DNA se aproxime, por ex., ao do chimpanzé – 97%. A dinâmica ímpar que levou o homem desde o começo a impor-se ativamente aos desafios do entorno geográfico, tem o seu motor na inteligência reflexa, essa maravilhosa prerrogativa que faz com que seja capaz de “saber os porquês do seu saber” ou ter “conhecimento” de si mesmo, enquanto as demais espécies apenas “sabem” ou “conhecem”. Munido com essa ferramenta única, os seres humanos não se limitavam ao ato instintivo de caçar, coletar ou abrigar-se em refúgios disponíveis em sua volta. Observando a natureza, examinando e comparando os dados, fatos e fenômenos que encontrava, tirando conclusões sobre o que o rodeava, deu os primeiros passos que lançaram as bases sobre as quais evoluíram as culturas e civilizações.
Desde muito cedo caçadores e coletores começaram a fabricar instrumentos de pedra lascada, osso, chifre e madeira. O mais antigo vem a ser o “machado de punho” lascado de sílex. Tosco, pouco eficiente, servindo a muitos usos mas para nenhum especializado, foi o protótipo do qual evoluíram as ferramentas para cortar, cavar, bater, arremessar, além de muitos outros usos. É legítimo deduzir que paralelamente à indústria lítica desenvolveu-se, aperfeiçoou-se e diversificou-se a indústria de ferramentas e utensílios a partir da madeira, chifre e osso como matéria prima. Por uma razão muito simples os vestígios dessa indústria fica evidente bem depois da indústria lítica. Não resistem a milênios de exposição às intempéries e demais agentes de degradação. No andar e evoluir progressivo dessa história, a descoberta do fogo com suas múltiplas utilidades, veio a imprimir um dinamismo fora do comum com um leque de múltiplas novas oportunidades de sobrevivência e progresso. Não parece exagerado falar numa autêntica revolução operada pela incorporação do fogo no quotidiano do paleolítico. Pouco importa se descoberta do fogo aconteceu com uma erupção vulcânica, uma queda de raio, batendo um no outro dois fragmentos de sílex, por fricção, etc. O fato é que ele significou uma poderosa revolução no quotidiano do homem paleolítico, abrindo um leque sem fim de novas opções de vida e sobrevivência. O reflexo mais importante fez-se sentir no que para a sobrevivência é o mais fundamental: o alimento. Um série de recursos vegetais que precisam ser cozidos ou assados para se tornarem comestíveis puderam ser aproveitados. Raízes, tubérculos, frutas não aproveitáveis in natura, passaram a integrar a rotina do cardápio diário. Algumas delas tornaram-se a base da alimentação de povos inteiros e determinaram o perfil da sua cultura alimentar. A mandioca e o inhame passaram, por assim dizer, a significar abundância ou carestia em não poucos grupos humanos na América do Sul ou nas ilhas tropicais do Pacífico. A carne assada melhora em muito o sabor e torna-se mais digesta do que a crua. Com o auxílio do fogo abriram-se novas e importantes perspectivas para a expansão territorial do homem. Inesgotáveis reservas de caça povoavam as regiões frias da Europa, Ásia e América. A permanência dos caçadores do paleolítico, sobretudo no inverno, tornou-se possível com o fogo aquecendo as cavernas e outros abrigos que lhe serviam de moradia. Pela múltiplas aplicações práticas o fogo não tardou em fazer parte do imaginário mágico e religioso desses povos. O culto ao fogo é um prática que pode ser observada de alguma forma em todas culturas de que se tem notícia na história.
Até a essa altura da história – entre 15000 a 20000 anos – a humanidade vivia e progredia numa quase perfeita harmonia com os ambientes naturais. Sua interferência na natureza não passava dos limites das suas necessidades básicas. Todos os ecossistemas, os grandes, os pequenos, os locais, os regionais e os continentais, ostentavam suas fisionomias originais. Dispersas pelas florestas, estepes e savanas observavam-se colunas de fumaça indicando os locais dos acampamentos, das moradas em abrigos artificiais ou em cavernas dos nossos antepassados remotos. Esse cenário começou a mudar com a “revolução dos alimentos” como a denominou Darcy Ribeiro, a entrada na história da agricultura e da criação de animais, ou a “primeira traição da natureza” conforme Edward Wilson. O motor dessa nova dinâmica que deu início ao Neolítico, tem a sua raiz em duas descobertas dotadas de um poderoso potencial de libertação do homem da dependência total do meio geográfico e seu progressivo controle sobre os recursos necessários à sua subsistência. Esse lado da medalha justifica a afirmação de Darcy Ribeiro. De outra parte marca o começo da humanização das paisagens avançando em ritmo geométrico até alcançar níveis críticos neste começo do terceiro milênio. Avaliado sob esse prisma, Edward Wilson está cheio de razão quando fala em “traição à natureza”. A “revolução dos alimentos”” que pela sua própria natureza implicou numa “traição à natureza” mereceu o comentário.
O poder de destruição do Homo sapiens não tem limites, embora nossa biomassa seja quase invisível de tão minúscula. É matematicamente possível empilhar todas as pessoas da Terra em um único bloco de 4 quilômetros cúbicos e esconder esse bloco em alguma área remota do Grand Canyon, até que desapareça. Contudo, a humanidade é a primeira espécie na história da vida na Terra a se tornar geofísica. O homem, esse ser bípede, cabeça-de-vento, já alterou a atmosfera e o clima do planeta, desviando-os em muito das normas usuais. Já espalhamos milhares de substâncias químicas tóxicas pelo mundo inteiro, já nos apropriamos de 40% da energia solar disponível para a fotossíntese, já convertemos quase todas as terra facilmente aráveis, já represamos a maioria dos rios, já elevamos o nível dos mares, e agora, em uma virada capaz de atrair a atenção geral como nunca antes se conseguiu, estamos perto de esgotar a água. Um efeito colateral de toda essa atividade frenética é a extinção contínua de ecossistemas naturais, junto com as espécies que os compõem. Trata-se do único impacto da atividade humana que é irreversível. (Wilson, 2008, p. 38-39)