São fundamentais para Teilhard os conceitos de “alfa” e “ômega” emprestados ao alfabeto grego. O sentido metafórico de “começo” e “fim”, melhor talvez, “ponto de partida” e “ponto de chegada”, não deixa dúvidas. Entre esses dois polos acontece na perspectiva macro histórica, o ponto de partida, o acontecer e o ponto de chegada da evolução do Universo, da Natureza e do Homem, assim como a evolução individual de cada um dos componentes que integram o todo. Do “estofo” primordial, existente lá no começo de tudo, confundindo-se com o “alfa”, resultou a matéria prima dos átomos. A partir desse nível entraram em ação os processos que puseram em andamento e aceleraram em ritmo geométrico a dinâmica da evolução, pela ação combinada da “agregação”, da “repetição geométrica”, da “complexificação”, da “compressão” e da “consciência”. Os meandros, as sinuosidades, os aparentes becos sem saída e os recursos teóricos e metodológicos dos quais o autor do “Fenômeno Humano” e do “Lugar do Homem na Natureza” se valeu, para não trair a perspectiva científica, já foram motivo de preocupação em outra parte dessas reflexões.
De um lado Teilhard esforça-se em deixar claro de que lida com a evolução na perspectiva das Ciências Naturais. Do outro, entretanto, sua formação filosófica e teológica e, sobretudo, seu compromisso com a ortodoxia, complicam-lhe em muito a caminhada. São, em primeiro lugar, os momentos cruciais que marcaram a história da evolução: a origem da energia, o “estofo” do universo que a uma certa altura leva à matéria; à origem da vida; o salto do nível do instinto para o patamar da inteligência reflexa. Em segundo lugar, a preocupação de como surgiu a matéria e como tudo é conduzido por uma teleologia, culminando num ponto de chegada pré-estabelecido. Entende-se a dificuldade de Teilhard em movimentar-se nesse campo minado. Fiel ao propósito de não se deixar levar pela tentação de, à maneira de um “deus ex machina”, recorrer a referenciais alheios às Ciências Naturais, não trabalha com conceitos como causalidade suficiente, destino, criação, revelação natural, criação, forças sobre ou preter naturais. Contudo elas devem ter influído na natureza e no rumo das suas reflexões motivadas pelas observações feitas a partir da abordagem científica.
O arcabouço conceitual pelo qual procura tornar compreensível a sua genial cosmovisão do universo, da natureza e do homem, impressiona pela coerência. Tudo começa no polo “alfa” que se caracteriza aparentemente por uma grande simplicidade. Este oculta, porém, um potencial indefinido de desdobramentos que vão-se concretizando no decorrer da evolução tanto no plano macro, quanto micro e nano cósmico. O “fenômeno humano nada mais significa do que a antropogênese inserida organicamente, “sistemicamente”, diria von Bertalanffy, nesse processo global. A evolução acontece pela agregação, pela repetição geométrica pela complexificação. Com o acirramento da complexificação acentua-se a “compressão” e com ela os níveis de “consciência” tornam-se cada vez mais perceptíveis e mais atuantes. Se na primeira fase da evolução predominou a diversificação, na segunda acentua-se gradativamente a compressão, até que tudo seja subsumido num único polo de chegada, o “ômega”.
Os processos responsáveis por essa dinâmica e seus resultados são explicados e explicáveis pela evolução natural. Há, porém, três momentos nessa história de bilhões de anos em que as coisas se complicam. São, na verdade, situações limite em que qualquer cientista sem preconceitos, pergunta: Meu arsenal metodológico e conceitual está em condições de dar uma resposta que convença, ou devo remeter essa tarefa para uma outra esfera que dispõe dos instrumentos adequados para lidar com o problema? Os três momentos críticos são, como já foi mencionado mais de uma vez: como originou-se a energia, matéria prima do universo; como surgiu a vida com suas características de sistema aberto que se alimenta, reproduz e locomove-se e, por instinto orientam-se no meio em que vive; como aconteceu a hominização que dotou o cérebro do homem da capacidade de manifestações operações de inteligência reflexa. Não é aqui o lugar para requentar essa questão a nível teórico e genérico. Nosso interesse resume-se na maneira como Teilhard lidou com o problema. Fiel ao propósito de ocupar-se também com essa problemática intrincada no contexto da evolução natural, não se pode esperar que remeta a solução para algum “deseign inteligente”, ou, o que ninguém estranharia, jesuíta que era, declarar que as Ciências Naturais não têm como dar uma resposta definitiva e, portanto, resta a “criação” como solução. Optou pela saída que qualquer cientista honesto adota, isto é, trabalhar com esse tipo de conclusões como sendo hipóteses e nada mais. É o que ele deixa claro ao introduzir o capítulo primeiro de “O Fenômeno Humano”, ao qual deu o titulo: “O Estofo do Universo”.
O estofo de universo: esse resíduo último das análises sempre mais minuciosas da Ciência ... Não desenvolvi com esta, para saber descrevê-lo dignamente, aquele contato direto, familiar, que faz a diferença entre o homem que leu e o homem que experimentou. E sei também do perigo que existe em tomar, como materiais de uma construção que se desejaria duradoura, hipóteses que, na própria mente daqueles que as propõem, não devem durar mais do que uma manhã.
Em compensação, sob a variedade de teorias que se vão amontoando umas sobre as outras, surge um certo número de caracteres que aparecem obrigatoriamente em qualquer uma das explicações propostas para o universo. E dessa “imposição” definitiva, na medida em que ela exprime condições inerentes a toda a transformação natural, mesmo viva, que deve necessariamente partir e que pode decentemente falar o naturalista empenhado num estudo geral do Fenômeno Humano. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 41)
É, portanto, ao “estofo” do universo que o autor do Fenômeno Humano atribuiu as potencialidades para que a evolução pudesse acontecer e levar aos incontáveis desdobramentos, inclusive a vida. Fica claro também que, como cientista, lida com hipóteses que “não duram mais do que uma manhã”. Como cientista não propõe mais uma hipótese sobre a origem e a natureza do “estofo” do universo. Prefere adotar a linha de raciocínio ditada pelo fato objetivo de que a natureza evolui e se transforma. Trabalha com o pressuposto de que no “estofo” do universo encontram-se em potencial, desde a sua origem, os elementos e os dispositivos que, no decorrer de bilhões de anos de evolução, ao que hoje presenciamos no macrocosmos, no microcosmos e no nanocosmos. No entender de Teilhard essa gigantesca construção, tanto no tamanho quanto na diversidade e complexidade, foi possível porque o “estofo” primordial previa a agregação, a repetição geométrica, a complexificação e a compressão como as ferramentas para realizar a evolução. Na medida em que a compressão acentua a “concentração”, percebe-se com crescente evidência a presença da consciência, que se aperfeiçoa na medida que se acentua a “concentração”. Mas no fundo, no fundo, a trajetória da evolução vai sendo orientada por um plano que permite supor uma razão de ser e não uma mera casualidade. O “alfa” como ponto de partida, a diversificação e a complexifiação acompanhadas e, finalmente, superadas pela concentração, terminando no ponto “ômega”, levam à conclusão de que o autor supõe uma teleologia, evitando que a dinâmica se desgarre do caminho. Conforme Teilhard, somente aceitando uma teleologia, entende-se a evolução em todos os seus níveis. O potencial contido no ”estofo” do universo materializou-se na complexa realidade que vem a ser o mundo inorgânico, orgânico não vivo. Sua pedra angular é o átomo. Multiplicando-se quantitativa e qualitativamente pela agregação, repetição geométrica, complexificação e compressão, levou ao nível em que, (...) é perfeitamente concebível que um salto essencial seja possível entre dois estados ou formas, mesmo inferiores, de consciência. Para retomar e resolver, nos seus próprios termos, a dúvida anteriormente formulada, há efetivamente, eu direi, muitas maneiras diferentes de um ser possuir um Dentro. Uma superfície fechada, de início irregular, pode-se tornar centrada. Um círculo pode aumentar a sua ordem de simetria tornando-se uma esfera. Quer pela ordenação das partes, quer pela aquisição de uma dimensão a mais, nada impede que o grau de interioridade próprio de um elemento cósmico possa variar ao ponto de se elevar bruscamente a um novo escalão.
Ora que semelhante mutação psíquica deve ter precisamente acompanhado a descoberta da combinação celular, eis que resulta imediatamente da lei que, conforme atrás reconhecemos, regula em suas relações mútuas o Dentro e o Fora das coisas. Acréscimo da matéria: portanto correlativamente diríamos, aumento de consciência no meio sintetizado. Transformação “critica” no arranjo íntimo dos elementos, devemos acrescentar agora: logo, “ipso facto”, mudança de “natureza” no estado de consciência do Universo.
E agora consideremos novamente, à luz destes princípios, o assombroso espetáculo apresentado pela eclosão definitiva da Vida na superfície da Terra Juvenil. Esse ímpeto para a frente na espontaneidade. Esse luxuriante desencadeamento de criações fantásticas. Essa expansão desenfreada. Esse salto no improvável ... Não será aí o acontecimento que a teoria nos permite esperar?. A explosão da energia interna consecutiva e proporcionada a uma superorganização fundamental da Matéria?
Realização externa de um tipo essencialmente novo de agrupamento corpuscular, permitindo a organização mais flexível e melhor centrada de um número ilimitado de substâncias tomadas e em todos os graus de grandeza particulares; e, simultaneamente, aparecimento interno de um novo tipo de atividade e de determinação conscientes: por essa dupla e radical metamorfose podemos razoavelmente definir, naquilo que ela tem de especificamente original, a passagem critica da Molécula para a célula, - “o Passo da Vida”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 91)