Somados aos conhecimentos acumulados e à moldagem do perfil da personalidade, a Natureza é uma poderosa e inesgotável fonte de inspiração, musa para escritores, poetas, pintores, músicos, cantores, místicos e por aí vai. Quem não conhece “O gigante de Pedra” de Gonçalves Dias, as canções inspiradas no mar de Dorival Caimi, a descrição da formação de um enxame de abelhas do poeta romano Virgílio, a Sinfonia Pastoral de Beethhoven, a Odisseia de Homero, e outras muitas milhares de produções literárias inspiradas nas belezas naturais. Artistas plásticos encontraram nas montanhas, rios, lagos, flores, florestas, árvores, charnecas, campos e prados cobertos de flores as musas particulares de inspiração. O poeta romântico Novalis, por ex., fez da “flor azul” o símbolo da utopia. As próprias religiões incarnaram seus deuses e espíritos em acidentes geográficos, árvores, florestas e animais. Até o “filosofo da esperança” Ernst Bloch encontrou na descrição das pradarias do Mississipi, com seus horizontes sem fim, as manadas de milhões de búfalos caçados pelos índios num cenário sem fronteiras, sem cercas, sem porteiras e sem cadeados, o conceito-chave da estrutura do seu pensamento: A Liberdade.
Poderíamos multiplicar ao indefinido exemplos dessa vinculação do homem, sua história, suas crenças, sua manifestações artísticas, seu imaginário, seus estímulos inspirados em fenômenos naturais. Não é o momento nem o lugar para aprofundarmos essa questão fascinante. Para fechar essas reflexões que poderíamos prolongar até o indefinido, recorremos novamente a Wilson.
Da liberdade de explorar vem a alegria de aprender. Do conhecimento adquirido pela iniciativa pessoal advém o desejo de obter mais conhecimentos. E ao dominar esse novo e belo mundo que está à espera de cada criança, surge a autoconfiança. Cultivar um naturalista é como cultivar um músico ou um atleta: excelência para os talentosos, prazer por toda a vida para os demais, benefício para toda a humanidade. (Wilson, 2008, p. 166)
Wilson dedica o capítulo 17, o último do seu livro “A Criação”, para propor a seu destinatário, um pastor fundamentalista, uma “Aliança pela Vida”. Lembra que, como cientista, passou a vida inteira estudando a “Criação”. Ficou claro pelo que que pode ser deduzido da sua obra até aqui, que para ele a Natureza, a Biosfera representa “A Criação”. Por esse conceito entende a Natureza como “um fato objetivo”, não um aglomerado, resultado da soma de milhões de espécies vivas de todos os tamanhos desde as arqueo-bactérias sub-microscópicas até gigantes como a baleia ou uma araucária várias vezes secular. O conceito de “Fato objetivo” na compreensão do autor coincide na essência com o “Weldbild – Cosmovisão” de Erich Wassmann, a concepção unitária do Universo de Teilhard de Chardin, “Organismo” ou “Sistema”, de Bertalanffy, “Fisonomia de Balduino Rambo, “Biologos” de Francis Collins. Expressa também o que entendemos quando falamos em “Natureza como Síntese”. Wilson deixa claro que ele observa o “fato objetivo” que é a Natureza, como ele prefere chamá-la, da perspectiva do “secularismo” fundamentado na ciência. Obviamente a concepção da natureza do pastor a quem se destinam suas reflexões, interpreta-a do ponto de vista da religião. As duas aproximações, aparentemente irreconciliáveis, encontram-se nesse território comum. A ciência consegue, de um lado, identificar o primeiro elo da corrente que representa biosfera e do outro o último, isto é, da simplicidade das arqueo-bactérias até extrema complexidade dos vegetais e animais no topo da corrente. A ciência, por sua vez, conseguiu também decifrar pelas leis naturais o “como”, o gigantesco sistema, a Biosfera foi arquitetada, terminando por configurá-lo como um “fato objetivo”, em ouras palavras, um ente com personalidade própria, que vai além da simples soma dos elementos que entram na sua gênese, mas uma grande “Síntese”.
Se da perspectiva da “Ciência secular” foi possível chegar até essa profundeza da compreensão do universo e da natureza, fica esclarecido um dos lados da questão, isto é, aquela que responde ao “como” a natureza é arquitetada e como funciona. O outro lado da questão pede respostas confiáveis para o “donde”, a explicação da causa que explica a origem da “energia!” que deu origem a tudo e para o “onde” que dá sentido a tudo. Evidentemente esse tipo de interrogações não é posta, nem interessa ao cientista que aposta todas as fichas nos resultados dos seus métodos. Outro tanto também incomoda ao intérprete literal do Gênesis. Acontece que a natureza como Wilson a entende oferece o cenário no qual os dois lados encontram condições para que “as poderosas forças da religião e da ciência possam se unir. E o melhor lugar para começar é na tarefa de zelar pela vida” (A Criação, p. 185). Em seguida chama a atenção para o fato de que nem a ciência é capaz de dar a resposta final ao enigma que faz com que “A Criação” se configure numa grande “síntese”, se preferirmos um grande “sistema”. Continuando na reflexão chama a atenção que aspectos da biologia e da educação apontam o território comum onde um diálogo e um entendimento entre os dois campos é possível, sem que um deles tenha que abdicar das suas convicções. E continuando identifica as questões inegociáveis entre a ciência e a religião.
Nesse processo não tentei diluir, de forma alguma, a diferença fundamental entre a ciência e as religiões tradicionais com respeito à origem da vida. Deus fez a Criação, é que o senhor diz. Essa verdade está claramente expressa nas Sagradas Escrituras. Vinte e cinco séculos de teologia e boa parte da civilização ocidental foram construídos com base nessa convicção. Mas não é assim, digo eu, a vida se fez a si mesma, por meio de mutações aleatórias e da seleção natural das moléculas codificadoras. Por mais radical que pareça tal explicação, ela tem um imenso volume de provas interconectadas. Talvez ainda se chegue a demonstrar que essa teoria está errada; no entanto, a cada ano isso parece menos provável. (Wilson, 2008, p. 185-186).
Para encerrar o diálogo imaginado com o pastor fundamentalista propõe não levar em conta as diferenças fundamentais entre os dois, ou se preferirmos, entre a Ciência e a Religião, no diálogo que propõe. Aponta como terreno no qual esse diálogo apresenta perspectivas reais de chegar a um consenso.
Tanto o senhor como eu somos humanistas no sentido mais amplo: o bem-estar da humanidade está no centro dos nossos pensamentos. Mas a diferença entre o humanismo baseado na religião e o humanismo baseado na ciência se irradia por toda a filosofai, e até pelo sentido que atribuímos a nós como espécie. Essa diferença afeta a maneira como cada um de nós valida a nossa ética, nosso patriotismo, nossa estrutura social, nossa dignidade pessoa.
O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas têm um efeito notavelmente pequeno sobre a conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é que somos ambos pessoas éticas, patrióticas e altruístas mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de uma civilização que surgiu não só da religião como igualmente do Iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós dois serviríamos no mesmo júri. lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos com a mesma intensidade, a santificar vida humana. E, com certeza- compartilhamos o amor à Criação. (Wilson, 2008, p. 187-188).
Wilson não informa se o convite que ao pastor fundamentalista teve algum retorno. Pelo que parece, o pastor a quem se dirige é um representante, um personagem protótipo à testa de uma denominação cristã fundamentalista. Acontece que tendo ou não relação com o apelo do cientista, veio à público a “Encíclica Verde” do papa Francisco. A cada dia que passa o pontífice abre mais uma janela para o grande mundo do qual a Igreja que pastoreia faz parte significativa. Convida para um diálogo sincero e despido de artimanhas e subterfúgios, para um diálogo sério e descomprometido com todas denominações cristãs, com muçulmanos, judeus, budistas, agnósticos, ateus, cientistas crentes ou não, enfim qualquer pessoa interessada num entendimento fraterno entre os homens num terreno de interesse comum. Os convites e apelos para diálogo são repetidos pelo papa nas mais diversas circunstâncias e pelos meios de comunicação de que dispõe. Não é de se admirar que fizesse sua também a causa em favor da “salvação da Criação”, assim como a entende o professor Edward Wilson. Valendo-se de uma Encíclica, o documento mais importante disponível, ofereceu ao público, sem distinção de credo, raça e classe social a monumental encíclica “Laudato si”, “Louvado seja”, apelando pela urgência de estancar a degradação da nossa “mãe e pátria”, no entender do irmão seu de ordem Balduino Rambo. Do alto dos seus 86 anos Wilson dedicados a entender “A Criação”, finalmente poderá sentir-se recompensado que ele um “humanista secular” baseado na ciência e Francisco, representante máximo do “humanismo cristão”, encontram-se em terreno comum na batalha pela salvação da vida na terra.