A Natureza como Síntese - 65

Depois desse desvio sugerido pelos cinco princípios de Wilson retornemos à sua proposta “para salvar a vida na terra”. No capítulo 15 ele sugere como deve ser feita a educação de um “naturalista”. Note-se que emprega o conceito de Naturalista em vez de cientista, biólogo ou qualquer outro do gênero. Por Naturalista entende-se uma pessoa que conhece de alguma forma todos os aspectos de que a Natureza é composta, sua estrutura orgânica, seu funcionamento e sua história evolutiva. Um Naturalista, portanto, é conhecedor generalista da Natureza capaz de concebê-la como um todo, como “um fato objetivo”, como ele a definiu em outra passagem da sua obra, e assim colaborar com proposta e iniciativas munidas do potencial capaz de contribuir  efetivamente para “salvar a vida na terra”. Para ele a formação de um autêntico naturalista começa cedo na infância.

A ascensão à natureza começa na infância, portanto o ideal é que a ciência da biologia seja introduzida logo nos primeiros anos da vida. Toda a criança é uma naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar, explorar novos territórios, buscar tesouros, examinar a geografia, descobrir novos mundos – tudo isso está presente em seu cerne mais íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as crianças foram criadas em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais e plantas silvestres”. (Wilson, 2008,  p. 158).

Wilson resume depois a história do afastamento gradual do homem do seu habitat natural com o começo da agricultura e domesticação de animais há 15000 anos atrás, dando início ao Neolítico. Esse distanciamento vai-se acentuando durante a pré-história, a história antiga, até que no final da Idade Média praticamente todos os ecossistemas habitáveis no planeta, exibiam de alguma forma a presença e a interferência do homem. O processo de  “humanização” porém entra num ritmo cada vez mais acelerado a partir das grandes navegações transoceânicas. Essas tiveram como consequência a presença e a colonização em larga escala na América, na África, na Ásia e na Oceania. O ímpeto desse processo tomou fôlego ainda maior com a Revolução Industrial a partir da segunda metade do século XVIII, para transformar-se em furacão devastador no final do século XIX  durante todo o século XX, e no começo do século XXI.

Mesmo assim, os instintos ancestrais continuam vivos dentro de nós. Eles se expressam na arte, nos mitos e na religião, nos parques e jardins, nos esportes da caça e da pesca, tão estranhos (pensando bem). Os americanos passam mais tempo nos jardins zoológicos do que eventos esportivos profissionais, e ainda mais tempo nas áreas protegidas dos  parques nacionais, cada vez mais abarrotados de visitantes. A recreação nas florestas naturais e reservas naturais – isto é, nas partes que permanecem intactas – gera uma renda substancial, da ordem de 20 bilhões de dólares anuais, ao Produto Interno Bruto do país. A televisão e o cinema do mundo industrializado estão saturados de imagens da Natureza virgem. Um  símbolo de riqueza pessoal é a casa de campo, tipicamente localizada em um ambiente pastoral ou natural. Ela serve como refúgio para quem deseja encontrar paz de espírito e como ponto de retorno a algo que foi perdido, mas não esquecido. Observar  pássaros se tornou um importante hobby e uma próspera indústria. Ser naturalista não é apenas uma atividade, e sim um honroso estado de espírito (Wilson, 2008,  p. 159).

Nessa passagem, Wilson oferece nas linhas, mas principalmente nas entre linhas, uma riqueza de informações e sugestões úteis,  capazes de levar as pessoas a  compreender o que significa para a sua existência a “mãe e pátria” como o Pe. Balduino Rambo se referiu à Natureza.  Começa por ai que que o homem se acha existencialmente  inserido nela e, por isso mesmo, a sua existência e sobrevivência depende dela. Em resumo,  a identidade biológica da espécie humana  é feita da mesma matéria prima da natureza mineral e orgânica; na Natureza encontra os meios para a sua subsistência; na Natureza busca as inspirações para construir o seu universo simbólico. Como já  insistimos mais acima, as conquistas tecnológicas postas em andamento a partir do Neolítico, foram afastando o homem cada vez mais do contato e convívio intimo com o seu entorno natural. No momento histórico em que vivemos hoje grande parte da humanidade passa o dia a dia, não  na sombra das árvores da floresta ou na liberdade dos horizonte sem limites de uma savana, de uma estepe ou de uma pradaria, mas no artificialismo de uma metrópole empestada pelo odor do asfalto,  prisioneiro de engarrafamentos monumentais e acuado por uma rotina diária que desafia a capacidade de resistência das pessoas mais disciplinadas. “Hoje, a maior parte da humanidade reside em um mundo fabricado artificialmente. O  berço, o lar inicial da nossa espécie, foi quase que esquecido por completo” (A Criação, p.159). Mas, embora nesses ambientes se tenha perdido de vista em larga escala o contato com as raízes primigênias, elas não foram de todo esquecidas. Mesmo sufocado pela zoeira da  atmosfera  de uma metrópole moderna, o instinto atávico do pertencimento a esse “mundo perdido mas não esquecido”, lembra o homem das raízes da espécie humana, portanto da suas, e sente-se atraído de volta a   elas, mesmo que por algumas  horas  em alguma relíquia de Natureza original. A memória atávica da qual falamos faz parte  da própria natureza humana. Explicá-la desafia qualquer teoria psicológica, sociológica, evolucionista, antropológica ou religiosa. Tem as suas raízes no mistério que até hoje envolve em grande parte a natureza da espécie. Valendo-se da intuição, da percepção sensorial, do farejar o entorno, ignorando as ferramentas da lógica e da ciência  que garantem credibilidade para a Ciência e a Filosofia, degusta pelo menos por alguns momentos, no máximo por algumas horas, o retorno ao espaço em que os remotos antepassados começaram a fantástica  história do homem feita da simbiose entre ele e seu chão. Munido com essas ferramentas a humanidade sobreviveu durante centenas de milhares, quem sabe milhões de anos  e encontrou a matéria prima para construir a sua historia material e espiritual. Embora,  apesar de a degradação da Natureza ter avançado até um ponto crítico, essa nostalgia essencialmente enraizada na alma dos seres humanos dá a certeza de que é possível bloquear o caminho antes de passar da vigésima quarta hora. E há um remédio eficaz, talvez o mais eficaz, para que essa tragédia não se consuma. Consiste em fazer subir à tona, essa realidade, torna-la consciente e incorpora-la na personalidade como um dos componentes que estimulam as pessoas a lidar com responsabilidade com a Natureza. Wilson chama a atenção de que com isso as pessoas  comuns podem tornar-se naturalistas “que não é apenas uma atividade, e sim um honroso estado de espírito”.(A Criação, p. 159). De outra parte, cientistas que não incarnam esse estado de espirito nem o a levam em conta  nas suas investigações, pouco ou nada contribuem para  desperta-lo como uma ferramenta coletiva nas ações positivas em favor da conservação e preservação do ambiente natural. 

A fase ideal para despertar a consciência pela  inserção existencial na natureza, é a infância como já foi apontado mais acima. Com esse contato precoce com a natureza a criança familiariza-se em etapas com os animais e plantas que encontra nas suas incursões  nos ecossistemas disponíveis. Vai percebendo  as diferenças entre árvores,  arbustos,  ervas e  flores. Da mesma forma toma consciência da multiplicidade de formas dos pássaros, seus cantos, pios e assobios. Aos poucos sua atenção se volta  para as miríades de insetos que se movimentam no interior de uma floresta ou no descampado. Nesse contato espontâneo com os seres vivos, animais e plantas, dispensando regras pedagógicas e professores treinados, onde os pais, irmãos ou outras pessoas fazem o papel de guias e mestres, a criança, usando os cinco sentidos, como que farejando, vai identificando, classificando e organizando o mundo que a cerca como se fosse um brinquedo, um quebra cabeça, um lego. O Pe. Rambo, nascido no meio rural, registrou em seu diário comentando a sua infância: “Fui um menino solitário e meu brinquedo predileto foram as árvores da floresta”. E adulto tornou-se botânico reconhecido nacional e internacionalmente. E nessa relação lúdica com a natureza consolidam-se na criança as bases intelectuais e emocionais indispensáveis para a formação formal que a preparará  não apenas para ser um cientista, como para qualquer outra área, inclusive o exercício de uma profissão liberal ou o cultivo da arte. Wilson observa.

As habilidades cognitivas do naturalista se expressam de muitas formas, inclusive nas atividades práticas das sociedades industrializadas, Como observa Gardner, a criança que é capaz de discriminar prontamente entre plantas, aves ou dinossauros está usando a mesma habilidade (ou inteligência) que emprega ao classificar diferentes tênis,  carros, aparelhos de som ou bolinhas de gude. E ainda. É possível que o talento para reconhecer padrões recorrentes  que identificamos nos artistas, poetas, cientistas sociais seja construído sobre as habilidades fundamentais de percepção que encontramos na inteligência do naturalista. 

A mente da criança se abre muito cedo para a Natureza viva. Se for estimulada, ela  se desdobra em estágios que vão fortalecer seus laços com as formas de vida não humanas. O cérebro é programado para aquilo que psicólogos chamam de “aprendizado preparado”: Nós nos lembramos com facilidade e prazer de algumas experiências. Em contraste, somos contra-preparados para evitar  aprender  outras experiências , ou então  a aprendê-las e depois evitá-las. Por ex., flores e borboletas, sim; aranhas e cobras, não. (Wilson, 2008,  p. 160 -161).

 Baseado na própria experiência  de como ele  foi introduzido no instigante mudo da natureza começou muito cedo como criança. Depois como jovem estudante na universidade teve a sorte de encontrar entre seus mestres os guias certos para consolidar nele a paixão pela natureza, sua micro e macro fauna e aprender  a lidar com esse mundo complexo com as ferramentas adequadas. Nesse aprendizado a criança e o jovem devem ser apenas guiados e acompanhados, não empurrados e ou foçados. É importante que se permita o livre embrenhar-se nas surpresas que pode oferecer um nicho escondido no ângulo de um muro do quintal, um singelo arbusto na beira da estrada, uma tábua velha abandonada num canto, um tronco  de árvore em decomposição. Os guias e ou os professores orientam e ensinam a lidar com as teorias e as práticas para dar forma e consistência aos dados observados ou coletados em campo. Outra recomendação importante é que se  tome em consideração e se respeite o ritmo de cada aluno. A formação do naturalista não admite cercas e  cadeados. Tem como pressuposto o livre farejar no seu entorno e a absorção pelos cinco sentidos, por assim dizer por osmose,  tudo que encontra nas trilhas percorridas num parque ou as emoções vividas na sombra e na quietude de uma floresta. As experiências  e o aprendizado nesse modelo terão repercussões positivas, não só nos futuros cientistas formais, como nos de qualquer profissional na especialidade que for. O aprendizado na “Escola da Natureza” ensina  que ela se compõe de uma complicada complexidade responsável pela sua estrutura, da precisão com que os elementos mais insignificantes contribuem para que um ecossistema de qualquer tamanho resulte numa obra prima de harmonia, beleza e  arte. Ninguém de sã razão ousaria por em dúvida o  valor do aprendizado como instrumento pedagógico de inegável importância para a formação técnica, e,  principalmente, da personalidade, tornando-a apta para qualquer atividade  em qualquer  área do conhecimento também fora do âmbito formal das Ciências Naturais.

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