A Natureza como Síntese - 64

Quarto princípio, No entendimento de Wilson, ensina que até o final do primeiro ano do curso superior os estudantes deveriam ter buscado conhecimento nos mais diversos campos do saber e assimilado as ferramentas teóricas e metodológicas, para seguir em frente em alguma especialidade. Ele mesmo resumiu esse modo de acumular lastro para uma futura especialização ou profissão em sua obra “A Criação”.

Ao chegar ao segundo ano  da universidade, todos os alunos já deveriam  ter começado a pensar estrategicamente sobre a própria educação. O melhor caminho a seguir tem a forma de um T. O traço vertical representa o mergulho em alguma especialidade; a barra horizontal a amplitude da experiência adquirida com uma educação liberal. A especialização serve  como porta de entrada para alguma profissão, ou como preparatório para a pós-graduação. As artes liberais  dizem mais respeito à flexibilidade e à maturidade do intelecto. É claro que essa combinação já é a visada pela maioria das universidades e dos institutos de ensino superior de quatro anos. No segundo ano os alunos devem escolher uma disciplina principal (“major” ou “concentração”), tal como inglês, biologia ou economia e, também fazer vários cursos optativos, que contemplam todo panorama intelectual. Mas a maioria dos estudantes  tem que ser  convencida que essa é melhor estratégia para eles. (Wilson, 2008,  p. 256)

Depois de definir o quando, o como e o quanto de conhecimentos os estudantes de um curso de graduação deveriam apropriar-se, Wilson  dá o exemplo da Biologia, sua área de especialista. O aluno que optar por essa especialidade, aprofunde-se nela com todo o seu potencial “e trate o restante como parte da sua educação geral”, depois vai mergulhando o mais fundo possível numa das muitas sub áreas do vasto campo da biologia, depois de ter pesquisado um pouco de tudo que ela sugere e, finalmente encontrar o seu  “lar” intelectual. Para se decidir a habitar um “lar” determinado o estímulo determinante vem a ser normalmente a intuição, o faro, a inclinação natural, o seguir “a voz do coração”, dedicar-se “com paixão” à sua formação. como aconselhava seus alunos. E esse é o quinto princípio proposto para quem pretende de fato representar alguém na profissão ou na especialidade científica pela qual se decidir. Wilson resumiu assim, de como chegar a esse nível.

Voltando ao tema da paixão como mola propulsora do aprendizado, a dedicação do professor é mais eficiente quando se expressa  por meio da arte de ensinar, e também pelo amor claramente demonstrado pelo assunto em si. Os alunos secundários e universitários buscam sua identidade pessoal, mas anseiam igualmente por uma grande causa, maior do que eles próprios. De alguma forma, essas duas marcas da maturidade serão alcançadas, quer sejam torpes, quer sejam nobres. Nesse trajeto eles precisam de mentores em quem confiar, heróis para emular e realizações que sejam duradouras. (Wilson, 2008,  p. 157) 
                                                                                                                                 
Acontece que o autor de “A Criação”, tem como referência de como nas universidades americanas do norte se encara a formação nos cursos de graduação e pós-graduação. Esse modelo tem a sua origem no casamento bem sucedido entre a universidade alemã e a inglesa. Na alemã  emprestava-se o  valor maior ao conhecimento e às ferramentas teórico-metodológicas capazes de apropriar-se dele. Por princípio não se visava um conhecimento diretamente aplicável na prática, mas o conhecimento em si, de cunho mais generalista que deveria servir de base, de pano d fundo, sobre o qual os egressos estivessem em condições de prosperar tanto numa área profissional técnica, quanto na pesquisa científica, quanto nas humanidades, nas letras e artes ou nas ciências do espírito. O modelo de universidade inglesa, sem negligenciar uma sólida formação para um futuro profissional propriamente dito, parecido ao das universidade alemã, insistia em somar-lhe o elemento formação do cidadão que, além de conhecimentos formais consistentes o transformava em cidadão culto e preparado para começar com sucesso  qualquer caminhada profissional. O resultado vem a ser um “gentelman”, um “vir bonus peritus dicendi” como ensinam os velhos romanos, isto é, um cidadão educado, com conhecimentos amplos e capaz de transmiti-los com maestria. Aliás, num intervalo enquanto punha no papel essas reflexões, li uma entrevista ao Globo  de Robert Cowen, professor emérito do Instituo de Educação da Universidade de Londres,  e  divulgada nas redes sociais. Tendo como fundo a avaliação crítica dos MBAs. Chama a atenção  para o fato de  que a formação com essa ferramenta chega a ser perigosa; de que os dados mostram que as pessoas não só trocam de emprego várias vezes na vida como também de carreira; de que pouco importa o que os governos estão fazendo pois, o futuro será moldado pelos fenômenos da internacionalização e da inovação; de que “as fundações, as empresas, os institutos, todos terão que achar um jeito de se adaptar a essa realidade”; de que as pessoas mais bem preparadas para se movimentar nesse panorama sabem muito bem qual o perfil de profissional que procuram, e vão achar uma forma de treiná-lo na própria empresa se for preciso. O diploma de uma boa universidade por ex.,  não importa em que, se em engenharia, economia, história ou sociologia, vale mais do que o título formal impresso nele. Reforçando o que afirmou o entrevistado chamou a atenção ao paradoxo dessa visão, constatado nas 15 maiores empresas da Inglaterra. Nelas  surpreende o número de formados em História, quando as carreiras mais procuradas são administração ou direito. Outro exemplo é o modelo americano no qual é rotineiro que a mesma pessoa apresente diplomas de graduação, mestrado e doutorado em áreas diferentes, comum nos Estados Unidos,  “o que permite uma formação mais ampla”. No Japão o nível da universidade é mais importante do que o diploma que alguém exibe. A lógica é retilínea: “Se você foi inteligente o suficiente para entrar numa instituição concorrida conseguirá emprego, mesmo que em outra área”. O professor Cowen pergunta e responde ao aparente paradoxo: “Porque há tantos historiadores entre os executivos das empresas mais importantes na Inglaterra? Porque as pessoas no mercado têm que absorver um volume imenso de dados e serem hábeis em fazer julgamentos importantes  diante de informações incompletas. É exatamente o desafio que um historiador enfrenta. Você não precisa de um MBA para isso, apesar de os MBA terem virado um modismo”. (...) “Não acho uma boa ideia deixar as decisões mais importante nas mãos de técnicos”. (...) “No Brasil, um país  com tantas questões  sociais importantes, certamente a ultima coisa que vocês precisam é de um bando de tecnocratas pensando em como organizar o país”.

Quem nos últimos 60 ou 70 anos esteve envolvido como a evolução da universidade brasileira, pública ou privada, certamente percebeu que a formação com bases mais amplas no começo, foi cedendo lugar a uma orientação acadêmica e curricular, voltada para objetivos técnicos e utilitarista precoces. Eu pessoalmente não só acompanhei como me envolvi ativamente nessa trajetória, durante 30 anos numa  universidade pública e 59 anos numa particular. Até a primeira reforma do ensino superior em 1961 a assim apelidada “alma mater” dessas instituições tinha como centro polarizador a faculdade de “ Filosofia, Ciências e Letras” que se encarregava de oferecer as bases de uma formação  de  amplos conhecimentos básicos de caráter generalista. Áreas  de conhecimento como por ex.,  a História e a Geografia, hoje  quilômetros de distância uma da outra ofereciam um currículo comum integrado ao ponto de conferirem um diploma único de bacharel ou licenciado em História e Geografia. A “alma mater” atraía em grande número estudantes das demais faculdades, mesmo das consideradas mais técnicas com a Engenharia Civil, a fim de complementar a formação cursando disciplinas como Filosofia, Antropologia, Psicologia, Química, Física, línguas etc. Num determinado ano, dos 72 matriculados nas disciplinas introdutórias à Filosofia na universidade pública em que atuei, menos de uma dúzia buscava o diploma nessa área. Os demais procediam de um  caleidoscópio de áreas como a economia, a medicina, a engenharia, odontologia, jornalismo e outras mais. O simples convívio entre esses alunos na mesma sala de aula convidava para reflexões interdisciplinares que abriam as janelas para horizontes amplos e enriquecedores para os futuros profissionais. Dos perto de 60 anos que atuei na universidade particular envolvi-me ativamente em todos as suas fases, desde o primeiro curso oficializado em 1953 e em funcionamento desde 1954, passando pela criação da universidade em 1969, até assumir  a coordenação do mestrado de História e o credenciamento do doutorado de História como o primeiro da instituição neste nível. Até o começo da década de 1960 o modelo que tomava forma, em essência era o mesmo das demais universidades em funcionamento no país, ou as faculdades isoladas que se multiplicavam em ritmo acelerado, todas elas hoje evoluídas para centenas de universidades espalhadas perlo país inteiro. De alguma forma todas essas instituições adotavam, até a entrada dos anos 80, uma organização  curricular que favorecia uma base de formação mais ampla e genérica para todos os cursos especializados oferecidos. Na minha os alunos novos que se matriculavam  a cada  semestre letivo, passavam pelo “Básico” com um total de 20 créditos obrigatórios: História do Pensamento, Antropologia (Introdução ao estudo do homem), Lógica e Metodologia, Português e Realidade Brasileira. Inglês e Matemática eram optativas. Uma vez no curso profissional todos os alunos tinham que obrigatoriamente cursar mais duas disciplinas de formação geral: Humanismo e Tecnologia e Ética Profissional. Não há necessidade de provar que as vantagens em termos de colocar a base da formação num fundamento comum, facilitaria em muito o intercâmbio e a compreensão entre os diversos campos do saber e a prática de uma autêntica  interdisciplinariedade. Em outras palavras. Os egressos dos mais diversos cursos levavam para a vida profissional conhecimentos e conceitos, enfim uma linguagem que   facilitava o diálogo entre um engenheiro e um filósofo, um economista e um antropólogo, um linguista e um historiador.

Infelizmente a partir  da década de 1990 esse modelo acadêmico foi  sendo substituído por uma concepção de universidade de perfil empresarial, profissionalizante, tecnocrático posto em prática por meio de um aparato burocrático exacerbado. Para tanto foi preciso mexer nas próprias bases do perfil que até então orientava aa instituições. A formação básica e genérica foi banida da estrutura curricular com o argumento de que não se podia perder tempo impondo disciplinas “sem utilidade”, atrasando  a formação profissional. Disciplinas como “Humanismo e Tecnologia” e “Ética Profissional” foram departamentalizadas e com isso sua existência entregue ao arbítrio das instâncias burocráticas responsáveis pela execução do projeto acadêmico dos diversos cursos.  Dessa forma o caminho para a formação de técnicos e burocratas bitolados e sem visão suficiente para uma análise crítica  dos problemas econômicos, sociais e políticos que lhes compete resolver, tornaram-se os referenciais da rotina acadêmica. Uma outra consequência que dá a pensar foi a perde de espaço da Filosofia, Ciências Humanas, Letras e Artes nas prioridades acadêmicas em favor de uma hipertrofia beirando a paranoia, de  setores essencialmente voltados para as técnicas  e tecnologias destinadas à administração e gerenciamento da complexidade dos desafios práticos. Nesse contexto o lugar e a importância da pessoa humana não passa do discurso e das declarações  dos responsáveis  pela “missão” que de fato não passa de um acidente que pouco ou nada conta. Esse clima afetou inclusive os currículos profissionais individuais que expurgaram da sua programação disciplinas que lhes pareciam  dispensáveis. Um exemplo deplorável foi a retirada do currículo do Direito da disciplina do Direito Romano. O que se pode esperar de uma decisão dessas? Sem informações mínimas, em conhecimentos  da natureza, da históriaca e  da competência própria da área, formam-se peritos em manipular leis, rábulas de porta de delegacia, juristas no sentido pleno do temo, nem pensar, aliás parece que nem interessam. Esse fenômeno contaminou inclusive os cursos de formação humanística como a História. As disciplinas oferecidas não tem conexão umas com as outras, dedicam uma preocupação exagerada em reescrever e reinterpretar os acontecimentos históricos à luz de ideologias na moda. Falta-lhes a base dos conhecimentos garantidas pela Filosofia da História, pelo estudo da evolução do Pensamento Humano, por disciplinas complementares como a Geografia, a Antropologia, a Etnografia, a Etnologia,  a Arqueologia. O que se pode esperar de um historiador formado nessas condições? Estudos de casos amarrados artificialmente, para não dizer grotescamente, às teorias da moda do momento. Com essa afirmação não se pretende desqualificar esse tipo de questões quando tratados com a devida objetividade. Mas para um verdadeiro historiador esse perfil é muito pobre. Hoje a universidade, em vez de abrigar um Centro ou um Instituto de pesquisa e inovação tecnológica de ponta, evolui em direção ao formato de um Distrito Industrial no qual principalmente a Filosofia, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes vão sendo condenadas a ocupar o lugar do “primo pobre”.

This entry was posted on terça-feira, 22 de fevereiro de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.