A Natureza como Síntese - 21

A capacidade de refletir, isto é, a capacidade de tomar consciência de si mesmo, de entender o porque do seu saber, fez com que o homem percebesse que seus semelhantes gozavam da mesma prerrogativa. É legítimo  imaginar que daí nascesse a curiosidade de aproximar-se deles e comunicar-se com eles. A aproximação por meio do diálogo, o mútuo entendimento e o consequente conhecimento do outro, só foi possível com o recurso à linguagem nas suas diversas formas. A linguagem falada, complementada e reforçada por gestos, atitudes corporais, mímicas, etc., deve ter sido a primeira via de aproximação entre os humanos. Sua importância é tamanha que a evolução cultural da humanidade é simplesmente impensável sem o fantástico instrumento que são as línguas faladas e demais formas de comunicação. Sem elas é inimaginável a formação de comunidades, o desenvolvimento da arte, a formulação de sistemas de pensamento, de concepções mágicas e religiosas, os cultos religioso, os rituais de qualquer  espécie. E o que é mais importante do que tudo são os registros feitos pelo homem através dos tempos, as experiências feitas, a memória acumulada, tudo se perderia. 

Por isso, a linguagem  não é apenas uma ferramenta. Ela é a ferramenta mais importante do homem. É ela que nos faz humanos. Pela fala, depois, pela escrita, conseguimos formular pensamentos e acumular conhecimentos no decorrer das gerações. Um cachorro não pode saber como era seu bisavô. O homem é o único ser que pode ter essa informação. Uma das maiores vantagens evolutivas da linguagem é a capacidade de reconhecer que um semelhante tem um cérebro como o nosso e pode pensar, como nós. A isso damos o nome de teoria da mente. Foi essa capacidade que nos possibilitou a comunicação. No momento em que um homem raciocinou que o outro perto dele tinha uma mente igual, chegou à brilhante conclusão de que ele pode me entender. Essa ideia básica, fundamental, está presente até hoje em todas as formas humanas de expressão. Foi somente a partir daí que conseguimos viver plenamente em comunidade, que criamos a filosofia e a matemática e nos constituímos em humanidade. (Entrevista com Daniel Everett. Vaja, 7 de março. 2012. p. 20)

A linguagem possibilita, simultaneamente, a capacidade de inventar e desenvolver tecnologias, uma outra conquista peculiar e exclusiva ao homem como portador de inteligência reflexa. Assim como confeccionar instrumentos, mesmo os mais rudimentares, prova que seu autor é portador de inteligência reflexa e como tal um autêntico ser humano, assim a linguagem, nas suas mais diversas modalidades, só aparece onde há reflexão. Reduzir a linguagem a uma pré-disposição genética, uma herança biológica, pré-programada no DNA, mais precisamente no gene F0XP2, como  prega a teoria de Noam Chomsky,  parece difícil, melhor impossível de sustentar, tomando-se como ponto  de partida verdadeira a natureza da reflexão assim como a propõe Teilhard de Chardin. Depois de servir por meio século de cartilha, para não dizer bíblia para inúmeros linguistas e pedagogos, Chomsky começa  a ser contestado exatamente a partir da sua especialidade. Em seu recente livro: “Language: the Cultural Tool” – “A Linguagem: a Ferramenta  Cultural”, o linguista Daniel Everett,  professor da universidade de Bentley em Boston, bate de frente com essa teoria. Numa entrevista à revista Veja, classifica de ridícula a ideia de Chomsky, pois, conforme ele, não há provas, nem nunca as houve, de que existem estruturas em nosso cérebro ou em nosso DNA, que autorizam afirmar que a linguagem é hereditária. O gene FOXP2 ao qual por algum tempo, atribuiu-se a hereditariedade da linguagem, além de ter outras funções, está presente em ratos, algumas espécies de aves, e outros animais. Soma-se a isso que Chomsky não é geneticista e nunca fez pesquisas em biologia humana. Resumindo Everett afirma que, as línguas são a combinação de três fatores: a capacidade cognitiva do homem, a cultura dos povos  e o que as sociedades querem comunicar. Nosso corpo estabelece os limites de como nos expressamos, a cultura define como falamos e lemos e a vontade de nos comunicarmos determina o que queremos dizer. É uma relação dinâmica. Cada uma dessas peças influencia a outra. (Everett. Em Veja. 7 de março. 2012. P. 20)

Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, portanto um geneticista de nível incontestável, referindo-se à possibilidade do condicionamento da linguagem geneticamente, mais especificamente pelo gene FOXP2,  explica que a descoberta de uma falha nesse gene era o responsável por dificuldades de falar numa família inglesa observada por gerações por especialistas. A conclusão foi que o defeito no FOX-P2 era o responsável pela dificuldade de processar regras de gramática, estruturar frases e mover os músculos do rosto e da boca e das pregas vocais par articular certas palavras. Uma minuciosa investigação do código genético das pessoas dessa família mostrou que havia uma minúscula falha na grafia no gene FOX-P2. Uma análise mais  minuciosa mostrou também que a sequência do gene FOX-P2 permanecera estável  em quase todos os mamíferos. Somente no homem tinha ocorrido essa modificação daquele gene há mais ou menos 100.000 anos, portanto em termos de contagem cronológica da evolução, muito recente. A conclusão foi de que as mudanças ocorridas teriam contribuído par o desenvolvimento da linguagem entre os humanos. As possíveis consequências  dessa descoberta terminaram em inúmeras discussões pelos mundo científico afora. Especialistas em outras áreas como Noam Chomski, um pedagogo, concluíram que capacidade de falar, a língua é o produto de um condicionamento genético, resultado portanto de uma mutação genética ocorrida na sequência do gene FOX-P2 do cromossoma 7. O fato é que essa conclusão foi transformada em base para  uma proposta pedagógica que, por anos, por assim dizer, tornou-se  a cartilha para explicar origem da linguagem humana e como consequência orientou a estratégia pedagógica no seu ensino nos diversos níveis da formação dos alunos. Um pouco mais acima já apontamos para a denúncia de Daniel Everett, referindo-se a Chomsky e sua proposta como insustentável, embora largamente  aceita e praticada como caminho para entender a linguagem humana.  Antes de Everett, Francis Collins com toda a sua autoridade como geneticista diretor do Projeto Genoma Humano, concluiu sobre essa questão:

Neste ponto, materialistas ateus podem estar aplaudindo. Se os humanos evoluíram rigorosamente por meio de mutação e seleção natural, quem precisa de Deus para explicar? A isso, eu respondo: eu preciso. A comparação entre sequências  de chimpanzé e de ser humano, embora interessante, não explica o que é preciso para o ser humano. A meu ver, apenas a sequência do DNA, mesmo acompanhada por um imenso baú do tesouro com dos sobre funções biológicas, nunca irá esclarecer determinados atributos especiais de humanos, como o conhecimento da Lei Moral e a busca universal  por Deus, Livrar Deus do fardo de atos especiais da criação O exclui como fonte daquilo que torna a humanidade especial, nem do próprio universo. Simplesmente nos mostra como Ele trabalha. ( linguagem de Deus, p. 146)

“A capacidade cognitiva” a que se refere Everett, não passa  de uma outra maneira de designar a “capacidade de reflexão de Teilhard.  A linguagem, incluindo a falada, a escrita, a expressão pelas artes, os gestos, a mímica e qualquer outro tipo de comunicação intencional, é o resultado direto da reflexão. A pessoa ao concentrar-se sobre si mesma, percebe que seu semelhante está fazendo o mesmo. A partir desse mútuo observar-se nasce o desejo de comunicar-se, de compartilhar experiências e vivências, de trocar impressões, de encontrar soluções comuns, de interpretar as incógnitas que envolvem a vida, a natureza e o universo. A linguagem serve de ponte para essa intercomunicação. Não faz  diferença se para tanto os interlocutores se valem  da língua  falada, da escrita, nas mais variadas modalidades, de gestos da mímica, de posturas, da arte. O determinante está no fato  de que a comunicação entre humanos tem como motor e combustível a necessidade inata ao homem de relacionar-se de forma consciente com os outros, isto é, o homem é por natureza um ser social. Entre os animais a comunicação acontece unicamente no plano instintivo e, por isso mesmo, dá-se a partir de sinais mecânicos que têm sempre o mesmo significado e sempre pedem a mesma resposta. No caso do homem a comunicação é essencialmente reflexiva e, por isso mesmo, conceitual e simbólica. E sendo conceitual e simbólica expressa a maneira peculiar  como as pessoas percebem o que elas próprias são e o universo e os acontecimentos em que vivem a existência. Como se pode concluir, a linguagem, melhor, as linguagens são o fruto da consciência que o homem tem de si mesmo e da necessidade de compartilhar com os semelhantes a sua cosmovisão, sua “Weltauffassung”. E é sobre esse fundamento que as culturas vão tomando forma. Assim como cada pessoa individual percebe a si mesmo e o mundo de uma perspectiva original, as comunidades de pessoas convencionam caminhos comuns que as orientam para um objetivo comum, o caminho comum vem a ser a tradição cultural. Nela, cada indivíduo, referenciando-se a balizas respeitadas por  todos, preserva a individualidade expressa na maneira de caminhar, nas emoções que sente, nos simbolismos que lhe são sugeridos, nas reações diante dos imprevistos e na forma de lidar com questões  existenciais de fundo como são a doença, o  sofrimento, a injustiça, a solidariedade, o amor, a fidelidade, a morte e o que se oculta atrás dos seus mistérios e incógnitas, e nesse cenário o lugar ou não lugar para Deus.

À linguagem cabe o papel de meio de campo entre a preservação da individualidade e as relações que consolida com seus semelhantes. As pessoas dialogando desenvolvem bases de  entendimento mútuo, fundamentadas  em conceitos abstratos, representações, simbolismos, etc., conforme o entendimento do Pe. Balduino Rambo.

Ela é, sem dúvida, muito mais do que um veículo técnico de comunicação. Ela desabrochou do sangue e da natureza de um povo. Por isso reluzem sobre suas folhas as reminiscências  do orvalho dos tempos primigênios e do seu cálice emana ainda  hoje algo do perfume do mistério da alma humana.

A expressão mais evidente do sangue comum e do espírito, da alma comum, do modo de pensar comum é a língua. A identidade étnica dispõe, obviamente, de outras modalidades e de outras formas de fazer visível a sua cultura: a música, a pintura, a escultura, festas, trajes, usos e costumes. A língua, entretanto, constitui-se  no sinal identificador mais essencial da identidade étnica. Torna possíveis as demais manifestações e de certo ponto as inclui.

A língua materna é uma flor milagrosa plantada por Deus à margem da estrada dos povos, para que nela se alegrem. Aquele  que a pisoteia e, sob qualquer pretexto a rouba, danifica a sua alma e se intromete criminosamente no santuário da alma humana. (Rambo, Balduino. 1935. )

O significado da língua na sua forma mais ampla de “comunicação”, formulada por David Everett há poucos meses, poderia parecer inspirada na reflexão do Pe. Rambo feita há oitenta anos. A língua, segundo o primeiro, resulta da capacidade cognitiva do homem; faz as pessoas comunicarem-se de acordo com os padrões consagrados e consolidados pela história de cada cultura particular; e ainda faz as pessoas compartilhar com as demais o que desejam comunicar. A semelhança  fica ainda mais evidente na continuação da reflexão feita pelo segundo, há quase oito décadas.

A língua materna simboliza a mesma maneira de  pensar e a mesma maneira de sentir. Sob esse aspecto ela representa um dos tesouros mais sagrados dos povos. A língua comum constitui-se no veículo mais completo da compreensão mútua, não somente por causa dos mesmos sons e das mesmas palavras, mas antes de mais nada por causa das mesmas percepções que transmite. A língua materna comum permite a formação da comunidade de destino comum. Por meio dela somos capazes de superar com maior facilidade a enorme solidão da nossa existência e trilhar com mais segurança a difícil, a longa, a íngreme e a escura trilha da nossa vida. Ninguém se basta a si mesmo. Pelo contrário. Quanto mais importante é o homem tanto mais sente a solidão e a impotência e com tanto maior ânsia procura os homens que Deus lhe concedeu como companheiros de viagem a dois, a três ou a muitos, para que a jornada seja menos solitária. (Rambo. 1935. p. ?)

This entry was posted on sábado, 27 de novembro de 2021. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.