Nos parágrafos que acabamos de citar, Teilhard deixa transparecer que, como cientista, está lidando com um desafio de boas proporções. Em linguagem popular diríamos que tem uma “batata quente” na mão. Vale-se de recursos conceituais e literários até surpreendentes no linguajar de um cientista. De qualquer forma parece legítimo perceber nas linhas, mais ainda nas entrelinhas, uma lógica que no fundo orienta a evolução, assim como ele a entendeu. O “estofo” de que e feito o Universo e a Natureza, concentra em si o potencial para tornar-se realidade na medida em que as condições necessárias estiverem presentes. Elas tornam-se efetivas como realidades presentes na medida em que a agregação, a repetição geométrica, a complexificação e a compressão, levam a sempre novos e mais altos níveis de organização. Cada nível de organização da matéria, por sua vez, exige um passo adiante na preparação ao que o autor chamou de “passagem critica da Molécula para a Célula, - o Passo da Vida”. À resposta para a pergunta se essa “passagem critica” é explicável por processos de natureza físico-química atuantes na história da evolução natural ou não. Teilhard responde:
Nada, em si mesmo, impediria que, em massas infinitesimais, a substância viva esteja ainda a nascer sob os nossos olhos. – Mas nada, de fato, parece indicar, - tudo pelo contrário, parece dissuadir-nos de pensar assim. (Teilhard. 1986. p. 96)
Teilhard apoia a sua afirmação nas experiências de Pasteur que comprovaram que, nas condições atuais, a vida não é gerada em laboratório, num meio previamente esterilizado. Em princípio, porém, esse fato não prova nada, nem a favor, nem contra, a gênese da célula no passado remoto da evolução. O uso universal dos métodos de esterilização comprova que, nos limites das investigações de hoje, o protoplasma não mais se forma a partir de substâncias inorgânicas da Terra. E isso nos obriga, para começar, a revisar certas ideias por demais absolutas que podíamos alimentar sobre o valor e o uso, em Ciências, das explicações pelas “causas atuais”. (Teilhard. 1986. p. 96)
Como se pode ver tanto a origem e a existência da matéria prima, “o estofo “ do Universo, quanto a manifestação da vida na célula, desafiaram, como desafiam ainda, o potencial explicativo das Ciências Naturais. O terceiro passo na história da evolução, que coloca a Ciência diante de um desafio igualmente, ou muito mais intrigante, oferece a superação da “consciência instintiva pela consciência reflexa”, do “saber instintivo para o saber reflexo”, da “inteligência instintiva para a inteligência reflexa, em outros termos “a Hominização”. Teilhard resumiu o tamanho do desafio.
Numa perspectiva puramente positivista, o Homem é o mais misterioso e o mais desconcertante dos objetos com que a Ciência se depara. E, de fato, temos de confessar, a Ciência não lhe encontrou ainda um lugar nas suas representações do Universo. A Física chegou a circunscrever provisoriamente o mundo do átomo. A biologia logrou estabelecer uma certa ordem nas construções da Vida. Apoiada na Física e na Biologia, a Antropologia, por sua vez, explica, mais ou menos, a estrutura do corpo humano e certos mecanismos da sua fisiologia. Mas uma vez reunidos todos esses traços, o retrato manifestamente, não corresponde a realidade. O homem, tal como a Ciência o consegue reconstruir hoje em dia, é um animal como os outros, tão pouco separável, por sua anatomia, dos antropóides, que as modernas classificações da Zoologia, retornando à de Lineu, o incluem com eles na mesma superfamília dos Homínidas. Ora, a julgar pelos resultados do seu aparecimento, não constitui ele precisamente algo totalmente diferente ?
Salto morfológico ínfimo; e, ao mesmo tempo, incrível abalo das esferas da Vida: todo o paradoxo humano ... E toda a evidência, por conseguinte, de que, na suas atuais reconstruções do Mundo, a Ciência negligencia um fator essencial, ou melhor dizendo, uma dimensão inteira do Universo.
Entre os últimos estratos do Plioceno, donde o Homem está ausente, e o nível seguinte, onde o geólogo deveria ser sacudido de estupefação ao identificar os primeiros quartzos lascados, o que é que se passou ?. E qual é a verdadeira dimensão do salto. (Teilhard. 1986. p. 185)
A nova dimensão a que se refere Teilhard vem a ser a Noosfera que vai coroar a Litosfera e a Biosfera. Não há necessidade de lembrar que na explicação da transição entre as três esferas, a Ciência não consegue avançar muito além da formulação de hipóteses que “não se sustentam por mais do que uma manhã”. O cientista, seja ele biólogo, paleontólogo ou antropólogo, é desafiado mais uma vez pela incomoda pergunta: Os dados empíricos disponíveis e as perspectivas oferecidas pelo potencial da investigação, pode-se prever uma resposta convincente e definitiva?. Antes de arriscar um veredicto é prudente tentar compreender mais a fundo o sentido real, quando Teilhard afirma que o “geólogo deveria ser sacudido de estupefação ao deparar-se com os primeiros quartzos lascados”.
Concedemos que para o biólogo, o paleontólogo, o antropólogo físico e o bio antropólogo, a transição entre os símios mais primitivos, os símios antropoides e os homínidas, não cause surpresa fora do comum. Afinal lidam com o que a espécie humana tem em comum com os demais antropoides, símios e seres vivos em geral. Seus métodos são reconhecidos e válidos e as hipóteses que formulam a partir dos dados e resultados que obtém são legítimas. Muitos não percebem, e quando percebem, não se interessam pelo que no homem é de fato inédito e assim “negligenciam um fator essencial, uma dimensão inteira do Universo”. E, procurando manter a fidelidade ao raciocínio e à cosmovisão de Teilhard, a dimensão a que se refere vem a ser a Noosfera. A questão assume uma dimensão bem mais polêmica no momento em que for tratada ao nível do psiquismo. A pergunta de fundo a ser respondida vem a resumir-se em: o psiquismo do homem difere essencialmente daquele dos seres vivos que vieram antes dele; ou a inteligência animal situa-se apenas num nível abaixo da humana; ou ainda, a inteligência do homem dispõe, em última análise, de algumas ferramentas a mais do que os antropoides como o gorila e o chimpanzé. Explica-se tudo via biologia, via DNA, etc. Nada de suspeitar, muito menos aceitar, uma diferença de natureza entre o psiquismo do homem e do animal. Frente a esse impasse Teilhard propõe encarar de frente o problema.
Se queremos resolver essa questão (cuja solução é tão necessária para a Ética da Vida quanto para o conhecimento puro ...) a “superioridade do Homem sobre os Animais” eu não vejo senão um caminho: por decididamente de lado, nos feixes dos comportamentos humanos, todas as manifestações secundarias e equívocas da atividade interna e encarar de frente o fenômeno central da “Reflexão”.
Do ponto de vista experimental, que é o nosso, a reflexão, como a própria palavra indica, é o poder adquirido de uma consciência de se dobrar sobre si mesma, e de tomar posse de si mesma como de um objeto dotado de sua própria consistência e de seu próprio valor: não apenas conhecer, - mas conhecer-se; não apenas saber, mas saber que se sabe. Por essa individualização de si mesmo no fundo de si mesmo, o elemento vivo, até aqui espalhado e dividido sobe um círculo difuso de percepções e de atividades, acha-se constituído, pela primeira vez, em centro punctiforme, onde todas as representações e experiências se entrelaçam e se consolidam num conjunto consciente de sua organização. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 186).
A revolução que o aparecimento da Reflexão significou para a história posterior da evolução, justifica algumas reflexões complementares. Quem sabe ler e entender a linguagem da natureza, descobre nos quartzos lascados, nos famosos machados de punho, que deveriam ter impressionado os geólogos mais do que qualquer outra descoberta inusitada, os elementos que distinguem a Inteligência Reflexa da Inteligência Instintiva ou sensitiva. De saída os caçadores e coletores do paleolítico viram-se numa situação que implicava na própria chance de êxito na competição com as demais espécies pela própria sobrevivência no plano da evolução natural. Sob o aspecto anatômico o homem pertencia àquelas espécies diante mão condenadas ao fracasso na luta pela sobrevivência, se entregue unicamente à lógica implacável da seleção natural. Basta observar as mãos. Não passam de ferramentas de utilidade limitada. Servem para tudo e, ao mesmo tempo, não são eficientes em nada. Basta compará-las com as extremidades dos animais que no paleolítico disputavam os espaços e os alimentos com o homem. Servem para cavar, mas cavam mal; servem para agarrar, mas agarram mal; servem para defender-se, mas defendem mal. Entre a eficiência das garras de um tatu ou de um tamanduá e as mãos, constata-se uma distancia quilométrica. O mesmo pode-se afirmar dos cascos de um cavalo, das patas de um leão. Situação parecida constatamos na dentadura. Nela não se verifica nada similar à utilidade num ruminante ou num carnívoro. E o que pensar em relação à proteção contra as intempéries, com o corpo praticamente sem pelos, sem uma cobertura de lã ou camada de gordura? Como então se explica que, apesar de tudo, o homem é a única espécie, pelo menos entre os vertebrados, que continua com pleno êxito a sua trajetória evolutiva?
A resposta resume-se no fato de o homem ser a única espécie capaz de Reflexão. E na prática o que significa isso? Tomemos como exemplo os artefatos lascados de sílex, os machados de punho. O que ensinam? Que os autores do lascamento dispunham da capacidade de avaliar uma situação e como resposta por em andamento toda uma cadeia de procedimentos para dar conta dos desafios que oferecia. Parece legítimo imaginar, entre outros, a seguinte sequência de ações: tomar consciência de um desafio, por ex,. escavar um tubérculo, ou tirar a pele de um animal, ou separar a carne dos ossos, ou defender-se contra uma fera ou outro homem; constatar a ineficácia das mãos ou dos dentes o homem das cavernas lança mão de pedaços de madeira, de osso, ou lascas de pedra bruta; verificar a possibilidade de torná-las mais eficientes por meio de manipulações adequadas; dar-lhes o formato e os acabamentos necessários para servir à finalidade pretendida. Temos assim, em resumo, a cadeia de operações mentais ditando a sequência de ações para chegar a um objetivo determinado. Como se pode concluir sem mais, a Reflexão é a alma que municia o homem com a capacidade de ter consciência dos fatos, de saber as coisas, mas tendo consciência reflexa, sabendo os porquês do seu saber, e dessa forma, organizar logicamente os atos, valendo-se dos meios apropriados, para por em andamento uma linha teleológica em busca do objetivo pretendido. Na sua maneira peculiar e única, marca registrada privativa sua, Teilhard resumiu o “Passo para a Noosfera” e o reflexo sobre a natureza e, de modo especial, sobre o homem.
Isto posto, eu pergunto. Se, com o correr do que ficou dito, é o fato de se encontrar “refletido” que constitui o ser verdadeiramente “inteligente”, podemos nós seriamente duvidar de que a inteligência seja o apanágio evolutivo do Homem e só do homem? E podemos nós, por conseguinte, hesitar em reconhecer, por que não sei que falsa modéstia, que sua posse representa para o Homem um avanço radical em relação a toda a Vida antes dele? O animal sabe, bem entendido. Mas, certamente, ele não sabe que sabe: de outro modo, teria há muito tempo multiplicado invenções e desenvolvido um sistema de construções internas que poderiam escapar à nossa observação. Consequentemente, permanece fechado para ele todo o domínio do Real, no qual nós nos movemos, nós, - mas no qual ele, por sua vez, não consegue entrar. Um fosso, - ou um limiar – para ele intransponível, nos separa. Em relação a ele, por sermos reflexivos, não somos apenas diferentes, mas outros. Não só simples mudança de grau, - mas mudança de natureza – que resulta de uma mudança de estado. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 186-187).