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A Natureza como Síntese - 22

Depois dessa digressão voltemos a Teilhard de Chardin. Não há necessidade de insistir mais de que ele vai conduzindo toda a sua linha de raciocínio em busca de um ponto de convergência da natureza global. Ocupa-se com a pluralidade das realidades naturais com a certeza de que pela sua natureza fazem parte de uma grande unidade. A visão unitária do universo e da natureza encontra-se implícita no macro-modelo desenhado para balizar a coerência da suas reflexões. Tudo teve o seu começo no “alfa”. Nele concentrou-se a matéria original, o “estofo” dotado de um potencial ilimitado de diversificação, reagrupação, complexificação e  concentração sobre si mesmo, até voltar novamente, no final, a uma unidade definitiva, o “ômega”. No último capítulo do “Fenômeno Humano”, intitulado “A Terra Final”, a sua intenção nesse sentido fica cada vez mais clara.

O homem só continuará a trabalhar e a pesquisar se conservar o gosto apaixonado de fazê-lo. Ora, esse gosto está inteiramente pendente da convicção, estritamente indemonstrável para a Ciência, de que o Universo tem sentido e de que pode, ou até de que deve desembocar, se formos fiéis, em alguma irreversível  perfeição. Fé no progresso.

Podemos conceber cientificamente um melhoramento quase indefinido do organismo humano e da sociedade humana. Mas logo que se trata de materializar praticamente os nossos sonhos, constatamos que o problema continua indeterminado, ou mesmo insolúvel, a menos que  admitamos, por uma intuição parcialmente supra-racional, as propriedades convergentes do Mundo a que pertencemos. Fé na Unidade. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 324)

Na citação acima, Teilhard como cientista deixa clara a dificuldade em oferecer, via Ciência, a perspectiva para uma resposta final e conclusiva para o desfecho da evolução em geral e a do homem em particular. Percebe como, para entender o Universo  e a Natureza, os cientistas desmontaram a realidade até as últimas peças. E no afã de, por esse caminho, encontrarem respostas de fundo para as hipótese que os orientam, cresce, no mesmo ritmo do avanço das suas descobertas, a desconfiança de que não e por essa via que irão obtê-las. Se essa foi a situação em meados do século XX, o que não dizer do começo do século XXI?. Em todo o caso, e o que interessa, é que ele descreveu o desfecho final, para o qual deverão contribuir tanto as Ciências Naturais quanto as Ciências do Espírito.

Quando olhamos no Universo movediço para o qual acabamos de despertar, as séries temporais  espaciais divergir e soltar-se à nossa volta e para trás, como as camadas de um cone, fazemos Ciência pura. Mas quando nos voltamos para o lado do Ápice, em direção à Totalidade e o Porvir, forçoso nos é fazer também Religião.

Religião e Ciência: as duas faces conjugadas de um mesmo ato completo de conhecimento, - o único que pode abarcar para completá-los, medi-los e consumá-los, o Passado e o Futuro da Evolução.

No reforço mútuo dessas duas potências ainda antagônicas, na conjunção da Razão e da Mística, o Espírito humano, pela natureza do seu desenvolvimento, está destinado a encontrar o extremo de sua penetração, com o máximo de sua  força viva. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 324)

A no seu texto complementar ao “Fenômeno Humano”, ao qual deu o titulo de “O Homem na Natureza”, formulou a  conclusão de todo o seu esforço científico e as reflexões que o acompanham, nos seguintes termos.

Se o polo de convergência psíquica no sentido do qual gravita, organizando-se,  a Matéria não fosse nada de diferente, nem nada mais que o agrupamento totalizado, impessoal e reversível, de todos os grãos de Pensamento cósmicos momentaneamente refletidos uns nos outros, o enrolamento do Mundo sobre si mesmo desfazer-se-ia, na própria medida em que a Evolução, ao progredir, tomaria consciência mais clara do beco sem saída em que terminaria. Sob pena de ser incapaz de formar o fecho de abóbada para a Noosfera, “Ômega” só pode ser concebido como o  ponto de encontro entre o Universo chegado ao limite de concentração  e um outro Centro ainda mais profundo – centro auto subsistente e Princípio absolutamente último de irreversibilidade de personalização: o único verdadeiro Ômega. E julgo ser neste ponto que se insere na Ciência da Evolução, o problema de Deus – Motor, Colector e Consolidador da Evolução. (Teilhard de Chardin. 1956. p. 148-149)

Pelo exposto fica claro que, salvo melhor juízo,  Teilhard direcionou todo o seu esforço de cientista, de etnógrafo, de etnólogo, de geógrafo, de historiado, de filósofo, e porque não de teólogo e místico, em favor da demonstração de que o Universo é Uno na sua incrível diversidade. Essa Unidade somente é possível se houve um começo único, um “Alfa”. A mesma lógica pede também que o desfecho que levou a Evolução à Pluralidade, à diversidade extrema numa primeira fase, e numa segunda, voltou a concentrar-se (lembramos a metáfora do globo terrestre), em busca de ponto de chegada final, único e definitivo – o “Ômega”. Apesar da Pluralidade acompanhada de uma aparente dispersão, uma linha mestra, um “Leitmotiv”, uma teleologia garantiu e garante ainda a Unidade radical. E se existe uma teleologia, uma causa eficiente – um “Alfa” – as potencialidades da Evolução estavam previstas no “Estofo” primordial do Universo, e a Evolução mesma  direcionada em busca de um objetivo, de um fecho final- o “Ômega”. A lógica dessa cosmovisão só pode terminar numa conclusão, aquela que o próprio Teilhard formulou no “O Lugar do Homem na Natureza”: o “Alfa” confunde-se com o Deus Criador e o “Ômega” o mesmo Deus, princípio, alma, razão de ser e destinação final do Universo, da Natureza e do Homem. “E julgo ser neste ponto que se insere na Ciência da Evolução, o problema de Deus -  Motor, Colector e Consolidador da Evolução” (Teilhard de Chardin. 1956. p. 149)

Para Teilhard são fundamentais os conceitos emprestados ao alfabeto grego: “alfa” e “ômega”. O sentido metafórico de “começo” e “fim”, de “ponto de partida” e “ponto de chegada”, não deixa dúvidas. Entre esses dois polos localiza-se, numa perspectiva macro-histórica, a evolução do Universo, da Natureza e do Homem e, consequentemente, a evolução individual de cada uma das realidades que compõem o todo. Do “estofo” primordial, existente lá no começo, confundindo-se com o “alfa”, resulta a matéria original na forma de átomos. A partir desse estágio entram em ação os processos de agregação, de repetição geométrica, de complexificação, de compressão e a consciência, que aceleraram num ritmo geométrico  a dinâmica da evolução. Não é aqui o lugar para entrar  a fundo nos meandros, nas sinuosidades, nos aparentes becos sem saída e os recursos  teóricos e metodológicos de que o autor do “Fenômeno Humano” e do “Homem na Natureza” se valeu, para não desviar-se da perspectiva científica. Esses aspectos já foram analisados em outra passagem das presentes reflexões. No fundo duas preocupações  parecem orientar a maneira original com que o autor conduziu suas analises e as suas reflexões. Teilhard preocupa-se, de um lado, em deixar claro de que lida com a evolução na perspectiva das Ciências Naturais. Do outro, entretanto, a sua formação filosófica e teológica e, principalmente, sua fé inegociável, dificultam-lhe em muito a caminhada. São de modo especial cruciais a resposta para a origem da matéria prima, o “estofo”  do Universo, a origem da vida, os salto do instinto para a inteligência reflexa. Corre paralela a preocupação para não perder de vista as causas, ou a causa, responsável pelo surgimento da matéria e, como a evolução, amarrada a uma teleologia, culmina num ponto de partida pré-estabelecido. Entende-se a dificuldade de Teilhard em movimentar-se nesse campo minado e manter-se fiel ao propósito de não cair na tentação de, à maneira de um “deus ex machina”, valer-se de referenciais alheios às Ciências Naturais. Conceitos como “causalidade eficiente”, “destino”, “criação”, revelação natural”, “criador”, “forças sobrenaturais ou preter-naturais”, “design inteligente” de maneira alguma seriam recursos explicativos legítimos, num texto que se orienta por uma abordagem científica. Entretanto não deixam de decidir indiretamente, à maneira de um pano de fundo, sobre a natureza e o rumo das reflexões. 

O arcabouço conceitual escolhido por Teilhard para tornar compreensível a genialidade da sua cosmovisão global do Universo, da Natureza e do Homem, prima pela lógica e coerência. Tudo começou no polo “alfa” onde reina total simplicidade. Essa simplicidade, porém, é  apenas aparente. Ela oculta um potencial ilimitado de desdobramentos, que vão se materializando  no decorrer da evolução, tanto no plano marco quanto no micro e no nanocósmico. “O Fenômeno Humano”  nada mais é do que o desfecho dessa história com o surgimento do homem, inserido “sistemicamente”, como diria von Bertalanffy, nesse contexto global e universal. A evolução em todos os níveis  e abrangências  conta com os mecanismos da agregação, da repetição geométrica, complexificação e compressão, como responsáveis  pela infinita diversidade e níveis que se observam na natureza. Com o acirramento da complexificação, acentua-se a compressão e com ela os níveis de consciência tornam-se cada vez mais perceptíveis e mais atuantes. Na primeira fase da evolução predominou a diversificação – os meridianos do globo terrestre ilustram essa dinâmica – na segunda acentua-se a compressão, até que tudo seja subsumido num único polo de convergência – o “ômega”. 

Os processos responsáveis por essa dinâmica, além dos seus resultados são explicáveis pela evolução natural. Há, porém, três momentos nessa história de bilhões de anos em que os acontecimentos se complicam. São situações limite em que qualquer cientista isento e sem preconceitos pergunta: o meu arsenal metodológico e conceitual está, de fato, em condições de dar uma resposta que convença, ou devo remeter essa tarefa a uma outra instância que dispõe dos instrumentos adequados para lidar com o problema? Os três momentos críticos são, para repeti-los de novo: o primeiro, a origem da energia, a matéria prima, “o estofo” do universo; o segundo, o surgimento da vida com suas características de “sistema aberto”, alimentando-se, locomovendo-se e reproduzindo-se e orientando-se por instinto; o terceiro, a hominização que equipou o cérebro do homem com a inteligência racional. Não é aqui a ocasião para requentar essa discussão a nível genérico. Nosso interesse resume-se no caminho que Teilhard escolheu para lidar com o problema. Fiel ao propósito de enfrentar essas questões  intrincadas ao nível da evolução natural, espera-se que não remeta a explicação a algum “design inteligente”, ou, o que ninguém estranharia, jesuíta que era, declarar que as Ciências Naturais não têm como dar uma resposta conclusiva, restando a Criação como solução. Optou pela saída de qualquer cientista honesto. Lidando com esse tipo de desafios como sendo hipóteses, e nada mais. É o que ele deixa claro  ao introduzir o capítulo primeiro do “Fenômeno Humano”, com o titulo “O Estofo do Universo.

O estofo do universo: esse resíduo último das análises sempre mais minuciosas da Ciência ... Não desenvolvi com esta, para saber descrevê-lo dignamente, aquele contato direto, familiar, que faz toda a diferença entre o homem que leu e o homem que experimentou. E sei também do perigo que existe em tomar, como materiais de uma construção que se desejaria duradoura, hipóteses que, na própria mente daqueles que as propõem, não devem durar mais do que uma manhã. 

Em compensação sobre a variedade de teorias que se vão amontoando umas sobre as outras, surge um certo número de caracteres que reaparecem obrigatoriamente em qualquer uma das explicações propostas para o universo. E dessa “imposição” definitiva, na medida que ela exprime condições inerentes a toda a transformação natural, mesmo viva, que deve necessariamente partir e que pode decentemente falar o naturalista empenhado num estudo geral do Fenômeno Humano. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 41)

Pelo visto Teilhard atribui ao “estofo” do universo as potencialidades necessárias para que a evolução em geral pudesse acontecer, inclusive “gerar a vida”. Fica claro, entretanto que se apoiam em hipóteses “que não devem durar mais do que uma manhã”. Como cientista não se preocupa em especular, ou propor mais um palpite, mais uma hipótese que “não dura mais do que um manhã”, sobre a origem e natureza do “estofo” do universo. Prefere adotar a linha de raciocínio ditada pelo fato objetivo de que a natureza evolui e se transforma. Trabalha com o pressuposto de que no “estofo” do universo encontram-se em potencial, desde  a sua origem, os elementos e mecanismos que no decorrer de bilhões de anos, levaram pela evolução, ao que hoje presenciamos no macrocosmos, no microcosmos e no nanocosmos. No entender de Teilhard, essa gigantesca construção, tanto no tamanho, quanto na diversidade foi possível, porque  o “estofo” primordial previa a agregação, a repetição geométrica, a complexificação e a compressão como ferramentas que permitiram que a consciência se manifestasse em níveis cada vez mais aperfeiçoados. Mas no fundo, no fundo, o panorama da evolução vai sendo desenhado por um plano, que orienta o rumo e permite supor uma razão de ser e não apenas uma mera casualidade. O “alfa” como ponto de partida, a diversificação e a complexificação e, finalmente, a compressão, para terminar no “ômega”, levam à conclusão de que o autor supõe uma teleologia, responsável para que a dinâmica não se desgarre do caminho traçado. Somente aceitando uma teleologia entende-se a evolução global, acontecendo entre os dois polos, o “alfa” como ponto de partida  o “ômega” como ponto de chegada.

O potencial contido no “estofo” do universo materializou-se  na complexa realidade que vem a ser o mundo anorgânico e o orgânico não vivo. Sua pedra angular é o átomo. Multiplicando-se quantitativa e qualitativamente por agregação, por repetição geométrica, por complexificação e por compressão, levou ao nível em que, ( ... ) é perfeitamente concebível que um salto essencial seja possível entre dois estados ou formas, mesmo inferiores, de consciência. Para retomar e resolver, nos seus próprios termos, a dúvida anteriormente formulada, há efetivamente, eu direi, muitas maneiras diferentes de um ser possuir um Dentro. Uma superfície fechada, de início irregular, pode-se tornar centrada. Um círculo pode aumentar sua ordem de simetria tornando-se uma esfera. Quer pela ordenação as partes, quer pela aquisição de uma dimensão a mais, nada impede que o grau de interioridade próprio de um elemento cósmico possa variar a ponto de se elevar bruscamente a um novo escalão. 

Ora semelhante mutação psíquica deve ser precisamente  acompanhada da descoberta da combinação celular, eis que resulta imediatamente da lei que, conforme atrás reconhecemos, regula em suas relações mútuas o Dentro e o Fora das coisas. Acréscimo da Matéria: portanto correlativamente  diríamos, aumento de consciência no meio sintetizado. Transformação “critica” no arranjo íntimo dos elementos, devemos acrescentar agora:  logo, “ipso facto”, mudança de “natureza” no estado de consciência do Universo.

E agora consideremos novamente à luz destes princípios, o assombroso espetáculo apresentado pela eclosão definitiva da Vida na superfície da Terra Juvenil. Esse ímpeto para frente na espontaneidade. Esse luxuriante desencadeamento de criações fantásticas. Essa expansão desenfreada. Esse salto no improvável ... Não será aí o acontecimento que a teoria nos permite esperar? A explosão da energia interna consecutiva e proporcionada a superorganização fundamentada da Matéria?

Realização externa de um tipo essencialmente novo ao agrupamento corpuscular, permitindo a organização mais flexível e melhor centrada de um número ilimitado de substâncias tomadas e em todos os graus de grandeza particulares; e, simultaneamente, aparecimento interno de um novo tipo de atividade e de determinações conscientes: por essa dupla e radical metamorfose podemos razoavelmente definir, naquilo que ela tem de especificamente original, a passagem critica da Molécula para a Célula, - “o Passo da Vida”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 91)

A Natureza como Síntese - 21

A capacidade de refletir, isto é, a capacidade de tomar consciência de si mesmo, de entender o porque do seu saber, fez com que o homem percebesse que seus semelhantes gozavam da mesma prerrogativa. É legítimo  imaginar que daí nascesse a curiosidade de aproximar-se deles e comunicar-se com eles. A aproximação por meio do diálogo, o mútuo entendimento e o consequente conhecimento do outro, só foi possível com o recurso à linguagem nas suas diversas formas. A linguagem falada, complementada e reforçada por gestos, atitudes corporais, mímicas, etc., deve ter sido a primeira via de aproximação entre os humanos. Sua importância é tamanha que a evolução cultural da humanidade é simplesmente impensável sem o fantástico instrumento que são as línguas faladas e demais formas de comunicação. Sem elas é inimaginável a formação de comunidades, o desenvolvimento da arte, a formulação de sistemas de pensamento, de concepções mágicas e religiosas, os cultos religioso, os rituais de qualquer  espécie. E o que é mais importante do que tudo são os registros feitos pelo homem através dos tempos, as experiências feitas, a memória acumulada, tudo se perderia. 

Por isso, a linguagem  não é apenas uma ferramenta. Ela é a ferramenta mais importante do homem. É ela que nos faz humanos. Pela fala, depois, pela escrita, conseguimos formular pensamentos e acumular conhecimentos no decorrer das gerações. Um cachorro não pode saber como era seu bisavô. O homem é o único ser que pode ter essa informação. Uma das maiores vantagens evolutivas da linguagem é a capacidade de reconhecer que um semelhante tem um cérebro como o nosso e pode pensar, como nós. A isso damos o nome de teoria da mente. Foi essa capacidade que nos possibilitou a comunicação. No momento em que um homem raciocinou que o outro perto dele tinha uma mente igual, chegou à brilhante conclusão de que ele pode me entender. Essa ideia básica, fundamental, está presente até hoje em todas as formas humanas de expressão. Foi somente a partir daí que conseguimos viver plenamente em comunidade, que criamos a filosofia e a matemática e nos constituímos em humanidade. (Entrevista com Daniel Everett. Vaja, 7 de março. 2012. p. 20)

A linguagem possibilita, simultaneamente, a capacidade de inventar e desenvolver tecnologias, uma outra conquista peculiar e exclusiva ao homem como portador de inteligência reflexa. Assim como confeccionar instrumentos, mesmo os mais rudimentares, prova que seu autor é portador de inteligência reflexa e como tal um autêntico ser humano, assim a linguagem, nas suas mais diversas modalidades, só aparece onde há reflexão. Reduzir a linguagem a uma pré-disposição genética, uma herança biológica, pré-programada no DNA, mais precisamente no gene F0XP2, como  prega a teoria de Noam Chomsky,  parece difícil, melhor impossível de sustentar, tomando-se como ponto  de partida verdadeira a natureza da reflexão assim como a propõe Teilhard de Chardin. Depois de servir por meio século de cartilha, para não dizer bíblia para inúmeros linguistas e pedagogos, Chomsky começa  a ser contestado exatamente a partir da sua especialidade. Em seu recente livro: “Language: the Cultural Tool” – “A Linguagem: a Ferramenta  Cultural”, o linguista Daniel Everett,  professor da universidade de Bentley em Boston, bate de frente com essa teoria. Numa entrevista à revista Veja, classifica de ridícula a ideia de Chomsky, pois, conforme ele, não há provas, nem nunca as houve, de que existem estruturas em nosso cérebro ou em nosso DNA, que autorizam afirmar que a linguagem é hereditária. O gene FOXP2 ao qual por algum tempo, atribuiu-se a hereditariedade da linguagem, além de ter outras funções, está presente em ratos, algumas espécies de aves, e outros animais. Soma-se a isso que Chomsky não é geneticista e nunca fez pesquisas em biologia humana. Resumindo Everett afirma que, as línguas são a combinação de três fatores: a capacidade cognitiva do homem, a cultura dos povos  e o que as sociedades querem comunicar. Nosso corpo estabelece os limites de como nos expressamos, a cultura define como falamos e lemos e a vontade de nos comunicarmos determina o que queremos dizer. É uma relação dinâmica. Cada uma dessas peças influencia a outra. (Everett. Em Veja. 7 de março. 2012. P. 20)

Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, portanto um geneticista de nível incontestável, referindo-se à possibilidade do condicionamento da linguagem geneticamente, mais especificamente pelo gene FOXP2,  explica que a descoberta de uma falha nesse gene era o responsável por dificuldades de falar numa família inglesa observada por gerações por especialistas. A conclusão foi que o defeito no FOX-P2 era o responsável pela dificuldade de processar regras de gramática, estruturar frases e mover os músculos do rosto e da boca e das pregas vocais par articular certas palavras. Uma minuciosa investigação do código genético das pessoas dessa família mostrou que havia uma minúscula falha na grafia no gene FOX-P2. Uma análise mais  minuciosa mostrou também que a sequência do gene FOX-P2 permanecera estável  em quase todos os mamíferos. Somente no homem tinha ocorrido essa modificação daquele gene há mais ou menos 100.000 anos, portanto em termos de contagem cronológica da evolução, muito recente. A conclusão foi de que as mudanças ocorridas teriam contribuído par o desenvolvimento da linguagem entre os humanos. As possíveis consequências  dessa descoberta terminaram em inúmeras discussões pelos mundo científico afora. Especialistas em outras áreas como Noam Chomski, um pedagogo, concluíram que capacidade de falar, a língua é o produto de um condicionamento genético, resultado portanto de uma mutação genética ocorrida na sequência do gene FOX-P2 do cromossoma 7. O fato é que essa conclusão foi transformada em base para  uma proposta pedagógica que, por anos, por assim dizer, tornou-se  a cartilha para explicar origem da linguagem humana e como consequência orientou a estratégia pedagógica no seu ensino nos diversos níveis da formação dos alunos. Um pouco mais acima já apontamos para a denúncia de Daniel Everett, referindo-se a Chomsky e sua proposta como insustentável, embora largamente  aceita e praticada como caminho para entender a linguagem humana.  Antes de Everett, Francis Collins com toda a sua autoridade como geneticista diretor do Projeto Genoma Humano, concluiu sobre essa questão:

Neste ponto, materialistas ateus podem estar aplaudindo. Se os humanos evoluíram rigorosamente por meio de mutação e seleção natural, quem precisa de Deus para explicar? A isso, eu respondo: eu preciso. A comparação entre sequências  de chimpanzé e de ser humano, embora interessante, não explica o que é preciso para o ser humano. A meu ver, apenas a sequência do DNA, mesmo acompanhada por um imenso baú do tesouro com dos sobre funções biológicas, nunca irá esclarecer determinados atributos especiais de humanos, como o conhecimento da Lei Moral e a busca universal  por Deus, Livrar Deus do fardo de atos especiais da criação O exclui como fonte daquilo que torna a humanidade especial, nem do próprio universo. Simplesmente nos mostra como Ele trabalha. ( linguagem de Deus, p. 146)

“A capacidade cognitiva” a que se refere Everett, não passa  de uma outra maneira de designar a “capacidade de reflexão de Teilhard.  A linguagem, incluindo a falada, a escrita, a expressão pelas artes, os gestos, a mímica e qualquer outro tipo de comunicação intencional, é o resultado direto da reflexão. A pessoa ao concentrar-se sobre si mesma, percebe que seu semelhante está fazendo o mesmo. A partir desse mútuo observar-se nasce o desejo de comunicar-se, de compartilhar experiências e vivências, de trocar impressões, de encontrar soluções comuns, de interpretar as incógnitas que envolvem a vida, a natureza e o universo. A linguagem serve de ponte para essa intercomunicação. Não faz  diferença se para tanto os interlocutores se valem  da língua  falada, da escrita, nas mais variadas modalidades, de gestos da mímica, de posturas, da arte. O determinante está no fato  de que a comunicação entre humanos tem como motor e combustível a necessidade inata ao homem de relacionar-se de forma consciente com os outros, isto é, o homem é por natureza um ser social. Entre os animais a comunicação acontece unicamente no plano instintivo e, por isso mesmo, dá-se a partir de sinais mecânicos que têm sempre o mesmo significado e sempre pedem a mesma resposta. No caso do homem a comunicação é essencialmente reflexiva e, por isso mesmo, conceitual e simbólica. E sendo conceitual e simbólica expressa a maneira peculiar  como as pessoas percebem o que elas próprias são e o universo e os acontecimentos em que vivem a existência. Como se pode concluir, a linguagem, melhor, as linguagens são o fruto da consciência que o homem tem de si mesmo e da necessidade de compartilhar com os semelhantes a sua cosmovisão, sua “Weltauffassung”. E é sobre esse fundamento que as culturas vão tomando forma. Assim como cada pessoa individual percebe a si mesmo e o mundo de uma perspectiva original, as comunidades de pessoas convencionam caminhos comuns que as orientam para um objetivo comum, o caminho comum vem a ser a tradição cultural. Nela, cada indivíduo, referenciando-se a balizas respeitadas por  todos, preserva a individualidade expressa na maneira de caminhar, nas emoções que sente, nos simbolismos que lhe são sugeridos, nas reações diante dos imprevistos e na forma de lidar com questões  existenciais de fundo como são a doença, o  sofrimento, a injustiça, a solidariedade, o amor, a fidelidade, a morte e o que se oculta atrás dos seus mistérios e incógnitas, e nesse cenário o lugar ou não lugar para Deus.

À linguagem cabe o papel de meio de campo entre a preservação da individualidade e as relações que consolida com seus semelhantes. As pessoas dialogando desenvolvem bases de  entendimento mútuo, fundamentadas  em conceitos abstratos, representações, simbolismos, etc., conforme o entendimento do Pe. Balduino Rambo.

Ela é, sem dúvida, muito mais do que um veículo técnico de comunicação. Ela desabrochou do sangue e da natureza de um povo. Por isso reluzem sobre suas folhas as reminiscências  do orvalho dos tempos primigênios e do seu cálice emana ainda  hoje algo do perfume do mistério da alma humana.

A expressão mais evidente do sangue comum e do espírito, da alma comum, do modo de pensar comum é a língua. A identidade étnica dispõe, obviamente, de outras modalidades e de outras formas de fazer visível a sua cultura: a música, a pintura, a escultura, festas, trajes, usos e costumes. A língua, entretanto, constitui-se  no sinal identificador mais essencial da identidade étnica. Torna possíveis as demais manifestações e de certo ponto as inclui.

A língua materna é uma flor milagrosa plantada por Deus à margem da estrada dos povos, para que nela se alegrem. Aquele  que a pisoteia e, sob qualquer pretexto a rouba, danifica a sua alma e se intromete criminosamente no santuário da alma humana. (Rambo, Balduino. 1935. )

O significado da língua na sua forma mais ampla de “comunicação”, formulada por David Everett há poucos meses, poderia parecer inspirada na reflexão do Pe. Rambo feita há oitenta anos. A língua, segundo o primeiro, resulta da capacidade cognitiva do homem; faz as pessoas comunicarem-se de acordo com os padrões consagrados e consolidados pela história de cada cultura particular; e ainda faz as pessoas compartilhar com as demais o que desejam comunicar. A semelhança  fica ainda mais evidente na continuação da reflexão feita pelo segundo, há quase oito décadas.

A língua materna simboliza a mesma maneira de  pensar e a mesma maneira de sentir. Sob esse aspecto ela representa um dos tesouros mais sagrados dos povos. A língua comum constitui-se no veículo mais completo da compreensão mútua, não somente por causa dos mesmos sons e das mesmas palavras, mas antes de mais nada por causa das mesmas percepções que transmite. A língua materna comum permite a formação da comunidade de destino comum. Por meio dela somos capazes de superar com maior facilidade a enorme solidão da nossa existência e trilhar com mais segurança a difícil, a longa, a íngreme e a escura trilha da nossa vida. Ninguém se basta a si mesmo. Pelo contrário. Quanto mais importante é o homem tanto mais sente a solidão e a impotência e com tanto maior ânsia procura os homens que Deus lhe concedeu como companheiros de viagem a dois, a três ou a muitos, para que a jornada seja menos solitária. (Rambo. 1935. p. ?)

A Natureza como Síntese - 20

Nos parágrafos que acabamos de citar, Teilhard deixa transparecer  que, como cientista, está lidando com um desafio de boas proporções. Em linguagem popular diríamos que tem uma “batata quente” na mão. Vale-se de recursos conceituais e literários até surpreendentes no linguajar de um cientista. De qualquer forma parece legítimo perceber nas linhas, mais ainda nas entrelinhas, uma lógica que no fundo orienta a evolução, assim como ele a entendeu. O “estofo” de que e feito o Universo e a Natureza, concentra em si o potencial para tornar-se realidade na medida em que as condições necessárias estiverem presentes. Elas tornam-se efetivas como realidades presentes na medida em que a agregação, a repetição geométrica, a complexificação e a compressão, levam a sempre novos e mais altos níveis de organização. Cada nível de organização da matéria, por sua vez, exige um passo adiante na preparação ao que o autor chamou de “passagem critica da Molécula para a Célula, - o Passo da Vida”. À resposta para a pergunta se essa “passagem critica” é explicável por processos de natureza físico-química atuantes na história da evolução natural ou não. Teilhard responde: 

Nada, em si mesmo, impediria que, em massas infinitesimais, a substância viva esteja ainda a nascer sob os nossos olhos. – Mas nada, de fato, parece indicar, - tudo pelo contrário, parece dissuadir-nos de pensar assim. (Teilhard. 1986. p. 96)

Teilhard apoia a sua afirmação nas experiências de Pasteur que comprovaram  que, nas condições atuais, a vida não é gerada em laboratório, num meio  previamente esterilizado. Em princípio, porém, esse fato não prova nada, nem a favor, nem contra, a gênese da célula no passado remoto da evolução. O uso universal dos métodos de esterilização comprova que, nos limites das investigações de hoje, o protoplasma não mais se forma a partir de substâncias inorgânicas da Terra. E isso nos obriga, para começar, a revisar certas ideias por demais absolutas que podíamos alimentar  sobre o valor  e o uso, em Ciências, das explicações pelas “causas atuais”. (Teilhard. 1986. p. 96)

Como se pode ver tanto a origem e a existência da matéria prima, “o estofo “ do Universo, quanto a manifestação da vida na célula, desafiaram, como desafiam ainda, o potencial explicativo das Ciências Naturais. O terceiro passo na história da evolução, que coloca a Ciência diante de um desafio igualmente, ou muito mais intrigante, oferece a superação da “consciência instintiva pela consciência reflexa”, do “saber instintivo para o saber reflexo”, da “inteligência instintiva para a inteligência reflexa, em outros termos “a Hominização”. Teilhard resumiu o tamanho do desafio.

Numa perspectiva puramente positivista, o Homem é o mais misterioso e o mais desconcertante dos objetos com que a Ciência se depara. E, de fato, temos de confessar, a Ciência não lhe encontrou ainda um lugar nas suas representações do Universo. A Física chegou a circunscrever provisoriamente  o mundo do átomo. A biologia logrou estabelecer uma certa ordem nas construções da Vida. Apoiada na Física e na Biologia, a Antropologia, por sua vez, explica, mais ou menos, a estrutura do corpo humano e certos mecanismos da sua fisiologia. Mas uma vez reunidos todos esses traços, o retrato manifestamente, não corresponde a realidade. O homem, tal como a Ciência o consegue reconstruir hoje em dia, é um animal como os outros, tão pouco separável, por sua anatomia, dos antropóides, que as modernas classificações da Zoologia, retornando à de Lineu, o incluem com eles na mesma superfamília dos Homínidas. Ora, a julgar pelos resultados do seu aparecimento, não constitui ele precisamente algo totalmente diferente ?

Salto morfológico ínfimo; e, ao mesmo tempo, incrível abalo das esferas da Vida: todo o paradoxo humano ... E toda a evidência, por conseguinte, de que, na suas atuais reconstruções do Mundo, a Ciência negligencia um fator essencial, ou melhor dizendo, uma dimensão inteira do Universo.

Entre os últimos estratos do Plioceno, donde o Homem está ausente, e o nível seguinte, onde o geólogo deveria ser sacudido de estupefação ao identificar os primeiros quartzos lascados, o que é que se passou ?. E qual é a verdadeira dimensão do salto. (Teilhard. 1986. p. 185)

A nova dimensão a que se refere Teilhard vem a ser a Noosfera que vai coroar a Litosfera e a Biosfera. Não há necessidade de lembrar  que na explicação da transição entre as três esferas, a Ciência não consegue avançar muito além da formulação de hipóteses que “não se sustentam por mais do que uma manhã”. O cientista, seja ele biólogo, paleontólogo ou antropólogo,  é desafiado mais uma vez pela incomoda pergunta: Os dados empíricos disponíveis e as perspectivas oferecidas pelo potencial da investigação, pode-se prever uma resposta convincente e definitiva?. Antes de arriscar um veredicto é prudente tentar  compreender mais a fundo o sentido real, quando Teilhard afirma que o “geólogo deveria ser sacudido de estupefação ao deparar-se com os primeiros quartzos lascados”.

Concedemos que para o biólogo, o paleontólogo, o antropólogo físico e o bio antropólogo, a transição entre os símios mais primitivos, os símios antropoides e os homínidas, não cause surpresa fora do comum. Afinal lidam com o que a espécie humana tem em comum com os demais antropoides, símios e seres vivos em geral. Seus métodos são reconhecidos e válidos e as hipóteses que formulam a partir dos dados e resultados que obtém são legítimas. Muitos não percebem, e quando percebem, não se interessam pelo que no homem é de fato inédito e assim “negligenciam um fator essencial, uma dimensão inteira do Universo”. E, procurando manter a fidelidade ao raciocínio e à cosmovisão de Teilhard, a dimensão a que se refere vem a ser a Noosfera. A questão assume uma dimensão bem mais polêmica no momento em que for tratada ao nível do psiquismo. A pergunta de fundo a ser respondida vem a resumir-se em: o psiquismo do homem difere essencialmente  daquele dos seres vivos que vieram antes dele; ou a inteligência animal situa-se apenas num nível abaixo da humana; ou ainda, a inteligência do homem dispõe, em última análise, de algumas ferramentas a mais do que os antropoides como o gorila e o chimpanzé. Explica-se tudo via biologia, via DNA, etc. Nada de suspeitar, muito menos aceitar, uma diferença de natureza entre o psiquismo do homem e do animal. Frente a esse impasse Teilhard propõe encarar de frente o problema.

Se queremos resolver essa questão (cuja solução é tão necessária para a Ética da Vida quanto para o conhecimento puro ...) a “superioridade do Homem sobre os Animais” eu não vejo senão um caminho: por decididamente de lado, nos feixes dos comportamentos humanos, todas as manifestações secundarias e equívocas da atividade interna e encarar de frente o fenômeno central da “Reflexão”. 

Do ponto de vista experimental, que é o nosso, a reflexão, como a própria palavra indica, é o poder adquirido de uma consciência  de se dobrar sobre si mesma, e de tomar posse de si  mesma como de um objeto dotado de sua própria consistência e de seu próprio valor: não apenas conhecer, - mas conhecer-se; não apenas saber, mas saber que se sabe. Por essa individualização de si mesmo no fundo de si mesmo, o elemento vivo, até aqui espalhado e dividido sobe um círculo difuso de percepções e de atividades, acha-se constituído, pela primeira vez, em centro punctiforme, onde todas as representações e experiências se entrelaçam e se consolidam num conjunto consciente de sua organização. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 186).

A revolução que o aparecimento da Reflexão significou para a história posterior da evolução, justifica algumas reflexões complementares. Quem sabe ler e entender a linguagem da natureza, descobre nos quartzos lascados, nos famosos machados de punho, que deveriam ter impressionado os geólogos mais do que qualquer outra descoberta inusitada, os elementos que distinguem a Inteligência Reflexa da Inteligência Instintiva ou sensitiva. De saída os caçadores e coletores  do paleolítico viram-se numa situação que implicava na própria chance de êxito na competição com as demais espécies pela própria sobrevivência no plano da evolução natural. Sob o aspecto anatômico o homem pertencia àquelas espécies diante mão condenadas ao fracasso na luta pela sobrevivência, se entregue unicamente à lógica implacável da seleção natural. Basta observar as mãos. Não passam de ferramentas de utilidade limitada. Servem para tudo e, ao mesmo tempo, não são eficientes em nada. Basta compará-las com as extremidades  dos animais que no paleolítico disputavam os espaços e os alimentos com o homem. Servem para cavar, mas cavam mal; servem para agarrar, mas agarram mal; servem para defender-se, mas defendem mal. Entre a eficiência das garras de um tatu ou de um tamanduá e as mãos, constata-se uma distancia quilométrica. O mesmo pode-se afirmar  dos cascos de um cavalo, das patas de um leão. Situação parecida constatamos na dentadura. Nela não se verifica nada similar à utilidade num ruminante ou num carnívoro. E o que pensar em relação à proteção contra as intempéries, com o corpo praticamente sem pelos, sem uma cobertura de lã ou camada de gordura? Como então se explica que, apesar de tudo, o homem é a única espécie, pelo menos entre os vertebrados, que continua com pleno êxito a sua trajetória evolutiva?

A resposta resume-se no fato de o homem ser a única espécie capaz de Reflexão. E na prática o que significa isso? Tomemos como exemplo os artefatos lascados de sílex, os machados de punho. O que ensinam? Que os autores do lascamento dispunham da capacidade  de avaliar uma situação e como resposta  por em andamento toda uma cadeia de procedimentos para dar conta dos desafios que oferecia. Parece legítimo imaginar, entre outros, a seguinte sequência de ações: tomar consciência de um desafio,  por ex,. escavar um tubérculo, ou tirar a pele de um animal, ou separar a carne dos ossos, ou defender-se  contra uma fera ou outro homem; constatar a ineficácia das mãos ou dos dentes o homem das cavernas lança mão de pedaços de madeira, de osso, ou lascas de pedra bruta; verificar a possibilidade de torná-las mais eficientes por meio de manipulações adequadas; dar-lhes o formato e os acabamentos necessários para servir à finalidade pretendida. Temos assim, em resumo, a cadeia de operações mentais ditando a sequência de ações para chegar a um objetivo determinado. Como se pode concluir sem mais, a Reflexão é a alma que municia o homem com a capacidade de ter consciência dos fatos, de saber as coisas, mas tendo consciência reflexa, sabendo os porquês do seu saber, e dessa forma, organizar logicamente os atos, valendo-se dos meios apropriados, para por em andamento uma linha teleológica em busca do objetivo pretendido. Na  sua maneira peculiar e única, marca registrada privativa sua, Teilhard resumiu o “Passo para a Noosfera” e o reflexo sobre a natureza e, de modo especial, sobre o homem.

Isto posto, eu pergunto. Se, com o correr do que ficou dito, é o fato de se encontrar “refletido” que constitui o ser verdadeiramente “inteligente”, podemos nós seriamente duvidar de que a inteligência seja o apanágio evolutivo do Homem e só do homem? E podemos nós, por conseguinte, hesitar em reconhecer, por que não sei que falsa modéstia, que sua posse representa para o Homem um avanço radical em relação a toda a Vida antes dele? O animal sabe, bem entendido. Mas, certamente, ele não sabe que sabe: de outro modo, teria há muito tempo multiplicado invenções e desenvolvido um sistema de construções internas que poderiam escapar à nossa observação. Consequentemente, permanece fechado para ele todo o domínio do Real, no qual nós nos movemos, nós, - mas no qual ele, por sua vez, não consegue entrar. Um fosso, - ou um limiar – para ele intransponível, nos separa. Em relação a ele, por sermos reflexivos, não somos apenas diferentes, mas outros. Não só simples mudança de grau, - mas mudança de natureza – que resulta de uma mudança de estado. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 186-187).

A Natureza como Síntese - 19

São fundamentais para Teilhard os conceitos de “alfa” e “ômega” emprestados ao alfabeto grego. O sentido metafórico de “começo” e “fim”, melhor talvez, “ponto de partida” e “ponto de chegada”, não deixa dúvidas. Entre esses dois polos  acontece na perspectiva macro histórica, o ponto de partida, o acontecer e o ponto de chegada da evolução do Universo, da Natureza e do Homem, assim como a evolução individual de cada um dos componentes que integram o todo. Do “estofo” primordial, existente lá no começo de tudo, confundindo-se com o “alfa”, resultou a matéria prima dos átomos. A partir desse nível entraram em ação os processos que puseram em andamento e aceleraram em ritmo geométrico a dinâmica da evolução, pela ação combinada da “agregação”, da “repetição geométrica”, da “complexificação”, da “compressão” e da “consciência”. Os meandros, as sinuosidades, os aparentes becos sem saída e os recursos teóricos e metodológicos dos quais o autor do “Fenômeno Humano” e do “Lugar do Homem na Natureza” se valeu, para não trair a perspectiva científica,  já foram motivo de preocupação em outra parte dessas reflexões.

De um lado Teilhard esforça-se em deixar claro de que lida  com a evolução na perspectiva das Ciências Naturais. Do outro, entretanto, sua formação filosófica e teológica e, sobretudo, seu compromisso com a ortodoxia, complicam-lhe em muito a caminhada. São, em primeiro lugar, os momentos cruciais que marcaram a história da evolução: a origem da energia, o “estofo” do universo que a uma certa altura leva à matéria; à origem da vida; o salto do nível do instinto para o patamar  da inteligência reflexa. Em segundo lugar, a preocupação de como surgiu a matéria e como tudo é conduzido por uma teleologia, culminando num ponto de chegada pré-estabelecido. Entende-se a dificuldade de Teilhard em movimentar-se nesse campo minado. Fiel ao propósito de não se deixar levar pela tentação de, à maneira de um “deus ex machina”, recorrer a referenciais alheios às Ciências Naturais, não trabalha com conceitos como  causalidade suficiente, destino, criação, revelação natural, criação, forças sobre ou preter naturais. Contudo elas devem ter influído na natureza e no rumo das suas reflexões motivadas pelas observações feitas a partir da abordagem científica.

O arcabouço conceitual pelo qual procura tornar compreensível a sua genial cosmovisão do universo, da natureza e do homem, impressiona pela coerência. Tudo começa no polo “alfa” que se caracteriza aparentemente por uma grande simplicidade. Este oculta, porém, um potencial indefinido de desdobramentos que vão-se concretizando no decorrer da evolução tanto no plano macro, quanto micro e nano cósmico. O “fenômeno humano nada mais significa do que a antropogênese inserida organicamente, “sistemicamente”, diria von Bertalanffy, nesse processo global. A evolução acontece pela agregação, pela repetição geométrica pela complexificação. Com o acirramento da complexificação acentua-se a “compressão” e com ela os níveis de “consciência” tornam-se cada vez mais perceptíveis e mais atuantes. Se na primeira  fase da evolução predominou a diversificação, na segunda acentua-se gradativamente a compressão, até que tudo seja subsumido num único polo de chegada, o “ômega”. 

Os processos responsáveis por essa dinâmica e seus resultados são explicados e explicáveis pela evolução natural. Há, porém, três momentos nessa história de bilhões de anos em que as coisas se complicam. São, na verdade, situações limite em que qualquer cientista sem preconceitos, pergunta: Meu arsenal metodológico e conceitual está em condições de dar uma resposta que convença, ou devo remeter essa tarefa para uma outra esfera que dispõe dos instrumentos adequados para lidar com o problema? Os três momentos críticos são, como já foi mencionado mais de uma vez:  como originou-se a energia, matéria prima do universo; como surgiu a vida com suas características de sistema aberto que se alimenta, reproduz e locomove-se e, por instinto orientam-se no meio em que vive; como aconteceu a hominização que dotou o cérebro do homem da capacidade de manifestações operações de inteligência reflexa. Não é aqui o lugar para requentar essa questão a nível teórico e genérico. Nosso interesse resume-se  na maneira como Teilhard lidou com o problema. Fiel ao propósito de ocupar-se também com essa problemática intrincada no contexto da evolução natural, não se pode esperar que remeta a solução para algum “deseign inteligente”, ou, o que ninguém estranharia, jesuíta que era, declarar que as Ciências Naturais não têm como dar uma resposta definitiva e, portanto, resta a “criação” como solução. Optou pela saída que qualquer cientista honesto adota, isto é, trabalhar com esse tipo de conclusões como sendo hipóteses e nada mais. É o que ele deixa claro ao introduzir o capítulo primeiro de  “O Fenômeno Humano”, ao qual deu o titulo: “O Estofo do Universo”.

O estofo de universo: esse resíduo último das análises sempre mais minuciosas da Ciência ... Não desenvolvi com esta, para saber descrevê-lo dignamente, aquele contato direto, familiar, que faz a diferença   entre o homem que leu e o homem que experimentou. E sei também do perigo que existe em tomar, como materiais de uma construção que se desejaria duradoura, hipóteses que, na própria mente daqueles que as propõem, não devem durar mais do que uma manhã. 

Em compensação, sob a variedade de teorias que se vão amontoando umas sobre as outras, surge um certo número de caracteres que aparecem obrigatoriamente em qualquer uma das explicações propostas para o universo. E dessa “imposição” definitiva, na medida em que ela exprime condições inerentes a toda a transformação natural, mesmo viva, que deve necessariamente partir e que pode decentemente falar  o naturalista empenhado num estudo geral do Fenômeno Humano. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 41)

É, portanto, ao “estofo” do universo que o autor do Fenômeno Humano atribuiu as potencialidades para que a evolução pudesse acontecer e levar aos incontáveis desdobramentos, inclusive a vida. Fica claro também que, como cientista,  lida com hipóteses que “não duram mais do que uma manhã”. Como cientista não propõe mais uma hipótese sobre a origem e a natureza do “estofo” do universo. Prefere adotar  a linha de raciocínio ditada pelo fato objetivo de que a natureza evolui e se transforma. Trabalha com o pressuposto de que no “estofo” do universo encontram-se em potencial, desde a sua origem, os elementos e os dispositivos que, no decorrer de bilhões de anos de evolução, ao que hoje presenciamos no macrocosmos, no microcosmos e no nanocosmos. No entender de Teilhard essa gigantesca construção, tanto no tamanho quanto na diversidade e complexidade, foi possível porque o “estofo” primordial previa a agregação, a repetição geométrica, a complexificação e a compressão como as ferramentas para realizar a evolução. Na medida em que a compressão acentua a “concentração”, percebe-se com crescente evidência a presença da consciência, que se aperfeiçoa na medida que se acentua a “concentração”. Mas no fundo, no fundo, a trajetória da evolução vai sendo orientada por um plano que permite supor uma razão de ser e não uma mera casualidade. O “alfa” como ponto de partida, a diversificação  e a complexifiação acompanhadas e, finalmente, superadas pela concentração, terminando no ponto “ômega”, levam à conclusão  de que o autor supõe uma teleologia, evitando que a dinâmica se desgarre do caminho. Conforme Teilhard, somente aceitando uma teleologia,  entende-se a evolução em todos os seus níveis. O potencial  contido no ”estofo” do universo materializou-se na complexa realidade que vem a ser o mundo inorgânico, orgânico não vivo. Sua pedra angular é o átomo. Multiplicando-se quantitativa e qualitativamente pela agregação, repetição geométrica, complexificação e compressão, levou ao nível em que, (...) é perfeitamente concebível que um salto essencial seja possível entre dois estados ou formas, mesmo inferiores, de consciência. Para retomar e resolver, nos seus próprios termos, a dúvida anteriormente formulada, há efetivamente, eu direi, muitas maneiras diferentes de um ser possuir um Dentro. Uma superfície fechada, de início irregular, pode-se tornar centrada. Um círculo pode aumentar a sua ordem de simetria tornando-se uma esfera. Quer pela ordenação das partes, quer pela aquisição de uma dimensão a mais, nada impede que o grau de interioridade próprio de um elemento cósmico possa variar ao ponto de se elevar bruscamente a um novo escalão.

Ora que semelhante mutação psíquica deve ter precisamente acompanhado a descoberta da combinação celular, eis que resulta imediatamente da lei que, conforme atrás reconhecemos, regula em suas relações mútuas o Dentro e o Fora das coisas. Acréscimo da matéria: portanto correlativamente diríamos, aumento de consciência no meio sintetizado. Transformação “critica” no arranjo íntimo dos elementos, devemos acrescentar agora: logo, “ipso facto”, mudança de “natureza” no estado de consciência do Universo.

E agora consideremos novamente, à luz destes princípios, o assombroso espetáculo apresentado pela eclosão definitiva da Vida na superfície da Terra Juvenil. Esse ímpeto para a frente na espontaneidade. Esse luxuriante desencadeamento de criações fantásticas. Essa expansão desenfreada. Esse salto no improvável ... Não será aí o acontecimento que a teoria nos permite esperar?. A explosão da energia interna consecutiva e proporcionada a uma superorganização fundamental da Matéria?

Realização externa de um tipo essencialmente novo de agrupamento corpuscular, permitindo a organização mais flexível e melhor centrada de um número ilimitado de substâncias tomadas e em todos os graus de grandeza particulares; e, simultaneamente, aparecimento interno de um novo tipo de atividade e de determinação conscientes: por essa dupla e radical metamorfose podemos razoavelmente definir, naquilo que ela tem de especificamente original, a passagem critica da Molécula para a célula, - “o Passo da Vida”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 91)

A Natureza como Síntese - 18

A Antropogênese. 

Não há dúvida de que a biogênese, o aparecimento da vida com a célula, significou o ponto de partida para, o pressuposto condicionante, para que a evolução avançasse, sem sobressaltos, numa trajetória harmônica em direção ao  “ômega”. Uma vez acontecida a Biogênese, a próxima “estação” de significado crucial nessa jornada cósmica, vem a ser a Antropogênese.  Convém lembrar que não se trata apenas de vencer mais uma etapa importante na complexificação da natureza. A gênese da matéria, a biogênese e a antropogênese podem ser consideradas como sendo os marcos de referência que balizam o rumo da evolução do universo ao encontro do “ômega”, ponto de convergência e, mais do que isso, a própria causa e razão de ser do universo, da natureza e do homem. 

Depois da incursão nos meandros do fenômeno, da gênese e da natureza da vida,   até o ponto em que os conhecimentos científicos o permitem, Teilhard  persegue as pegadas deixadas pela evolução da vida, em busca da realização máxima de que a matéria viva foi capaz: o Homem. Como o foi até aqui, o modelo dinâmico do globo terrestre continua oferecendo  o cenário gráfico sobre o qual se desdobra gradativamente seu raciocínio e formula as suas conclusões. O polo sul, o “Alfa” é o ponto de partida. Desse ponto de partida  evolução gera uma quantidade e, principalmente uma diversidade espantosa de estruturas e formas de organização da matéria, as quais, à maneira dos meridianos vão se abrindo em leque até o máximo na altura do equador. Do equador em direção ao polo norte, voltam a convergir até fundir-se num ponto só, o “Ômega”. O que acontece com universo e a natureza como um todo, repete-se com a vida animal e vegetal em geral, com cada espécie em particular e com o homem também. Acompanhemos  Teilhard na caminhada do homem desde o seu Alfa até  o seu Ômega.

“O homem entrou sem alarde no mundo” (Teilhard de Chardin.1986.  p. 198). Com esta observação Teilhard quer afirmar apenas que a entrada do homem no cenário da natureza, não foi nada de espetacular vista na perspectiva da evolução natural. As descobertas da paleoantropologia que se multiplicaram no decorrer dos últimos cem ou mais anos, apontam para uma trajetória, sob o aspecto anatômico morfológico e filético,  em nada diferente daquela das demais espécies de animais. “Quanto mais a Ciência sonda o passado da  humanidade, mais esta, enquanto espécie, se conforma às regras e ao ritmo que, antes dela, regeram o aparecimento de cada novo rebento na Árvore da Vida” (Teilhard de Chardin. 1986. p. 199). A entrada, a presença e a dispersão dos grupos humanos foi tão discreta ao ponto de sabemos pouco de concreto sobre essa história que seguramente se estendeu por dezenas,  centenas de milhares, quem sabe milhões de anos. Quando os instrumentos de pedra lascada, prova definitiva da sua presença,  representantes da espécie humana, já podiam se localizados em todo o continente africano e por toda a Euro-Ásia até Pequim. 

Para Teilhard, mesmo que a ciência dispusesse ou com o tempo viesse a dispor, dos elementos materiais suficientes para reconstruir a gênese e a trajetória do filo humano na sua ascensão anatômica e morfológica, em detalhes e sem saltos e lacunas, a questão realmente de fundo que envolve o homem, continua em aberto. O tamanho do desafio fica claro na seguinte observação.

Para apreender a amplitude verdadeiramente cósmica do fenômeno, seria necessário que seguíssemos suas raízes, através da vida, ate os primeiros envolvimentos  da terra sobre si mesma. Mas se quisermos compreender a natureza específica e adivinhar o segredo do Homem, outro método não há senão observar o que a Reflexão já deu, e o que ela anuncia, para diante. (Teilhard de Chardin. 1986.  p. 202).

Antes de sinalizar para uma resposta que ele, como jesuíta e como tal versado em Filosofia e Teologia, necessariamente irá remeter a esse nível, Teilhard esgotou todas as aproximações pelo lado ciência de que dispunha. Acompanhou passo a passo a trajetória da espécie humana, desde o momento em que testemunhos materiais não deixam dúvidas sobre a sua presença no cenário da vida. No final do plioceno, última fase do terciário, a superfície da terra moderna recebeu seus acabamentos  definitivos com  grandes depósitos de areia, argila e aluvião. Nessa paisagem  reinavam mastodontes, cavalos primitivos, tigres dente-de-sabre e nos oceanos uma fauna  semelhante à atual. Até aquele momento não há vestígios da presença do homem. Mas é no começo e durante a maior parte do quaternário com a instalação de um clima mais frio e mais úmido, caracterizado por períodos de expansão do gelo sobre vastas áreas continentais  (glaciações), intercalados por  períodos de degelo (interglaciais), acompanhadas com a formação de morainas, deposição de areias glaciais, transporte de blocos erráticos, formação de depósitos de loess e pântanos de turfa, o cenário natural para receber o homem está completo. Povoam esse cenário manadas de mamutes, rinocerontes, renas, ursos das cavernas, alces gigantes e representantes de todas as espécies de animais e vegetais contemporâneas ao homem. 

“E o homem entrou no mundo sem alarde”. ( ... ) Quanto mais se multiplicam  os achados fósseis humanos, quanto mais se esclarecem seus caracteres anatômicos e sua sucessão geológica, - mais evidente se torna, por uma convergência incessante de todos os indícios e de todas as provas, que a “espécie” humana, por única que seja a razão do plano entitativo a que a  ergueu a Reflexão, nada abalou a Natureza no momento de seu aparecimento. Com efeito, quer a observemos no seu ambiente, - quer a consideremos na morfologia de sua haste, - quer a inspecionemos na estrutura global do seu grupo, ele emerge fileticamente aos nossos olhos exatamente como qualquer outra espécie. (O Fenômeno Humano,Teilhard de Chardin. 1986.  p. 198)

Em algum momento no final do Plioceno, final do Terciário ou inícios do Quaternário, provavelmente em alguma savana da África, cintilou pela primeira vez a centelha da Reflexão. Antes e durante as mudanças geomorfológicas ocorridas durante o Plioceno, não há vestígios materiais confiáveis atestando a presença do homem. Por via indireta conclui-se por ela pois, quando termina a acomodação dos terrenos aparecem entre os depósitos de aluvião, areia e cascalhos, os testemunhos fósseis do Homem de Java e do Sinântropo da China. O número e a variedade de peças permite hoje um estudo comparativo bastante confiável entre esses dois grupos humanos da Ásia Oriental. Por si só essas peças paleoantropológicas não provariam definitivamente a presença do homem, se não viessem associadas a artefatos de pedra lascada, localizados em toda a África e  Europa Ocidental até a Ásia Meridional. Diante dessa realidade dois fatos complementares merecem observação. Primeiro. Admitindo a convicção de Teilhard, assim como da maioria dos paleoantropólogos,  de que a espécie humana é monofilética, isto é, descende de um único tronco inicial do qual evoluíram os tipos raciais morfológicos já extintos e ainda hoje espalhados pelo mundo, o homem surgiu em algum ponto geográfico definido. Pelo que os dados apontam esse acontecimento situa-se na África. Segundo. Partindo do pressuposto de que os instrumentos de pedra lascada são prova conclusiva da presença da Reflexão ou, se quisermos da Inteligência Reflexa, conclui-se necessariamente que a história do homem recua em muitos milênios sobre os quais temos informações tão escassas, que as conclusões permanecem no terreno da especulação ou da hipótese. Uma coisa parece certa. Para que a humanidade se espalhasse por tão vastas áreas foram necessários, nas condições de então, períodos contados em milênios, em dezenas de milênios e, provavelmente em centenas de milênios. Pois bem. Mas não é exatamente isto que nos preocupa neste momento. De fato em última análise pouco ou nada importa a aparência externa  que caracterizou o homem nos diversos estágios da sua ascensão evolutiva. Se há provas que o Sinântropo, o Homem de Java, o Homem de Trinil, o Homem de Heidelberg ou o Homem de Neandertal, foram portadores de Inteligência Reflexa, então foram igualmente humanos como o Homo Sapiens de hoje, apesar de suas aparências mais ou menos teromorfas ou simiescas. 

O enorme  e complicado desafio, de como harmonizar a visão do humanismo cristão tradicional com os conhecimentos  científicos, que conferem uma compreensão cada vez mais real e pragmática ao  mundo que nos cerca.  foi explicitado por Teilhard nas páginas do “Fenômeno Humano” e em “O Lugar do Homem na Natureza” Como cientista avança até esgotar o potenciais teóricos, metodológicos e experimentais que a ciência oferece, para explicar o “Fenômeno Humano”. Com a entrada da “Noosfera”, algo de inédito a um nível muito mais profundo do que com a entrada da “Biosfera”, dá um impulso novo a toda a natureza. Nada daquilo que preparou o caminho para o fato absolutamente novo, inusitado e inédito, foi superado. A energia primordial, os átomos, as moléculas, as macromoléculas e as mega moléculas, as células, os protozoários e os metazoários em todos os níveis de evolução, em todas as suas formas e desdobramentos evolutivos, continuam como sempre foram. A “consciência” cósmica continua presente em toda a parte, “desenrola-se”, na terminologia de Teilhard, explicita-se e dita o rumo dos acontecimentos e garante a sobrevivência instintiva dos animais. Com a entrada em cena da Reflexão, da Inteligência Reflexa aconteceu um salto de qualidade como jamais houve antes. Inaugurou o predomínio da Noosfera. O homem como o animal sabe, mas distancia-se radicalmente desse nível pela capacidade de Reflexão, a capacidade de ser capaz de saber o “porque” do seu saber”. Essa formulação oculta o abismo que separa o saber instintivo do saber reflexo ou racional. A Reflexão permite ao homem analisar, distinguir, ponderar, avaliar, escolher e optar por  caminhos, soluções e vias alternativas para  enfrentar as situações concretas mais variadas. 

Fica claro que tentar entender o leque sem fim de potencialidades implícitas que acompanham a chegada da Noosfera, exige o recurso a um instrumental  de outra natureza daquela que a Ciência oferece com seus métodos e aparatos. Depois de aperceber-se que já não tinha nada a esperar, via Ciência, para avançar na compreensão dos mistérios mais intrigantes do “Fenômeno Humano”, tanto no final do livro “O lugar do Homem na Natureza” quanto do “Fenômeno Humano”, Teilhard, segundo seu grande admirador e comentador Jean Piveteau, da Academia Francesa de Ciências, observou:

Na última parte da obra, o Padre Teilhard de Chardin parecerá mais filósofo que homem de ciência, e muitos dos que admiraram o paleontólogo na sua interpretação da evolução do mundo vivo, sentirão alguma dificuldade em acompanhar o autor nas suas previsões. Mas a todos sensibilizará o pensamento lúcido e firme e a autoridade intelectual de um dos maiores espíritos do nosso tempo. (Teilhard de Chardin. 1956.  p. 11)

O raciocínio que leva Teilhard ao projetar o futuro do “Fenômeno Humano” ou a evolução da “Noosfera” como uma realidade perfeitamente integrada na evolução universal, pode até ser  mais difícil de ser acompanhado, mas não deixa de ser “lúcido e firme” e, sobretudo coerente com a “Complexidade – Consciência” que serve de eixo e guia a toda esta obra”. (Teilhard de Chardin. 1956. 124). 

A Natureza como Síntese - 17

A compreensão da natureza íntima da célula coloca-nos frente a um desafio semelhante ao da energia do qual nos acabamos de ocupar. Os  elementos químicos, o arranjo estrutural, as múltiplas funções e as leis que comandam os processos intracelulares, são em grande parte do domínio da ciência. A questão realmente de fundo permanece na sombra e desafia os cientistas que se ocupam com seriedade em elucidá-la. Neste particular a pergunta-chave é: Se a célula é de fato um ser vivo, o que vem a ser a Vida?. Teilhard de Chardin faz um esforço enorme como cientista para aproximar-se da resposta pelo lado da ciência. Para ele o aparecimento da célula é algo de novo, de muito novo quando começou a  fazer parte do cenário da terra em evolução. 

É com os inícios da Vida organizada, ou seja, com o aparecimento da Célula, que concordamos  habitualmente em fazer “começar” a vida psíquica no Mundo. Coincide, pois, aqui com as perspectivas e  maneira de falar usuais, ao situar nesse estádio particular da Evolução um passo decisivo nos progressos da Consciência sobre a Terra. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 90)

Teilhard  faz um grande esforço para aproximar-se da explicação do que, em última análise, vem a ser aquele “Novum”, que chamamos de vida, que começou  a manifestar-se quando a “complexiificação ultrapassou o nível megamolecular. Partiu da constatação que ocorreu uma “revolução externa” responsável pela construção do edifício molecular. Essa revolução externa conta na sua base com os elementos químicos que entram na edificação do edifício da natureza, tanto inorgânica quanto orgânica: oxigênio, nitrogênio, hidrogênio e carbono, somados a outros vinte e tantos elementos como cálcio, ferro, fósforo, iodo, cobalto, potássio, sódio, magnésio, metais diversos, etc.,  de alguma forma participantes nos diversos processos e funções celulares específicas. Combinações e recombinações desses elementos, levam pela “complexificação” ascendente, à formação de moléculas inorgânicas, mais  adiante orgânicas mais simples, para passar pelas macromoléculas, megamoléculas e, finalmente, a célula. Morfologicamente  falando a célula apresenta duas partes distintas: o citoplasma e o núcleo. Na sua composição entram aminoácidos de enormes pesos moleculares, lipídios, carboidratos, sais minerais, ... Tudo forma o protoplasma com aparência esponjosa. Nele atuam os processos de osmose, viscosidade, de catalise e de outras mais. E no interior destaca-se o núcleo contendo  os cromossomos que por sua vez abrigam o genoma. Resumindo pode-se afirmar com Teilhard: “Um triunfo da multiplicidade organicamente concentrada num mínimo de espaço”. (Teilhard de Chardin. 1986.  p. 89)

“A revolução interna” que levou a matéria a combinar-se  e a recombinar-se dando origem à célula não chegou a lançar dúvidas sobre a  “fixidez” que constitui o elemento chave que garante a unidade da natureza. Os  elementos químicos universais, aos quais  se fez referência mais acima, continuam formando a base do anorgânico, orgânico não vivo e do orgânico vivo, exatamente com se ensinou desde os primórdios da química como ciência sistematizada. De outra parte as células são essencialmente idênticas entre si, estrutural e funcionalmente,  entre os protozoários e os metazoários em qualquer organismo, independente da complexidade anatômica e estrutural.  A identidade celular, que aqui chamamos de “fixidez” é, ao mesmo tempo, estrutural e funcional. Tanto faz se observamos a célula que forma o protozoário ou alguma célula fazendo parte de um órgão, de algum animal superior. Em ambos os casos as funções vitais, o processamento dos nutrientes, a sua assimilação, incorporação, oxidação e a eliminação dos resíduos é igual. Qualquer célula, em qualquer situação é idêntica a todas as demais e a si mesma, na estrutura, nas funções que nela acontecem, na condição de funcionar como um sistema de equilíbrio instável. E o espetacular é que todas de alguma maneira manifestam “vida”, à sua maneira em cada nível. Nos protozoários todas funções vitais acontecem numa e na mesma célula. Nos metazoários as funções específicas acontecem em células especializadas e em tecidos e órgãos também específicos. Mas é importante não esquecer que o mais complexo dos organismos vivos ou teve, ou tem o seu ponto de partida numa única célula embrionária que naquele estágio inicial se encarrega de todas as funções exatamente como acontece no protozoário. E não se esqueça ainda de que os estudos sobre as células-tronco já nos permitem afirmar que qualquer célula adulta, não  perdeu o potencial da embrionária que possibilitou indiretamente a sua origem dentro de organismo superior.

A “revolução externa” pela “complexificação” e pela “fixidez” constituiu-se, sem dúvida, no pressuposto material e estrutural para que o outro processo, o da “revolução interna”, pudesse acontecer. Firmou-se o consenso entre os cientistas de que a vida manifestou-se pela primeira vez na história da terra numa célula, como há consenso também que a vida em todos os níveis tem a sua base nas células. Nelas acontecem os processos de natureza físico-química que permitem a manifestação da vida, ou concentrados numa única célula como nos protozoários ou seletivamente nos órgãos especializados dos metazoários.  A questão de fundo que a essa altura se coloca, é: De que natureza foi, em última análise, essa “revolução interna?” Teilhard esforça-se por manter-se coerente com a sua visão unitária do universo e da natureza. Tudo começou num ponto de partida – o Alfa. A partir dele por processos conhecidos e, principalmente, ignorados até agora, formaram-se os elementos estruturais da natureza constantes na “tábua periódica” e, provavelmente, outros ainda por descobrir. A “complexificação” ascendente completada com o contributo auxiliar  ou não da “agregação e ou repetição, prepara o cenário, no qual vão-se definindo, de forma progressiva e cada vez mais nítida, evidências de algo imanente no interior da matéria na medida em que ela se  complexifica.  A imanência que se refere a uma “interioridade”, a uma “consciência” em vias de explicitação,  que se torna mais evidente na razão direta em que a matéria evolui para patamares cada vez mais complexos, coloca o cientista e, porque não o filósofo, diante de um desafio de bom tamanho. Definir a relação causal entre esse “algo imanente” e a maior ou menor complexidade estrutural na qual se manifesta. Teilhard dimensionou o desafio quando escreveu: 

Nesse ponto, confesso, é difícil ser claro.  Mais adiante, no caso do Pensamento, uma definição psíquica  do “ponto critico humano” revelar-se-á de pronto possível, porque o Passo da Reflexão carrega em si algo de definitivo, e também porque, para avaliá-lo, temos senão que ler no fundo de nós mesmos. No caso da célula, pelo contrário, comparada  aos seres que a precedem, a introspecção só pode nos guiar por analogias repetidas e longínquas. Que sabemos nós da “alma” dos animais, mesmo dos mais próximos de nós? A tais distâncias para trás, temos que nos resignar com o vago em nossas especulações. 

Nessas condições de obscuridade e nessa margem de aproximação, três constatações  são ao menos possíveis,  - suficientes para  fixar de um modo útil e coerente a posição do “despertar da célula” na série de transformações  psíquicas que preparam sobre a terra o aparecimento do fenômeno humano. “Mesmo” e, acrescentarei “sobretudo” nas perspectivas aqui admitidas, a saber  que uma espécie de consciência sobretudo precede a eclosão da Vida, um tal despertar ou salto 1) pode ,  - ou melhor 2) deve ter-se produzido; e assim 3) acha-se parcialmente  explicada uma das mais extraordinárias renovações  historicamente experimentadas pela face da terra. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 90)

Nas entrelinhas do texto citado fica claro que Teilhard faz um esforço fora do comum para encontrar uma resposta coerente e aceitável à pergunta que formulamos, a respeito da relação causal entre a complexidade estrutural da célula e a gênese da imanência, da interioridade, da consciência. Sua intenção e seu esforço em aproximar-se da explicação pelo viés científico não deixa dúvidas. Aliás essa opção é coerente com a opção metodológica que orienta as abordagens do “Fenômeno Humano” em toda a sua extensão. De outra parte não consegue mascarar de todo a sua condição de filósofo, teólogo e jesuíta que, com certeza, o lembram consciente ou inconscientemente dos compromissos com a fé, a doutrina e os princípios filosóficos que pautaram a sua vida como religioso. Essa situação faz com que  se esforce e se demore na apresentação de dados, invocar processos,  tirar conclusões e, principalmente, criar um corpo conceitual muito seu para dar coerência, solidez e confiabilidade à sua cosmovisão. Às voltas com a dificuldade de formular uma resposta pelo caminho da ciência sobre a verdadeira natureza do passo  que aconteceu na transição do não vivo para o vivo, ele se pergunta:

E agora consideremos novamente, à luz destes princípios, o assombroso espetáculo apresentado pela eclosão  definitiva da Vida na superfície da Terra Juvenil. Esse ímpeto para frente na espontaneidade. Esse luxuriante desencadeamento de criações fantasistas. Essa  expansão desenfreada. Esse salto no improvável ... Não está exatamente aí o acontecimento que a teoria nos permite esperar? A explosão de energia interna consecutiva e proporcionada a uma super-organização fundamental da Matéria? (Teilhard de Chardin. 1986.  p. 91)

Continuando, formula a resposta  para a manifestação da Vida na “super-organização fundamental da Matéria, a qual, entretanto, deixou em aberto a questão crucial: qual a causa última responsável  pelo surgimento da vida na célula? “( ... ) Por essa dupla e radical metamorfose  podemos razoavelmente  definir, naquilo que ela tem de especificamente original, a passagem  da Molécula para a Célula, - o Passo da Vida”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 91). A  explicação que lança uma luz sobre a aparente resistência em formular a resposta à pergunta que vai-se se tornando cada vez mais insistente na medida em que se avança no exame tanto do “Fenômeno Humano” quanto no “O Lugar do Homem na Natureza”, data de um documento escrito em Pequim em fevereiro de 1942. 

1. “Como foi explicado no Prefácio, este trabalho não é um livro de religião, nem mesmo de filosofia. Rigorosamente escrito como uma memória  de geologia ou de paleontologia, ele representa, no meu pensamento, uma contribuição científica para o uso da Ciência: um esforço para ordenar melhor o nosso conhecimento físico do Mundo, abrindo ao Homem um lugar coerente até o fim, na Biologia.
2. Por conseguinte, que ninguém se espante se nestas páginas, limitadas (é sua força) ao estudo de um “fenômeno”, não aparecem quaisquer considerações sobre a natureza ontológica do espírito e da matéria, nem qualquer menção das verdades reveladas (Queda, Encarnação, Criação) ...,) Essas verdades não são nem negadas nem esquecidas, não teriam o seu lugar nem lógico, nem psicológico. 

3. Essa omissão, ademais, é só aparente. Se (em conformidade aos ensinamentos do concílio do Vaticano) eu chego, seguindo o caminho racional e científico, apenas a uma “demonstração” aproximada da existência de um Deus pessoal, tenho pelo menos uma certa confiança que as perspectivas desenvolvidas no livro formam um quadro e transmitem uma atmosfera favoráveis que predispõem os espíritos a esperar e reconhecer uma Revelação. (Teilhard de Chardin. 1986.  p. 376) 

A Natureza como Síntese - 16

A Biogênese. 

No esquema Teilhardiano a “Energia” é a terceira  face da Matéria. A Matéria mostra uma dimensão plural, uma dimensão  de “unidade homogênea” e uma dimensão de energia. Para a física a Energia consiste na capacidade de ação ou interação. Ela representa, portanto, o fluxo entre um átomo e outro, no decorrer do processo de intercâmbio entre eles. Cabe-lhe a função de interligar e, ao mesmo tempo, como nesse fluxo o átomo, de um lado se empobrece e, do outro, é enriquecido, cabe-lhe também a função de construção. E o resultado desse processo de construção, cujo motor vem a ser a energia, em que à complexificação cabe a responsabilidade principal e à agregação e a incorporação o papel complementar, sucedem-se os passos do átomo à molécula, da molécula a macro-molécula, da macro-molécula a megamolécula, da megamolécula a célula.  E chegado a este nível da evolução ou da complexificação da matéria,  aconteceu “o passo da vida”, o passo do inanimado para o animado, do orgânico para o vivo. 

Materialmente, olhando de fora, o melhor que podemos dizer neste momento é que a vida  propriamente começa na célula. Quanto mais a ciência concentra, desde há já um século, seus esforços sobre essa unidade, quimicamente e estruturalmente ultra-complexa, mais evidente se torna que nela se dissimula o segredo  cujo conhecimento estabeleceria a ligação, pressentida mas não realizada ainda, entre os dois mundos da Física e da Biologia. A célula, grão natural da vida, assim como o átomo é o grão natural da Matéria inorganizada. É certamente a célula que temos de tentar compreender se quisermos avaliar em que consiste especificamente o Passo da Vida. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 84).

É neste ponto que a ciência se vê às voltas com o mesmo desafio, quem sabe bem maior ainda daquele que lhe é posto pela pergunta: Como se originou a Energia, presumidamente a realidade que explica  a existência  do universo e dos processos que lhe deram forma. Os estudos sobre a célula renderam até o momento um volume enorme de publicações em todos os níveis. 

Bibliotecas especializadas inteiras já não são suficientes para conter as observações acumuladas sobre a sua textura, sobre as funções relativas do seu “citoplasma” e do seu núcleo, sobre o mecanismo da sua divisão, sobre as suas relações com a hereditariedade. E, no entanto, considerada em si mesma, ela continua aos nossos olhos exatamente tão enigmática, exatamente tão fechada como sempre. É como se, tendo chegado a certa profundidade de explicação, girássemos, sem avançar mais, em torno de algum impenetrável reduto. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 84-85)

Nos mais de sessenta anos que se passaram desde o momento em que Teilhard de Chardin escreveu essa observação, a incursão para dentro do âmago da célula avançaram de modo significativo. Os conhecimentos sobre os componentes químicos que formam a célula, os processos e as inter-relações  que neles acontecem, ampliaram em muito o conhecimento sobre a sua morfologia, sua química e  funcionamento. Lembramos apenas até que ponto avançaram os conhecimentos consolidados no campo da genética. O genoma, o centro do interesse nessas pesquisas, parece esconder pouco da sua natureza físico-química e do papel que lhe cabe no complexo campo da hereditariedade. Um a um os genomas das mais diferentes espécies vão sendo mapeados, permitindo a intromissão e interferência no comportamento e na transmissão de caracteres, tanto desejáveis quanto indesejáveis. O mapa genético do homem disponível há vários anos, abriu as portas para o controle ou  cura de males hereditários, para prevenir a propagação de caracteres negativos e favorecer positivos. Por mais que se possa sonhar em penetrar nos recessos últimos da célula, uma coisa parece certa. Para os métodos e  meios da ciência empírica há um limite. E mesmo olhando do viés das Ciências,  teremos dado conta apenas da metade do problema. Na busca de uma compreensão do que de fato conta no estudo da célula encontra-se na resposta à pergunta: de que natureza é o algo a mais que distingue uma célula de uma megamolécula? Parece difícil que a resposta nos possa ser dada pelo desvendar nos últimos recessos da sua estrutura e do seu funcionamento.  E o que fazer então quando os  métodos histológicos e fisiológicos de análise já nos  tiverem dado o que podiam?  A esta altura é importante não perder de vista  que a abordagem da célula até aqui tentada, ateve-se ao viés biológico.  A célula costuma ser vista como um “micro-organismo” ou um “broto-vivo” que importava ser entendido a partir de suas “formas e associações mais elevadas”. 

Ora, assim procedendo, deixamos pura e simplesmente na sombra a metade do problema. Como um planeta no seu quarto-crescente, o objeto de nossas pesquisa iluminou-se na face voltada para os cumes da vida. Mas, nas camadas inferiores do que chamamos Pré-Vida, ele continua a flutuar na noite. Eis provavelmente  o que, cientificamente falando, prolonga  indevidamente para nós o seu mistério. Exatamente  como qualquer outra coisa no Mundo, a célula, por mais maravilhosa que nos pareça em seu isolamento entre outras construções da Matéria, não poderia  ser “compreendida” (isto é, incorporada num sistema coerente  do Universo) senão recolocada entre um Futuro e um Passado, numa linha de evolução. 

Ocupamo-nos demais de suas diferenciações, de seu desenvolvimento. É sobre  as suas origens, isto é, sobre as raízes que ela mergulha no inorganizado, que convém agora fazer convergir nossas pesquisas, se quisermos atingir a verdadeira essência de sua novidade.

Em oposição o que a experiência nos ensina em todos os outros domínios, habituamo-nos ou resignamo-nos demais a conceber a célula como um objeto sem antecedentes. Procuremos ver o que ela vem a ser, se a olharmos e a tratarmos, devidamente, como um coisa  ao mesmo tempo longamente preparada e profundamente  original, isto é, como uma coisa nascida.  (Teilhard de Chardin. 1986. p. 85)

Em seguida Teilhard  procura explicar “o longamente preparado e o profundamente  original, isto é, a coisa nascida”. Os dados obtidos pelas pesquisas nos diversos campos da História Natural, deixam claro que há uma combinação orgânica entre as dimensões de tempo e espaço.  A dispersão no espaço  tem uma relação direta com a duração temporal. Em outras palavras. Toda a dispersão espacial acontece numa duração temporal compatível. O mesmo se pode afirmar da diversificação morfológica. Quanto mais diversificada e mais profunda ela for tanto mais tempo se requer. E no caso da célula não há o que discutir sobre a  profundidade e a extensão da “complexificação” que precedeu e acompanhou a sua gênese. Colocando o processo numa perspectiva evolucionista, conclui-se que o tempo necessário no caso da célula, cobre centenas de milhões para não dizer bilhões de anos. Convém lembrar mais uma vez que em espaços de tempo tão descomunais, que desafiam seriamente a nossa capacidade de avaliá-los no seu significado, os passos sucessivos que levaram a “complexificação” a resultar na célula, apagaram-se sem deixar vestígio. Sobra-nos avaliá-los ou imaginá-los, ou por analogia com que pode ser observado na natureza de hoje, ou tentar uma aproximação  filosófica, examinando a pertinência de introduzir na discussão questões e conceitos como “causalidade suficiente” e outras mais. 
Se de um lado o caminho percorrido pela evolução cobre períodos e eras que escapam à nossa capacidade de apreensão do tempo e, ao mesmo tempo, apagaram os vestígios materiais do processo, a célula apresenta duas características notórias como resultado histórico do passado ignoto e obscuro. A arquitetura da célula “é complexa” e, ao mesmo tempo “é fixa”. A análise química da célula revela que na sua estrutura entram albuminas, aminoácidos, lipídios, água, fósforo e sais minerais, com destaque para o potássio, o sódio, magnésio e outros. Esse conjunto de elementos forma a base do protoplasma. Nele a viscosidade, a osmose, a catálise e outras forças agem e interagem, demonstrando que a matéria alcançou um estágio superior de organização molecular. Mas a coisa não para por aí. No âmago, no centro, destaca-se, na imensa maioria dos casos um núcleo que encerra os cromossomos, os mitocôndrios e outras estruturas que vão sendo identificadas na medida em que os microscópios e outros meios de observação permitem penetrar cada vez nas entranhas da célula e suas subestruturas. Teilhard  conclui suas observações sobre a complexidade da célula com as palavras: “Um triunfo da multiplicidade organicamente concentrada num mínimo de espaço”. (cfr. Teilhard de Chardin. 1986.  p. 89).

A complexidade da célula vem complementada pela fixidez. Uma observação menos atenta corre o risco de não perceber que na imensa diversidade e pluralidade das formas que a natureza oferece, na sua essência a natureza da célula sempre permanece a mesma. Na sua complexidade e na sua fixidez  a célula coloca o observador diante de um dilema. Por analogia ela se enquadra no mundo dos seres vivos ou no mundo dos não vivos. Ou quem sabe  representa na arquitetura terrestre um estágio específico, uma forma particular dentre as outras? Diante dessa interrogação Teilhard faz  a seguinte reflexão:

Diante dela o nosso pensamento  hesita em lhe procurar analogias no mundo do “animado” ou no mundo do “inanimado”. Não se parecem  as Células  entre si  como moléculas, mais do que como animais? ... Consideramo-las  legitimamente como as primeiras  das formas vivas. Mas não seria também  justamente  verdadeiro considerá-las  como representando um outro estado da Matéria: algo também tão original, em sua ordem, quanto o eletrônico, o atômico, o cristalino ou o polímero. Um tipo de material, para um novo andar  do Universo? A célula, simultaneamente, tão una, tão uniforme e tão complicada, é em suma o Estofo do Universo que reaparece com todos os seus caracteres, - mas desta vez elevado a um escalão ulterior de complexidade e, por conseguinte, ao mesmo tempo (se é válida a hipótese que nos guia ao longo destas páginas), a um grau superior de  interioridade, quer dizer de consciência. (Teilhard de Chardin. 1986 p. 89-90)

A interioridade ou a consciência no sentido mais genérico de Teilhard, intensifica-se, torna-se mais consistente e, por isso mesmo aperfeiçoa-se na razão direta da complexificação das estruturas. Cada passo adiante na complexificação vem acompanhado de uma interioridade ou consciência mais apurada. Na medida em que a interioridade por assim dizer se condensa e, consequentemente a consciência se apura, potencialidades novas e qualitativamente superiores se manifestam. E acontecem momentos nesse processo em que a complexificação resulta em saltos que chegam a desafiar a lógica dos acontecimentos rotineiros. O primeiro desses momentos situa-se exatamente no “marco zero” do universo. O consenso admite que a matéria prima do universo  é a energia. Parte-se assim de uma realidade dada. A ciência foi capaz de identificar, catalogar, calcular e descrever os potenciais da energia e, a partir desses dados objetivos propor explicações para a estrutura e o funcionamento do universo. O que fica em aberto é uma resposta convincente sobre a origem da energia. Supondo que a ciência localize dados objetivos que, na verdade, se trata de um estágio mais avançado de alguma realidade material ainda desconhecida, nada mais acontece do que deslocar a resposta para um outro nível e um outro momento cronológico. De qualquer forma ficamos à espera de uma resposta convincente que até agora não foi dada.  

A Natureza como Síntese - 15

O “êxito prodigioso” só pode ser a vida. Simultaneamente com a gênese estrutural da célula, ou quando esta já se completara, pouco importa, aconteceu a Biogênese, a travessia do “Rubicão” que separa a não vida da vida. Na história do Universo registraram-se apenas outros dois momentos de tamanho significado: a origem da Energia, a matéria prima de tudo quanto existe e a Antropogênese. A pergunta pela origem da Energia, a origem da vida (a biogênese) e a origem do homem (a antropogênese), carece de uma resposta radical, definitiva e convincente.  Desafiam a Ciência, a Filosofia e a Teologia para oferecê-la. Pelo que tudo indica nenhum dos campos do conhecimento está em condições de, “a priori”, oferecer um resposta conclusiva. Tanto assim que o próprio Teilhard indica duas vias explicativas possíveis para a questão na sua obra “O lugar do homem na natureza”.

A primeira. Pela via “materialista” num automatismo sui generis de seleção natural, impelindo a Matéria a enredar-se e a rolar cada vez mais depressa, como uma bola de neve, pelas ravinas de uma complexidade sempre crescente. A segunda. Pela via “espiritualista” procurá-la numa expansão de consciência, tendendo à consciência, invencivelmente, a acabar-se  até o fim, mas só o podendo conseguir na condição de criativamente arrumar, ou seja, centrar cada vez mais a matéria à sua volta?  Nunca como na primeira explicação, cada vez mais consciência no Mundo, porque cada vez mais complexidade (fortuitamente realizada; mas cada vez mais complexidade (preparada), porque cada vez  mais consciência (gradativamente emergida.  (Teilhard de Chardin. 1956. p. 43-44)

Como não podia deixar de ser, Teilhard prepara o caminho  para a solução do impasse em direção à “via espiritualista”. Fique claro que ele, como não podia deixar se ser, pois, aborda o problema como cientista, não se utiliza do conceito teológico da criação, ou “causa suficiente”, por sua vez um conceito filosófico, mas se vale  de conceitos compatíveis com a linguagem científica. A organização, a evolução da matéria a partir dos estágios mais simples até os altamente  estruturados e organizados, encontrou na “complexificação” a sua explicação. As construções cada vez mais complexas que terminaram na célula viva, não resultaram do encontro de um número crescente de elementos  que se somam e agregam. Contam como dinâmica formadora da integração, da complementariedade, do interagir de átomos, moléculas e macromoléculas. Anima o processo todo a “consciência” que estimula a matéria em busca de uma complexificação crescente e esta, por sua vez, permite que a consciência possa manifestar-se, também em plenitude sempre maior: “Cada vez mais complexidade (preparada), porque cada vez mais consciência (gradualmente emergida”).  Fica claro, portanto, que o caminho que culminou na célula e na vida, ou possibilitou a vida na célula, coube à consciência que imprimiu ritmo e rumo à matéria que compõe o Universo. 

Já que o conceito “consciência” é de tamanha importância para Teilhard, requer-se  uma compreensão clara do que ele fala. O tradutor e comentador de “O Fenômeno Humano” José Luiz Archanjo, explica numa nota o conceito:

Consciência, enquanto fenômeno, isto é, enquanto manifestação evidente da interioridade, de dentro, designa, para Teilhard, qualquer forma de psiquismo, desde a mais diluída e elementar (os tatismos dos unicelulares, por exemplo) até a mais concentrada e complexa (a reflexão humana); a consciência reflexiva. O termo é, pois, voluntária e intencionalmente generalizado por Teilhard. (Teilhard de Chardin.  1986. p. 67)

A justificativa, ou melhor a compreensão  do significado e a importância do conceito de “consciência” torna-se por assim dizer, o elemento-chave para entender o universo de Teilhard. A matéria que o compõe caracteriza-se  pela pluralidade, pela unidade e pela energia.

Que o universo como um todo e as partes que o compõem é plural, até a observação do homem comum percebe. Os minerais são múltiplos, os biontes são múltiplos, os vegetais são múltiplos, múltiplos são os animais e múltiplo é o próprio homem. Essa multiplicidade, entretanto, na base do universo, agrega-se em  unidades cada vez maiores e mais complexas. Ficando com a conceituação de Teilhard, pode-se imaginar essa arquitetura na escala ascendente em busca de uma unidade superior, percorrendo o caminho da “complexificação”, complementada pela “agregação” e a “incorporação”. Uma duna de areia é formada por bilhões de grãos de areia que se acumulam por simples agregação, assim como uma pilha de tijolos ou uma montanha de grãos de cereais. Um cristal cresce pela incorporação na sua rede de sempre mais moléculas da mesma natureza química. No organismo vivo a evolução dá-se por “complexificação. Não se exclui na sua gênese, nem a agregação, nem a incorporação, mas como mecanismos complementares e auxiliares. A agregação e a incorporação que foram suficientes para entender  a formação de uma duna de areia, ou o “crescimento” de um cristal, já não o são para entender a natureza do processo que deu origem à célula viva, à planta superior, o animal e, muito menos o homem. 

Para melhor entender a natureza do processo da complexificação na natureza, faz-se necessário observar o que acontece a nível atômico e mesmo subatômico. A clivagem da matéria até onde os métodos empíricos de hoje o permitem, leva ao átomo com sua estrutura submicroscópica. O mistério da sua estrutura  e dos seus potenciais energéticos parecem revelados pela ciência, ao menos em linhas gerais. O observador apressado corre o risco de achar que não está longe o dia em que já não haverá mais o que descobrir. E, com isso, o homem terá em mãos  a chave para controlar e disciplinar em seu favor as forças básicas que regem o universo.

Não é esta a conclusão a que chega Teilhard. O átomo ou as partículas subatômicas, por mais identificadas e identificáveis que possam parecer, mostram uma outra dimensão. Sua identidade física e química representa apenas a metade da verdade, a verdade mensurável, a metade dissecável, a metade passível de clivagem. A outra metade aponta para o que o átomo, a molécula tem algo de co extensivo ao menos potencialmente. Teilhard fala em “estranha propriedade que reencontraremos mais adiante até na molécula humana”. (Teilhard de Chardin.  1986. p. 42). E numa tentativa de tornar inteligível o seu raciocínio propôs a saída, valendo-se do conceito de “unidade coletiva”, entendendo-a como:

Os inumeráveis focos que partilham entre si um dado volume de matéria nem por isso são independentes uns dos outros. Algo os religa  mutuamente, algo que os torna solidários. Longe de se comportar como um receptáculo inerte, o espaço preenchido por sua multidão age sobre ela à maneira de um meio ativo de direção e transmissão, no seio do qual sua pluralidade se organiza. Simplesmente adicionados ou justapostos, os átomos não constituem ainda a Matéria. Engloba-os e cimenta-os uma misteriosa identidade contra a qual o nosso espírito se choca sendo, porém, finalmente forçado a ceder. A esfera acima dos centros e envolvimentos.  (Teilhard de Chardin. 1986. p. 42-43).

Em todos os passos ascendentes da evolução  da Matéria, até culminar na Antropogênese e, porque não, mais acima e além, essa propriedade misteriosa desafia a curiosidade do observador. O que leva o encontro de átomos a formar  uma molécula? A composição de moléculas uma célula, um bionte unicelular? Protozoários formar metazoários, metazoários animais e vegetais, animais símios?, símios em antropóides? e, finalmente, antropóides em humanos? Orientando a questão numa outra direção e, recorrendo a uma analogia, parece legítimo formular perguntas como: O que faz com que um conjunto de solos, situações climáticas, microorganismos, ervas, arbustos e árvores, formem uma floresta? O que há a mais numa sociedade de formigas e sua associação simbiótica com  acarídios ?. O que faz com que uma unidade ecológica  associe plantas, insetos, pássaros, animais, solos e microorganismos, num sistema, semelhante a um organismo? O princípio comum e inicial no qual é preciso procurar as respostas para as perguntas formuladas acima é, segundo Teilhard, a “Energia”.